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Cl�ssico 'O pequeno pr�ncipe' completa 80 anos muito al�m dos clich�s

Livro de Antoine de Saint-Exup�ry tem mensagens sutis sobre a condi��o humana que devem ser compreendidas junto da vida �pica do piloto-escritor


28/04/2023 06:00 - atualizado 28/04/2023 00:31

e não incluído na obra, foi comprado em leilão, após a morte dele, pelo colecionador suíço Bruno Stefanini
Esbo�o de 'O pequeno pr�ncipe', desenhado por Saint-Exup�ry e n�o inclu�do na obra, foi comprado em leil�o, ap�s a morte dele, pelo colecionador su��o Bruno Stefanini (foto: AFP/Funda��o para Arte, Cultura e Hist�ria da cidade de Winterthur (Su��a))
O que h� de t�o especial na hist�ria do aviador que cai no deserto e encontra uma crian�a muito curiosa que veio de outro mundo? O menino  louro vestido como um pequeno pr�ncipe sai do asteroide B612, se aventura por outros planetas e conhece personagens exc�ntricos ensimesmados em seus pr�prios universos. Ao chegar ao deserto do Saara inicia um di�logo com o piloto que prima pela sutileza e leva a reflex�es sobre temas caros ao ser humano, como o sentido da vida, afeto, amizade, solid�o e morte.

 

� o segundo livro mais lido do mundo depois da “B�blia”, traduzido para quase 500 idiomas e dialetos ao longo de oito d�cadas – foi lan�ado em 6 de abril de 1943. Conhecido por mensagens simples e ao mesmo profundas – como “s� se v� bem com o cora��o”, “o essencial � invis�vel aos olhos”, a raposa que quer se cativada e o poder da imagina��o com o elefante oculto dentro da jiboia e o carneirinho dentro da caixa –, “O pequeno pr�ncipe”, do escritor e aviador franc�s Antoine de Saint-Exup�ry (1900-1944), segue como fen�meno mundial.

 

O sucesso se explica para al�m dos clich�s pin�ados da obra. De correio a�reo a piloto de guerra durante tr�s d�cadas, Saint-Exup�ry teve uma vida �pica, quase inacredit�vel. Para compreender com mais profundidade sua f�bula atemporal, ilustrada pelo pr�prio autor, � fundamental conhecer sua trajet�ria de grandes riscos, com acidentes graves com os primeiros avi�es, ainda na d�cada de 1920 – engenhocas voadoras, com cabines abertas, voavam a apenas 150km/h e conseguiam altitude m�xima de at� cinco mil metros –, at� o seu desaparecimento misterioso em pleno voo durante a Segunda Guerra Mundial. Ele tamb�m atravessou o c�u do Brasil e por aqui deixou muitas lembran�as como “Zeperri”, do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul.

 

Na passagem de anivers�rio do livro, a Companhia das Letrinhas fez a reimpress�o da edi��o capa dura lan�ada em 2015, que inclui uma pequena biografia de Saint-Exup�ry e muitas curiosidades sobre o autor, a cria��o do livro e os fatos que entrela�am sua vida com sua principal e derradeira obra, entre as v�rias que escreveu. A tradu��o e os textos adicionais s�o da pesquisadora M�nica Cristina Corr�a, doutora em l�ngua e literatura francesa e especialista na vida e na obra de Saint-Exup�ry.

 

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Ao longo do tempo, uma pergunta persiste? “O pequeno pr�ncipe” � um livro para crian�a ou para o adulto que mant�m dentro de si a crian�a que foi um dia? “'O pequeno pr�ncipe' se mostra um livro para crian�as, mesmo aquelas que est�o ocultas, ou seja, as j� “invis�veis” porque dentro de gente grande, que j� cresceu. � o mesmo jogo do carneirinho que est� contido na caixa, mas n�o se v�, e do pr�prio elefante que est� dentro da jiboia e os adultos n�o percebem, mas est� l�”, afirma M�nica Corr�a em entrevista ao Pensar.

 

Logo no primeiro cap�tulo do livro, ainda antes de apresentar seu encontro no deserto com o pequeno pr�ncipe, o narrador desabafa sobre sua frustra��o ap�s submeter aos adultos o seu desenho que � aparentemente um chap�u, mas ningu�m consegue compreender o verdadeiro conte�do.

