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Estado de Minas PENSAR

Maria Esther Maciel analisa subjetividade dos animais na literatura

No livro "Animalidades", escritora mineira desdobra pesquisa sobre os 'n�o humanos' em obras de Drummond, Clarice, Hilda Hilst e outros autores


16/06/2023 04:00 - atualizado 16/06/2023 00:51
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ilustração
(foto: Quinho)

 

Adriano Cirino *

Especial para o EM 

 

Quando entrevistei Maria Esther Maciel para uma reportagem sobre a posse do l�der ind�gena Ailton Krenak na Academia Mineira de Letras (ela tamb�m � acad�mica, eleita em 2021) em mar�o passado, eu lhe perguntei, por curiosidade:

 

– Voc� tem muitos bichos? 

 

Eu j� sabia que Maria Esther � especialista no estudo da “zooliteratura” (“o conjunto das pr�ticas liter�rias ou obras que priorizam o enfoque de animais”, em sua pr�pria defini��o do conceito) e da po�tica animal no Brasil e, com isso, imaginava sua casa quase como um zool�gico.

 

– S� os que aparecem no jardim, todos os dias – ela respondeu, poeticamente. Mas, como se n�o fosse suficiente, acrescentou: – Minha querida amiga canina, Lalinha, partiu aos 15 anos, em 2016.

 

� para Lalinha que Maria Esther dedica um dos cap�tulos (intitulado “Quando morre um c�o”) de seu novo livro, “Animalidades: zooliteratura e os limites do humano”, publicado pela Instante, editora fundada em 2017, com 29 t�tulos no cat�logo at� este lan�amento. A capa e o design gr�fico (uma “composi��o e sobreposi��o de figuras de animais e ossos humanos” e “gravuras vintage”, conforme detalham em nota os artistas e editores) recordam um besti�rio ou enciclop�dia.

 
Leia: Maria Esther Maciel: 'Os bichos me ensinaram muito'


O livro d� continuidade ao estudo pioneiro sobre animais na literatura empreendido pela autora com “Literatura e animalidade” (2016), “Pensar/escrever o animal” (2011) e “O animal escrito” (2008). �, essencialmente, um ensaio acerca da sua subjetividade: eles pensam? Como pensam? Sobre o que pensam? O que pensam de n�s? (Pode at� parecer que estamos falando de extraterrestres.)

 

“Adotar o ponto de vista de uma alteridade radicalmente outra � enfrentar o n�o sabido e demanda um salto, ainda que imagin�rio, para o outro lado da fronteira”, Maria Esther escreve. Este “salto, ainda que imagin�rio”, � o da poesia ou fic��o: “atrav�s da lente da inven��o e das potencialidades sensoriais da linguagem, [a literatura possibilita] uma compreens�o dos animais e das rela��es interesp�cies”, da “condi��o animal do humano, e vice-versa.” 

 

J� no pr�logo, a autora recorda Charles Darwin. Sem ele, n�o haveria zooliteratura tal como a conhecemos hoje, mas apenas besti�rios e f�bulas, com seus bichos aleg�ricos e antropom�rficos, a servi�o dos valores do homem. O cientista foi “fundamental para que a condi��o de sujeitos fosse atribu�da aos animais, por nesses reconhecer faculdades at� ent�o – e mesmo ainda hoje – consideradas exclusivas dos humanos”; entre elas, a emo��o, a mem�ria e at� o sonho.

 

O c�o inaugura o “animal�rio” do livro e destaca-se entre todos os bichos: � o protagonista dos cap�tulos 2, 3 e 4, da primeira parte (s�o duas partes, al�m do pr�logo e do ep�logo – este, uma entrevista concedida por Maria Esther). Com raz�o. O cachorro foi, afinal, o “primeiro animal domesticado” da Hist�ria, com fins de guarda e ca�a, sendo “impens�vel fora do contexto das culturas humanas”.

 

Em tr�s cap�tulos sucessivos – v�-se que este � um leitmotiv –, a autora vale-se de algum exemplo filos�fico ou liter�rio em que um pet lan�a olhar enigm�tico sobre seu dono. Ressalta-se, nesses casos, a incompreens�o da linguagem – bem como as tentativas de tradu��o e comunica��o – interesp�cies. No primeiro deles, Jacques Derrida, pelado no banho, � observado pelo gato e se sente envergonhado. No segundo, Rubi�o, em “Quincas Borba”, de Machado de Assis, � observado junto � porta pelo c�o Quincas Borba, herdado do falecido hom�nimo, e se pergunta se n�o � este no corpo daquele. 

 

“Emerge, nessas cenas, a intrigante d�vida advinda da ignor�ncia humana diante do que se passa no interior de um bicho: O que esse c�o sabe sobre mim?”, questiona Maria Esther. No terceiro exemplo, Tereza, em “A insustent�vel leveza do ser”, de Milan Kundera, � observada por Karenin, logo antes da cadela sofrer eutan�sia: “‘Aquele olhar era uma pergunta �vida’”. 

 

Por falar em olhar, h� cr�tica de cinema em “Animalidades”. N�o � para menos: Maria Esther fez p�s-doutorado em Literatura e Cinema pela Universidade de Londres. No cap�tulo 4 (dedicado a Lalinha), a autora compara, indiretamente, duas sequ�ncias de mortes de c�es. Ela n�o poupa a adapta��o de “A insustent�vel leveza do ser” (Philip Kauffman, 1988): “A presen�a canina � pontual, e at� mesmo a cena do sacrif�cio da cadela n�o deixa de ser sucinta, o que, de certa forma, minimiza a quest�o animal na pel�cula”. Por outro lado, cobre de louros “Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963): “O ‘realismo’ adv�m desses recursos criativos, em n�tida conson�ncia com os recursos visuais inerentes � escrita do autor alagoano. [...] Tanto que houve quem achasse, na �poca, que a cachorra que interpretara Baleia tivesse sido realmente assassinada”. Isso mesmo, interpretara (a Palma Canina premia os pets desde 2001, no Festival de Cannes).

