
Leia trecho do posf�cio de Ailton Krenak para “O sentimento do mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, inclu�do na reedi��o da obra do Escritor pela Record
“Eu invoco Drummond como o meu escudo invis�vel”
Ailton Krenak
(...) S� depois de chegar aos 20 anos � que fui ler a nossa literatura brasileira, e Drummond aparece nesse horizonte como ilha de reconhecimento, possibilidades de identifica��o com a maneira como o poeta estranha o mundo.
O poeta, em sua vast�ssima obra, estranha o modo de operar desse mundo, o humano em choque com a vida. Eu invoco Drummond como meu escudo invis�vel, sempre que esse mundo derrapa sob meus p�s, pois ele se distingue do tipo de literatura com que tenho contato em geral.
Considerando a po�tica do Drummond, � preciso entender essa pergunta como metaf�sica. O poeta j� colocava em quest�o a narrativa de que existia um lugar na Am�rica do Sul destinado a se chamar Brasil. Ele questionou tamb�m a inven��o colonial desse lugar. Se Drummond perguntava “onde � Brasil?”, ele podia estar lan�ando uma pergunta ao espa�o, inclusive em busca de uma resposta social a esse lugar, que seriam “os brasileiros”. Quer dizer, al�m de voc� inventar um lugar, voc� ainda produz uma ideia de povo que vai constituir essa parte da humanidade.
Eu fico muito feliz de poder comentar essa express�o do Drummond, porque eu nunca acreditei que exista um lugar correspondente � ideia de Brasil. E, menos ainda, que esse punhado de gente, que veio de todos os lugares do mundo, colonizados nesse territ�rio, tenha se constitu�do como “os brasileiros”. Eu penso que a gente h� muito tempo vive em um vasto acampamento, ao qual cada vez mais chega gente de fora, com desejos muito diversos uns dos outros, como que indicando que o Brasil � uma inven��o, e os brasileiros s�o uma fic��o sociol�gica.
Em sua longa jornada, toda a poesia e as cr�nicas que o poeta nos d� querem acordar os homens e convocar outros sonhos, outros mundos para al�m da f�ria devoradora de montanhas.
O destino nos deu o presente de sentirmos as montanhas como extens�o de nosso corpo, cada um na sua pedra, ferro e a�o. Um vale que foi desde muito, muito tempo mesmo, o lar de um povo selvagem, minha aldeia dos antigos botocudos, e sua Itabira. O Pico do Cau�, que nem pode mais testemunhar nada. Cratera n�o fala, diria o poeta. J� teve outros nomes esse vale de l�grimas, antes de sofrer a ofensa do ep�teto Vale do A�o. Florestas do rio Doce, evocando um mundo com todas as possibilidades ima- gin�rias, entre vales e montanhas povoados de seres da mata atl�ntica e do cerrado, aves e peixes e todos os tipos de �rvores gigantes. Um mundo poss�vel para al�m de cal�adas de pedra, ferro nas almas, como denuncia o poeta itabirano. Invocar Drummond como escudo invis�vel � algo cotidiano para mim, que sinto a dor do rio e suporto, nas minhas “retinas t�o fatigadas”, o incessante vaiv�m da pesad�ssima m�quina de comer mundos. Uma montanha rochosa que avisto, daqui do terreiro desta aldeia crenaque, testemunha a passagem do maior trem do mundo, levando as montanhas para ver – ou “s� para te ver?” – o outro lado do Atl�ntico, e nada deixando atr�s de seu ruidoso trilho. L� vai o trem da vida, diz o mineiro, indefeso ante avalanches de lama e marianas e brumadinhos a perder de vista. (...)
Leia trecho de “A alma e a lama”, posf�cio do escritor mo�ambicano Mia Couto para a nova edi��o de “Claro enigma”, de Carlos Drummond de Andrade

“O assunto � sempre o mist�rio da condi��o humana”
Mia Couto
(...) Carlos Drummond de Andrade acreditava na inspira��o. Para ele, a poesia iluminava o mist�rio. Mais do que isso, a palavra era a luz dentro do enigma. N�o se tratava de decifrar o enigma, mas de ser esclarecido pelo abismo. O poema n�o resolve. Ele apenas supera essa falsa dualidade. Nos primeiros livros, Drummond encenava um confronto entre o mundo e a pessoa. Neste livro, essa batalha � assumida como um assunto equivocado. As fronteiras que separam a realidade e o humano s�o fluidas e movedi�as. No final das contas, o homem veste-se com a pele do mundo e o mundo s� existe aos olhos do humano. O ferro de Itabira entranhou-se para sempre no ch�o das almas.
A aceita��o dessa essencial ambiguidade vem de longe. H� mais de 400 anos, um poeta lusitano chamado S� de Miranda deixou escritos os seguintes versos:
“N�o vejo o rosto a ningu�m;
cuidais que s�o, e n�o s�o;
homens, que n�o v�o, nem v�m,
parece que avante v�o.