 

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“Ao longo da vida tive um monte de contatos com um monte de gente. Convivi muito com gente grande. Vi gente grande bem de perto, e que n�o melhorou muito a minha opini�o. Quando encontrava uma pessoa adulta que me parecia mais l�cida, fazia com ela a experi�ncia do meu desenho n�mero 1, que sempre guardei. Queria saber se realmente era compreensiva. Mas ela sempre respondia: '� um chap�u'. Ent�o eu n�o lhe falava de jiboias, nem de florestas virgens, nem de estrelas. Falava de bridge, de golfe, de pol�tica e de gravatas. E a pessoa adulta ficava muito contente de conhecer um homem t�o sensato”, conta o narrador da trama.

 

“E assim vivi s�, sem ningu�m com quem conversar verdadeiramente, at� uma pane no deserto do Saara”, segue o piloto-narrador. At� ser surpreendido: “Por favor, me desenha um carneirinho?”. Mas nenhum desenho satisfaz o pequeno pr�ncipe, at� que, sem paci�ncia, o piloto desenha uma caixa qualquer e afirma que o carneiro est� dentro dela. E acaba, sem querer, atingindo o seu objetivo. “� assim mesmo que eu queria”, diz o pequeno pr�ncipe. A sofistica��o e a delicadeza de Saint-Exup�ry para transmitir essa mensagem sobre a import�ncia da imagina��o, que as crian�as t�m de sobra e os adultos desdenham e quase n�o exercitam, s�o enternecedoras.

 

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A mensagem parece ser clara: n�o deixe nunca morrer a crian�a que sobrevive em cada adulto. Afinal, como o afeto – que mais � frente na obra aparece na figura da raposa que pede para ser cativada – a imagina��o, e a partir dela a criatividade, tamb�m � essencial � vida humana.

 

� gra�as a ela que � poss�vel seguir em frente na vida com a presen�a das lembran�as – no caso o desaparecimento-morte do pequeno pr�ncipe. E na vida real, para seus milh�es de leitores mundo afora, o desaparecimento do pr�prio piloto-escritor em pleno voo, j� que seu corpo nunca foi encontrado.

 

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Mensagens assim garantem a perenidade do cl�ssico de Saint-Exup�ry, muito al�m dos clich�s pin�ados do livro e transformados em autoajuda. “A obra se sobrep�e aos clich�s e tem uma rara vida liter�ria. Vida intemporal, pois n�o se sente nunca 'O pequeno pr�ncipe' como um livro datado. Isso porque ele trata de valores imperec�veis centrados num ponto: o de dar sentido � vida. Sendo a morte inexor�vel, o essencial � encontrar uma raz�o para se viver”, analisa M�nica Cristina Corr�a.

VIDA DE RISCOS

Para compreender a plenitude de “O pequeno pr�ncipe” � fundamental conhecer a incr�vel exist�ncia de Saint-Exup�ry, que espalha detalhes autobiogr�ficos por sua principal obra, sejam expl�citos – como os voos no deserto e a raposa –, sejam impl�citos – como a rosa de dif�cil trato e as conjecturas sobre sua representatividade na vida do autor. Antoine Jean-Baptiste Marie Roger de Saint-Exup�ry nasceu numa fam�lia de origem aristocr�tica, mas empobrecida, em Lyon, na Fran�a, em 29 de junho de 1900. Era o terceiro de cinco filhos do cal Jean de Saint-Exup�ry e Marie de Fonscolombe.

 

Perdeu o pai, v�tima de derrame cerebral, aos 5 anos, o que obrigou sua m�e, aos 28 anos, a morar seguidamente em dois castelos de parentes. Nessa �poca, o menino foi despertado para a avia��o, quando conheceu pilotos que faziam experi�ncias com modelos de avi�o. Mas esse mundo de aventuras e fantasias no castelo ruiu em 1914, quando estourou a Primeira Guerra Mundial.

 

Com apenas 14 anos, Antoine e seu irm�o Fran�ois – que morreria em 1917 de reumatismo infeccioso – foram levados para a um internato na Su��a, enquanto sua m�e, que pintava, tocava piano e escrevia poesias, permaneceu na Fran�a com as filhas trabalhando como enfermeira junto aos feridos da guerra. Da Su��a, o futuro piloto-escritor foi transferido para uma escola em Paris, onde fez amizade com artistas e escritores. Mas logo veio o alistamento no servi�o militar, em 1921. Ainda sem saber que essa seria sua profiss�o – como conta M�nica Corr�a no posf�cio da �ltima edi��o de “O pequeno pr�ncipe”–, Saint-Exup�ry teve o caminho para sua carreira na avia��o civil e militar ao ser incorporado ao Segundo Regimento de avia��o de Estrasburgo.

