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Estado de Minas PENSAR

Cormac McCarthy mergulha na indetermina��o da realidade em 'O passageiro'

Escritor aposta em mist�rios existenciais e di�logos evocativos no seu primeiro romance desde 'A estrada'


16/12/2022 04:00 - atualizado 16/12/2022 00:05
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O norte-americano Cormac McCarthy
O norte-americano Cormac McCarthy: "O passageiro" � o primeiro romance desde o cultuado "A estrada" e precede outro livro com os mesmos personagens (foto: Beowulf Sheehan)

Andr� de Leones*
Especial para o EM

A certa altura de “O passageiro” (Alfaguara), algu�m diz: “Hoje encontrei um homem chamado Robert Western cujo pai tentou destruir o universo e cuja suposta irm� provou ser uma ET que morreu pelas pr�prias m�os. E quando refleti sobre sua hist�ria, me dei conta de que tudo que considerei verdadeiro com respeito � alma humana talvez n�o valha nada”. Haveria formas melhores de apresentar o protagonista, e essa descri��o um tanto rude – que termina com um “Atenciosamente, Sigmund” – talvez esconda mais do que revele. Exceto como piadas, n�o h� simplifica��es poss�veis no novo romance de Cormac McCarthy , autor de romances cultuados como “Meridiano de sangue” e “Onde os fracos n�o t�m vez” (adaptado para o cinema pelos irm�os Coen). “O passageiro” � o primeiro romance que ele lan�a desde “A estrada” (2006).

Western, de fato, � filho de um f�sico que participou do programa norte-americano de desenvolvimento da bomba at�mica, e sua irm�, Alicia, g�nio matem�tico, esquizofr�nica, cometeu suic�dio. O amor que sentia e ainda sente por ela n�o � apenas fraternal. Western tamb�m estudava f�sica, mas abandonou o doutorado e foi para a Europa pilotar carros de corrida, quase morreu em um acidente e agora (a hist�ria come�a em fins de 1980) ganha a vida como mergulhador profissional.

A rela��o incestuosa entre os irm�os perpassa todo o livro, cujo ordenamento acentua a fantasmagoria que cerca Western. Cada cap�tulo inicia com passagens em it�lico nas quais Alicia lida com suas mem�rias e alucina��es. Quando suspende a medica��o, ela se v� papeando com diversas criaturas, das quais a mais presente � um certo Kid Talidomida: “Todos se reuniam ao p� da sua cama. Quando ela acendia a lumin�ria, piscavam por causa da luz”. H� passagens desoladoras, em que a incognoscibilidade do mundo, em si j� dif�cil de suportar, � parodiada na terra devastada da doen�a. Ali, viaja-se na “velocidade da escurid�o”, da qual, segundo o Kid, “ningu�m quer falar”. Nesse ponto, � importante frisar que “O passageiro” � acompanhado por outro romance, “Stella Maris”, protagonizado por Alicia, e que a Alfaguara lan�ar� no primeiro semestre de 2023.

O mist�rio existencial de Western, a solid�o abrasiva que parece defini-lo, esbarra em um mist�rio de outra ordem: contratado sabe-se l� por quem, ele explora um avi�o submerso, do qual desapareceram a caixa-preta, a maleta do piloto e um dos passageiros. H� muita coisa inexplic�vel com rela��o a esse trabalho. A inquieta��o do personagem faz com que saia por a� fazendo perguntas e, claro, ele passa a ser acossado por agentes e ag�ncias governamentais. Aconselhado pelo advogado, Kline, um dos melhores personagens do livro, chega � conclus�o de que precisa desaparecer n�o s� dentro de si mesmo (coisa j� em curso), mas no pr�prio mundo.

McCarthy � inteligente demais para baratear esse outro mist�rio, preferindo inscrev�-lo na ordem do mist�rio maior, metaf�sico-existencial, tornando-o um �ndice dos desaparecimentos (literais e figurativos) do protagonista. Algo similar ocorre com o pai de Western, e talvez haja uma esp�cie de espelhamento das exist�ncias dos dois homens. Em um desenrolar que nos remete ao Unabomber (sem, claro, a sanha terrorista), o pai tamb�m abandonou a academia e se refugiou em uma cabana no meio do mato. O destino de Western guarda algumas semelhan�as com o do velho.