 

Outros bichos e escritores brasileiros que comp�em a fauna do livro incluem (sobretudo a partir da parte 2) peixes, b�falo e baratas, em Clarice Lispector; aves e porco, em Hilda Hilst; boi, em Carlos Drummond de Andrade. “Ao torn�-los personagens, ela [Clarice] explora tanto a complexidade que os define como seres quanto os paradoxos que definem nossas rela��es com eles”, reflete Maria Esther.

 

A autora dedica o �ltimo cap�tulo � literatura contempor�nea do s�culo 21. Segundo ela, muitos dos nossos “animalistas” de hoje prov�m de “povos ind�genas e comunidades ribeirinhas, amea�adas ou exterminadas pela viol�ncia de garimpeiros, madeireiros, fazendeiros do agroneg�cio, grandes corpora��es capitalistas e institui��es governamentais.” “N�o s�o poucos os que se voltam, de maneira prism�tica e inventiva, para essas quest�es”, observa. 

 

Quando Maria Esther ganhar um Jabuti, por “Animalidades” ou algum outro livro, poder� coloc�-lo numa prateleira de pr�mios ou ent�o no jardim, na companhia dos outros bichos que por ali “aparecem, todos os dias”. 

 

Adriano Cirino � jornalista graduado pela UFMG, colaborador do jornal Rascunho e da revista piau�

 

 

TRECHO DO LIVRO

 

“Na vasta poesia de Drummond, os bois e as vacas tamb�m aparecem na condi��o de ‘eles’ e ‘elas’, convertidos em figuras po�ticas recorrentes. Por ter vivido a inf�ncia no interior de Minas, onde seu pai foi fazendeiro, o poeta nunca deixou de evocar as paisagens rurais dos anos em que esteve em contato mais direto com animais, trabalhadores do campo, planta��es e elementos naturais do seu entorno. Da� que, em seus poemas, tenha enfocado as reminisc�ncias dessa viv�ncia, flagrando as belezas, os reveses e as contradi��es das comunidades rurais do seu tempo de crian�a. Comunidades essas, vale lembrar, compostas de rela��es interespec�ficas, nas quais homens, animais e plantas se misturavam de forma intr�nseca.

 

Nessas comunidades rurais h�bridas – hoje rarefeitas ou quase extintas pela a��o devastadora da industrializa��o das fazendas e da prolifera��o das granjas e dos cativeiros de reprodu��o -, humanos e n�o humanos se inseriam num espa�o feito n�o apenas de trocas de experi�ncias, aprendizagens e afetos, como tamb�m de conflitos, embates, viol�ncia e explora��o. Trata-se de uma sociedade em que a intera��o das esp�cies, atravessada por elementos bastante contradit�rios, constitui um espa�o compartilhado no qual a animalidade, longe de ser vista como uma amea�a aos humanos, torna-se uma condi��o comum entre homens e outros viventes animais.

 

Carlos Drummond de Andrade tratou dessas contradi��es em muitos poemas ao longo de sua trajet�ria liter�ria, em especial nos livros ‘Boitempo’, de 1968, e ‘Menino antigo’ (Boitempo II), de 1973 – de expl�cito vi�s memorial�stico.

 

A pr�pria inser��o da palavra ‘boi’ dentro do neologismo ‘boitempo’ usado como t�tulo dessas obras j� aponta para esse universo vivenciado pelo menino Drummond no mundo rural e para a ideia de passado como mat�ria de rumina��o. O boi torna-se, ent�o n�o apenas o animal de refer�ncia para a rememora��o da ro�a como um espa�o perdido no tempo, virando um ‘personagem’ l�rico, mas tamb�m uma palavra capaz de deflagrar cenas e cen�rios da vida vivida pelo poeta em tempos remotos, algo que j� havia se presentificado no poema ‘O boi’, do livro ‘Jos�’, de 1942, em que o boi parece associado � solid�o no campo, em contraponto � solid�o do homem na cidade.”

 

 

(Trecho do cap�tulo “A zoopo�tica de Carlos Drummond de Andrade”, de “Animalidades”, de Maria Esther Maciel)

 

 

“Animalidades: zooliteratura 

e os limites do humano”

De Maria Esther Maciel.

Editora Instante.

176 p�ginas.

R$ 69,90.

Lan�amentos neste s�bado (17/06) das 11h �s 14h na Livraria Quixote (Rua Fernandes Tourinho, 274) em Belo Horizonte e no dia 24/06, �s 16h, na Livraria Janela (Rua Maria Ang�lica, 171), no Rio de Janeiro.

 

 

Sobre a autora

 

Maria Esther Maciel nasceu em 1963 em Patos de Minas (MG). Ensa�sta e ficcionista, � professora de Literatura da UFMG e autora de “O livro dos nomes” (2008, men��o especial no Pr�mio Casa de las Am�ricas 2009), “Literatura e animalidade” (2016), “Longe, aqui.” (2020) e “Pequena enciclop�dia de seres comuns” (2021), entre outros t�tulos. Foi finalista dos pr�mios Jabuti, S�o Paulo de Literatura, Portugal Telecom e Oceanos. Atualmente � professora colaboradora da P�s-Gradua��o em Hist�ria e Teoria Liter�ria na Universidade Estadual de Campinas. Integrante da Academia Mineira de Letras, Maria Esther � tamb�m diretora editorial da Revista Olympio.

 

 


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