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Estado de Minas PENSAR

Em livro, Amin Maalouf apresenta as cruzadas do ponto de vista dos �rabes

Narrativa hist�rica da cisma milenar entre duas civiliza��es volta �s livrarias com pref�cio atualizado pelo autor franco-liban�s


17/03/2023 04:00 - atualizado 16/03/2023 23:23

 

Cavaleiro árabe durante as Cruzadas
Outro lado: livro de Amin Maalouf apresenta vis�o das Cruzadas pela perspectiva dos invadidos (foto: Reprodu��o)

“N�o sei se � um pasto de animais selvagens ou minha casa, minha terra natal!” A indigna��o � de um poeta an�nimo, da cidade mu�ulmana de Maarate, no ano de 1098, ap�s a invas�o dos cruzados, chamados pelos turcos e sarracenos da f� isl�mica de “franj” ou “francos”, independentemente da regi�o europeia de origem. Aquela pr�spera localidade sob o califado xiita Fat�mida - atualmente territ�rio s�rio -, onde nascera Abu al-Ala al-Maaari (973 - 1057), expoente da literatura �rabe, fora um dia protegida por muralhas e guarnecida por vinhedos, campos de oliveira e figueiras.

Os francos, que a caminho de Jerusal�m j� haviam aniquilado Niceia e Antioquia, por tr�s dias ininterruptos passaram a popula��o de Maarate sob o fio da espada. Em atos de canibalismo, cozinharam mu�ulmanos em caldeir�es, empalando-os em seguida, antes de abocanh�-los. Quem relata � tamb�m o cronista franco Raul de Caen: “Em Maarate, os nossos ferviam os pag�os adultos em marmitas, enfiavam as crian�as em espetos e as devoravam grelhadas”. 

 

Buscando justificar a barb�rie, os cruzados escreveriam ao papa no ano seguinte: “Uma terr�vel fome assolou o ex�rcito em Maarate e o colocou na cruel necessidade de se alimentar dos cad�veres dos sarracenos”. Mas de fato, houve comportamentos de grupos de francos fan�ticos, denominados tafurs, que nem a fome pode explicar: os testemunhos d�o conta de que estes se espalhavam pelos campos clamando pelo desejo de comer a carne dos sarracenos.

O cronista franco Alberto de Aquisgr�o, que participou da Batalha de Maarate, afirma: “Os nossos n�o se repugnavam de comer n�o apenas os turnos e os sarracenos mortos como tamb�m os c�es!”. A imagem do canibalismo praticado pelos cruzados europeus, que se propaga entre as popula��es �rabes de uma na��o de califados convertidos ao isl�, foi descrita tamb�m pelo emir e cronista Osama Ibn Munqidh: “Todos os que se informaram sobre os franj viram neles animais que t�m a superioridade da coragem e do ardor no combate, mas nenhuma outra, assim como os animais t�m a superioridade da for�a e da agress�o”.

 

"As cruzadas representam um acontecimento fundador no conflito entre o Ocidente e o mundo �rabe"

Amin Maalouf

 

Diferentemente da perspectiva hist�rica ocidental, o olhar �rabe, expresso em testemunhos registrados por quem viveu aquela guerra iniciada h� quase um mil�nio, revela o choque de civiliza��es e de vers�es sobre o curso das cruzadas. Enquanto para os europeus elas significam um renascimento cultural e econ�mico, e o fortalecimento da f� crist� em detrimento de “infi�is”; para os �rabes, marcam longos per�odos de devasta��o de estrangeiros “b�rbaros” de suas terras, atos de vandalismo e canibalismo contra as popula��es, al�m do isolamento pol�tico e econ�mico.

Essa contraposi��o de perspectivas emerge na obra “As cruzadas vistas pelos �rabes”, do franco-liban�s Amin Maalouf, autor consagrado e membro da Academia Francesa, na cadeira que pertenceu a Claude L�vi-Strauss. Escrito no come�o da d�cada de 1980, o relato hist�rico � hoje um cl�ssico reproduzido em mais de 30 pa�ses e alcan�a mais de 90 edi��es. A mais recente delas acaba de ser reeditada no Brasil, pela Editora Vest�gio, do grupo Aut�ntica, com posf�cio atualizado pelo autor. 