Casas s�o invadidas, pap�is, cartas e objetos familiares desaparecem, e � dif�cil precisar o que em tudo isso tem mais a ver com o pai, seu trabalho e sua loucura, ou com os filhos. No fim, dado o abandono de Western em si mesmo, isso talvez n�o fa�a diferen�a. “Ao serem recordados”, diz um personagem (a essa altura, outro fantasma), “os sonhos e a vida adquirem uma estranha igualdade que os funde. E acabei suspeitando que o ch�o sobre o qual caminhamos depende menos de nossas escolhas do que imaginamos. E, enquanto isso, um passado que mal conhecemos � transmitido para nossas vidas como um investimento duvidoso. A hist�ria desses tempos ser� dif�cil de relatar, Squire. Mas, se h� um tra�o comum em nossa compreens�o, � que somos defeituosos. No fundo, � isso que sabemos”.

� sabido que McCarthy passa bastante tempo no Santa Fe Institute papeando com te�ricos e fil�sofos das mais diversas cepas. Essa carga especulativa comparece em "O passageiro", e uma das melhores coisas relativas a ela � o fato de o autor n�o dar a m�nima para a sua 'fun��o narrativa'. H� v�rias passagens do romance que est�o ali n�o para fazer a hist�ria avan�ar, mas para tornar palp�vel - ou ao menos nome�vel - as inquieta��es dos personagens


Debussy, Vietn� e Einstein

Embora geograficamente mape�veis, as andan�as de Western parecem se dar cada vez mais no plano fantasmag�rico em que ele se encontra. Nesse sentido, mesmo os longos di�logos que mant�m com conhecidos e parentes, as lembran�as familiares de Debussy ou da av� materna, as experi�ncias no Vietn� de Oiler, as teorias de Kline sobre o assassinato de John Kennedy, as conversas sobre f�sica com Asher (“N�o foram s� os dados qu�nticos que perturbaram Einstein. Foi toda a no��o subjacente. A indetermina��o da pr�pria realidade.”), mesmo esses longos di�logos regados a caf� ou �lcool adquirem um teor evocativo, como se ocorressem entre sobreviventes de uma civiliza��o h� muito destru�da.

� sabido que McCarthy passa bastante tempo no Santa Fe Institute papeando com te�ricos e fil�sofos das mais diversas cepas. Essa carga especulativa comparece em “O passageiro”, e uma das melhores coisas relativas a ela � o fato de o autor n�o dar a m�nima para a sua “fun��o narrativa”. H� v�rias passagens do romance que est�o ali n�o para fazer a hist�ria avan�ar, mas para tornar palp�vel — ou ao menos nome�vel — as inquieta��es dos personagens. Em se tratando de um material no qual o autor trabalha desde os anos 1980, � poss�vel ver o quanto o adensamento filos�fico � diretamente proporcional � precariedade da linguagem para dar conta de certos conceitos, ideias e sensa��es.

Sendo um romancista, e um dos melhores, McCarthy sabe quando � o momento de recuar junto com seu protagonista. Quando a conceitua��o esbarra na indetermina��o da realidade enquanto tal, resta a realidade da vida, das mem�rias, dos sofrimentos e da beleza particulares. Em �ltima inst�ncia, a experi�ncia dessas coisas � intraduz�vel, mas n�o (paradoxalmente) incomunic�vel. Eis o que “O passageiro” ilumina em seu mergulho.
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(foto: Alfaguara/Divulga��o)

 “O passageiro”
• Cormac McCarthy
• Tradu��o de Jorio Dauster
• Alfaguara
• R$ 84,90
• E-book: R$ 39,90
• 392 p�ginas 




Trecho De  “O passageiro”, de Cormac McCarthy 

Sendo assim, at� que ponto o mundo � ruim?

At� que ponto? A verdade do mundo constitui uma vis�o t�o aterradora que torna insignificantes as profecias do mais pessimista vidente que jamais pisou neste planeta. Desde que se aceite isso, ent�o a ideia de que tudo um dia vai virar p� e se perder� no v�cuo deixa de ser uma profecia para se transformar numa promessa. Agora me permita lhe fazer a seguinte pergunta: Quando n�s e todas as nossas obras tivermos desaparecido para sempre, junto com a lembran�a delas e todas as m�quinas em que tais recorda��es possam ter sido codificadas e guardadas, quando a terra n�o for nem mais uma brasa ardente, ent�o para quem isso ser� uma trag�dia? Onde encontrar�amos tal ser? E quem o encontraria?.


*Andr� de Leones � autor do romance “Eufrates” (Jos� Olympio), entre outros


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