Entre o doente e o s�o
mente cada hora a espia;
na meta do meio-dia
andais entre o lobo e o c�o”
Drummond foi beber nesses versos. Os primeiros 18 poemas deste livro comp�em uma se��o chamada “Entre lobo e c�o”. Essas duas criaturas n�o s�o apenas entidades biol�gicas pr�ximas: s�o constela��es do hemisf�rio sul. � preciso que fa�a escuro para que antigos marcos de navega��o se tornem vis�veis. Podem estes caminhos parecer distantes, mas eles s�o vitais para um fazendeiro do ar que sente, como diz o poeta, que todas as guerras acontecem no seu sono.
N�o � apenas com o poeta S� de Miranda que Drummond vai conversar durante as p�ginas deste “Claro enigma”. Ele convoca Cam�es, Pessoa, Dante. O assunto � sempre o mist�rio da condi��o humana perante um mundo mecanizado que tomou conta do nosso cotidiano. N�o lhe interessa tanto o que sucede no universo. Os acontecimentos s�o desde logo desqualificados pela epigrafe de Paul Val�ry que abre o livro: “Os acontecimentos causam-me t�dio.”
Na verdade, n�o � nos acontecimentos que a vida sucede. Talvez por isso Carlos Drummond de Andrade tenha acontecido na vida cotidiana sempre de rasp�o, gravitando entre fortuitas identidades: um quase farmac�utico que sabia que as grandes doen�as pedem outros f�rmacos, um quase funcion�rio p�blico que sonhou ser anarquista. Na poesia, sim, ele foi inteiro. O poema tornou-se a prece deste mineiro ateu. Por via da palavra po�tica, ele rezou aos esp�ritos de Minas Gerais, pedindo-lhes que lan�assem o “teu claro raio ordenador” para que dentro de si se guardasse “ao menos a metade / do que fui de nascen�a”. Nascido entre igrejas e o ressoar dos sinos, criado em col�gios religiosos, o agn�stico Drummond estava avisado: mendiga-se pouco aos deuses porque, do outro lado da p�gina, eles s� nos escutam quando os inventamos.
Diz-se que os mist�rios s�o densos e os enigmas se alimentam do escuro. “Claro enigma” vai-se tecendo na dire��o contr�ria, como se o exerc�cio de decifra��o reclamasse uma nuvem escura, um transit�rio apagamento do que temos como certeza. O poeta confessa: ele quer escrever um soneto “escuro” e “duro”. E declara “aceito a noite” no poema que abre o livro. Dessa noite ir� brotar “uma ordem outra de seres / e coisas n�o figuradas”. A estrat�gia � �bvia: o poeta usa o fogo para apagar o inc�ndio. Ele segue por um caminho pedregoso que “tantos pisam este ch�o que ele talvez / um dia se humanize”.
O ch�o de ferro de Itabira, cujo nome completo � Itabira do Mato Dentro, deixou de ser um ch�o nos in�cios do s�culo 20. Nessa altura, como t�o bem sublinha Jos� Miguel Wisnik, j� o “mundo” tomava posse desse solo que se repartia dentro e fora da alma dos itabiranos. As grandes empresas mineradoras come�am a desfigurar a paisagem e a transferir, de forma traum�tica, uma cidadezinha que � do Mato Dentro para um mapa onde n�o se prev� nem mato nem dentro. A resposta do sonho parece pouca para tanto desencanto.
Deslocado da sua cidade, da sua fam�lia, da sua adolesc�ncia, Drummond inventa uma outra p�tria onde ressoam as vozes e os sinos da sua pequena cidade. N�o lhe basta tecer um sentimento do mundo. Ele precisa ser um mundo que n�o se esgota numa �nica e empobrecida vers�o. Os universos plurais que o habitam nascem da constante travessia para al�m das suas pr�prias margens, por entre as constela��es do lobo e do c�o, sobre caminhos no meio dos quais haver� sempre uma pedra.
O m�todo da err�ncia ontol�gica � celebrado por Drummond nos versos que dedica a Jo�o Guimar�es Rosa, nesse belo poema que tem por t�tulo “Um chamado Jo�o”, no qual o poeta de Itabira exalta o “ex�lio da linguagem comum” e a arte de “disfar�ar, para far�ar / o que n�o ousamos compreender”. Esses versos n�o falam apenas da prosa de Rosa. Eles constituem uma chave para a compreens�o da obra po�tica de Drummond e, em particular, deste seu s�timo livro, “Claro enigma”. Se o disfarce oculta, o far�ar (essa palavra inventada pelo autor) revela. Essa revela��o est� para al�m do dom�nio da raz�o. Ela pede uma nova intimidade com o mundo, um outro parentesco com a humanidade.
A poesia salva a fam�lia e a inf�ncia de serem apenas uma fotografia pendurada numa parede. Nesse antigo retrato, mora a “conversa de fantasmas” a que o poeta alude quando da morte de Ana Cristina Cesar: uma aus�ncia sem falta, uma aus�ncia que nem vida nem morte podem roubar. Deste modo, n�o tem que haver saudade nem regresso: as casas brotam nos versos para ali ganharem eternidade. E agora, com a persist�ncia das chuvas mineiras, as casas regressam ao barro, obedecendo ao apelo de um ch�o que � mais de ferro do que terra.
As cidades n�o morrem: deixam-se morrer. Porque sabem que h�, nessa morte, um fingimento de fim. A paisagem emigra da geografia para a linguagem. Entre alma e lama, a palavra resgata a luz e o escuro que tecem este “Claro enigma”.