 

O estranhamento de uma sociedade �rabe mais urbanizada e educada em rela��o � ignor�ncia e o “atraso” cient�fico dos iletrados cruzados, origin�rios de uma sociedade agr�ria feudal, � recuperado na obra de Maalouf. Nas comunica��es, os orientais mant�m um sofisticado sistema de pombos-correios, adestrados de tal modo que sempre retornam ao ninho de origem, t�cnica completamente desconhecida dos cruzados, que mais tarde a implementariam na Europa. E se o sistema de justi�a ocidental, com diversas formas de supl�cio aleat�rios, � considerado absurdo e cruel, na cr�nica mu�ulmana da �poca, sobretudo na medicina, os orientais se percebem, muito avan�ados em rela��o aos crist�os. Em 1138, o emir Osama Ibn Munqidh, registra em tom cr�tico, os m�todos de um m�dico franco, que se apresentou para cuidar de uma mulher que definhava em consequ�ncia da febre. Contou ele que, depois de mandar raspar os cabelos da paciente, vaticinando que o “diabo havia entrado em sua cabe�a”, pegou uma navalha, fez uma incis�o em forma de cruz at� aparecer o osso craniano. Ent�o, esfregou-o com sal. A mulher morreu durante o procedimento.

 

Sob a influ�ncia da Igreja Cat�lica e do Imp�rio Bizantino, as cruzadas marcam o nascimento do movimento expansionista europeu, em que contingentes militares de diversas regi�es daquele continente feudal, rumam �s terras localizadas no mundo oriental. Partem da convoca��o, em 1095, do papa Urbano II, durante o Conc�lio de Clermont – cidade francesa onde ocorreu a reuni�o das principais lideran�as da Igreja: os crist�os de toda a Europa deveriam se organizar em um grande ex�rcito para arrancar Jerusal�m do dom�nio dos “infi�is”. Em duplo movimento, o papa tamb�m atendia ao apelo do imperador bizantino Aleixo Comnemo (1048-1118), governante de Constantinopla (hoje Istambul), interessado em retomar as cidades de Antioquia e Niceia, capturadas pelos turcos selj�cidas, estes, inclusive advers�rios do Califado Fat�mida, que dominava Jerusal�m.

As cruzadas, que assim se chamam em refer�ncia � cruz que os cavaleiros usavam em suas roupas quando em marcha da Europa at� o Oriente, revestem-se da narrativa de uma “guerra santa”, pois o combate se daria contra aqueles que professavam uma f� diferente do cristianismo. Mas tinham, igualmente, objetivos comerciais, pois buscavam aproximar o Oriente do Ocidente e, assim, ampliar as atividades comerciais, principalmente as de G�nova e Veneza, na Pen�nsula It�lica. 

 

“As cruzadas representam um acontecimento fundador no conflito entre o Ocidente e o mundo �rabe”, assinala em novo pref�cio da obra Amin Maalouf, para quem, o enfrentamento entre o isl� e a cristandade segue vivo na mentalidade do mundo �rabe e do Ocidente, suscitando rancores, novos conflitos e tens�es que se arrastam ao longo da hist�ria. Embora possam ser descritas em nove incurs�es religiosas, militares e comerciais, iniciadas no s�culo 11 com a narrativa de “resgate” de Jerusal�m � �poca sob dom�nio isl�mico; mesmo encerradas com a expuls�o definitiva dos cruzados da “Terra Santa” por mu�ulmanos em 1291; prosseguiu sob outra denomina��o entre os s�culos 15 e 20, quando as na��es crist�s europeias continuaram a expans�o colonial rumo � �frica e �sia. Amin Maalouf ressalta que a Inglaterra, Fran�a, R�ssia e Pa�ses Baixos, e, em menor escala It�lia, Portugal e Espanha ocuparam quase todas as na��es de popula��es mu�ulmanas. “Do Senegal a Java, passando pelo Magrebe, pelo Egito, pelo C�ucaso e pelas �ndias. Seguiram-se guerras coloniais traumatizantes, como as da Arg�lia, da L�bia, do Afeganist�o e da Tchetch�nia, que deixaram sequelas amargas”, afirma o autor, que assinala: a cria��o, em 1948, do Estado de Israel, na mesma terra em que fora fundado o reino cruzado de Jerusal�m, pareceu aos �rabes um novo epis�dio das cruzadas. 

 

“Na Europa, continuou-se por s�culos a falar de ‘cruzadas’, no sentido literal de uma mobiliza��o da cristandade contra os mu�ulmanos, especialmente contra o Imp�rio Otomano” observa Maalouf, lembrando que a grande batalha naval de Lepanto, em outubro de 1571, em que a frota turca foi derrotada pelas na��es cat�licas, foi interpretada como um epis�dio tardio das cruzadas. Quase cinco s�culos mais tarde, quando em 1917 o general ingl�s Edmund Allenby conquistou a Palestina, ele teria explicitado, segundo menciona Maalouf: “Somente hoje as cruzadas chegam ao fim!”. Mas de fato, n�o chegaram. O atentado ao papa Jo�o Paulo II, em 1981, pelo turco Mehmet Ali Agca; o tr�gico 11 de setembro, de 2001; a invas�o do Iraque e do Afeganist�o por for�as ocidentais, s�o novos epis�dios do conflito, que est� longe de chegar a termo. “Eu seria o primeiro a me alegrar se as cruzadas e as contra-cruzadas pudessem ser relegadas de uma vez por todas � lata de lixo da Hist�ria, para que a harmonia enfim reine em todo o per�metro mediterr�neo e no restante do planeta. Infelizmente, isso n�o parece em vias de acontecer”, afirma Maalouf. Em busca da compreens�o dos dramas ainda t�o atuais, o escritor retoma as guerras do passado. E o faz sob a perspectiva �rabe, clareando ao Ocidente uma vers�o raramente relatada na Europa da hist�ria.

 

 

Fogo da guerra

 

 

“A pior arma do homem � derramar l�grimas quando as espadas ati�am o fogo da guerra”, exultava o vener�vel c�di (magistrado) Abu-Sadd al-Harawi, ao adentrar, em agosto de 1099 na ampla sala do conselho do califa al-Mustazhir-billah, em Bagd�. Ap�s tr�s semanas em lombos de camelos sob o insuport�vel sol do deserto s�rio, al-Harawi, que sa�ra de Damasco, alcan�ara o seu destino. Invocava contra os francos e pedia a uni�o dos l�deres mu�ulmanos - desde o in�cio do s�culo 10 divididos entre a dinastia xiita fat�mida, com capital no Cairo, e a sunita ab�ssida, com sede em Bagd�. A caminho de Jerusal�m, que conquistaram em 15 de julho de 1099, os cruzados haviam deixado um rastro de horrores e matan�a, inclusive queimando fi�is vivos que tentaram se proteger nas sinagogas, al�m de v�rios atos de pilhagem. “Voc�s ousam dormitar � sombra de uma feliz seguran�a, numa vida fr�vola como a da flor do jardim, enquanto seus irm�os s�rios t�m por �nica morada o dorso dos camelos e as entranhas dos abutres? Quanto sangue derramado!”, prossegue al-Harawi, que estava acompanhado de centenas de refugiados da Palestina e da S�ria do Norte. 

 

Em princ�pio, o chamado de al-Harawi � jihad n�o despertou rea��o do califado ab�ssida. “O saque de Jerusal�m, ponto de partida de uma hostilidade milenar entre Isl� e o Ocidente, n�o provoca, na hora, nenhuma rea��o. � preciso esperar quase meio s�culo para que o Oriente �rabe se mobilize diante do invasor e para que o chamado ao jihad lan�ado pelo c�di de Damasco na sala do conselho do califa seja celebrado como o primeiro ato de resist�ncia”, registra Amin Maloouf nesse instigante pr�logo da obra. 

 

Durante quase um s�culo os fat�midas e os ab�ssidas se mantiveram nas capitais de seus imp�rios sem rea��o enf�tica na defesa das cidades �rabes que tombavam sob os cruzados. Pagaram o pre�o pela ina��o, e a contraofensiva isl�mica, que mudou o curso das cruzadas, partiu de l�deres mu�ulmanos estrangeiros como Zengui (1085-1146), governador de Alepo e de Mossul, que estrutura um disciplinado ex�rcito e � celebrado como o primeiro grande combatente do jihad contra os franj; o turco Noradine (1118-1174), segundo soberano da dinastia z�nguida, que governa a S�ria e o Iraque entre1146 e 1174; e, na sequ�ncia Saladino (11174-1193), curdo sunita que unificou mu�ulmanos para expulsar os invasores, conseguindo reconquistar Jerusal�m em 1187. Novas cruzadas e contraofensivas contra mu�ulmanos aconteceram, com ataques simult�neos dos francos, a oeste e dos mong�is – t�rtaros –  a leste. � o historiador curdo e sult�o Abul-Fida (1273-1331) quem relata a expuls�o dos cruzados em 1291, com a reconquista do territ�rio mu�ulmano, agora sob o comando mameluco: “Todas as terras do litoral voltaram integralmente aos mu�ulmanos, resultado inesperado. Os franj, que tinham estado a ponto de conquistar Damasco, o Egito e v�rias outras regi�es, foram expulsos de toda a S�ria e das zonas costeiras. Queira Deus que nunca voltem a pisar aqui!”.

 

A ironia da hist�ria, quem aponta, � o autor Amin Maalouf. “Na �poca das cruzadas, o mundo �rabe, da Espanha ao Iraque, ainda � intelectual e materialmente o deposit�rio da civiliza��o mais avan�ada do planeta. Depois, o centro do mundo se desloca decididamente para o oeste”, afirma ele. “Em medicina, astronomia, qu�mica, geografia, matem�tica, arquitetura, os franj obtiveram seus conhecimentos dos livros �rabes que eles assimilaram, imitaram e depois superaram”, considera, lembrando que na ind�stria os europeus tomaram dos �rabes a fabrica��o de papel, o trabalho do couro e dos tecidos, a destila��o do �lcool e do a��car, estas, palavras de uma longa lista de saberes que guardam a origem �rabe. 

 

Se para a Europa ocidental, a �poca das cruzadas foi o in�cio de uma revolu��o econ�mica, cultural; para o Oriente, as guerras santas o arrastariam a s�culos de decad�ncia e obscurantismo, apesar da quase totalidade das vit�rias militares alcan�adas sobre os crist�os. Em todos os �mbitos, os francos, que aprenderam a l�ngua �rabe e absorveram o legado da civiliza��o grega, transmitido � Europa pelos �rabes, se prepararam para a sua futura expans�o. Para o Isl�, a hist�ria foi outra. Se o que o Ocidente pretendia era conter o Isl�, foi fragorosamente derrotado. � a religi�o que mais cresce no mundo. Mas, ao mesmo tempo, sitiado por todos os lados, o mundo mu�ulmano tamb�m se encolhe sobre si mesmo. “O progresso, agora, vem do outro. O modernismo vem do outro. Melhor afirmar sua identidade cultural e religiosa, rejeitando o modernismo simbolizado pelo Ocidente? Melhor, ao contr�rio, se engajar decididamente no caminho da moderniza��o, correndo o risco de perder sua identidade? Nem o Ir�, nem a Turquia, nem o mundo �rabe conseguiram resolver esse dilema”, diz Maalouf.  

 

“As cruzadas vistas pelos �rabes”

 

  • Amin Maalouf
  • Tradu��o de J�lia de Rosa Sim�es
  • Editora Vest�gio
  • 304 p�ginas
  • R$ 78,90
  • E-book: R$ 55,90

 


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