 

Em 1923, Saint-Exup�ry sofreu o primeiro acidente grave num aeroporto pr�ximo a Paris, que deixou sequelas f�sicas. Nessa �poca, estava noivo de Louise, de fam�lia rica, que n�o o aprovava. Largou a profiss�o, mas o noivado tamb�m acabou, enquanto ele tentou outros empregos sem obter satisfa��o. Entre os muitos pilotos desempregados ap�s o fim da Primeira Guerra, enfim, encontrou sua rota definitiva. Em 1926, um antigo professor o indicou � companhia Lat�co�re, que come�ou a fazer correio a�reo, apesar da precariedade dos avi�es, para as col�nias francesas no Norte da �frica, como Marrocos e Arg�lia, e queria estender o servi�o at� a Am�rica do Sul.

 

Os pilotos eram obrigados a entender de mec�nica porque viajavam sozinhos e tinham que saber consertar as aeronaves, sempre com muitas panes. Outra grave amea�a eram as tribos �rabes no deserto do Saara hostis aos colonizadores que atacavam e faziam pilotos ref�ns. Saint-Exup�ry, devido � sua facilidade de comunica��o e ao seu poder de concilia��o, foi mandado pela Lat�co�re para Cabo Judy (hoje Tarfaya), uma das escalas da companhia no Marrocos. Foi viver numa cabana pr�xima a um forte espanhol para negociar, com �xito, resgate de pilotos com os rebeldes e tamb�m prestar socorro a outros pilotos em caso de pane.

 

O deserto inspirou a cria��o de “O pequeno pr�ncipe”. “A solid�o do lugar lhe permitiu um profundo mergulho em si mesmo. Possibilitou diferenciar o que realmente valia a pena na vida daquilo que era pura realidade material. Por isso, ao longo do texto [do livro] ele tenta passar a ideia de que existe algo al�m do vis�vel. E que o invis�vel � essencial, mesmo que nossos olhos n�o possam enxerger”, conta M�nica Cristina Corr�a no posf�cio da obra. Ela cita tamb�m, neste contexto, o elefante dentro da jiboia e o carneirinho na caixa. Teria vindo da� tamb�m a ideia da partida-desaparecimento do pequeno pr�ncipe, mas sua presen�a se torna invis�vel e perene.

 

Foi no deserto tamb�m que surgiu a ideia de um dos principais personagens de “O pequeno pr�ncipe”, a raposinha orelhuda. Ali, Saint-Exup�ry teve contato com um feneco, uma raposa-do-deserto, de orelhas compridas. “Estou criando uma raposa feneco ou raposa solit�ria. � menor do que um gato e provida de orelhas imensas. � ador�vel! Infelizmente, � selvagem como uma fera e ruge como um le�o”, escreveu ele em carta � irm� Gabrielle, em 1928.

“ZEPERRI” NO BRASIL

Depois da temporada no Saara, Saint-Exup�ry foi nomeado para uma miss�o mais distante, a Am�rica do Sul. Em 1929, partiu para Buenos Aires como chefe da sucursal da companhia, ap�s atravessar o Atl�ntico de navio, j� como funcion�rio da Aeropostale, novo nome da Lat�co�re. O piloto trabalhou na implanta��o do correio a�reo entre Natal (RN) e o Chile. Os avi�es eram muito limitados, n�o conseguiam atravessar o Atl�ntico. Eram, ent�o, transportados de navio da �frica para a Am�rica do Sul. E como precisavam de muita manuten��o e de abastecimento frequente, foram criadas escalas em cidades da extensa costa brasileira. Em situa��es adversas, os pilotos franceses contavam com a ajuda de pescadores e outros habitantes locais. Traziam gramofones e discos da Fran�a e promoviam bailes nos hangares, ganhando a simpatia dos brasileiros.

 

Mesmo com o pouco tempo que esteve no Brasil, entre o fim de 1929 e mar�o de 1931, conta M�nica Cristina Corr�a, Saint-Exup�ry, ficou famoso nas cidades por onde passou. Com seu nome dif�cil de pronunciar para os brasileiros, ficou conhecido como “Zeperri”. Com esse apelido, ele se tornou popular, por exemplo, em Florian�polis e Pelotas (RS). “Seu Deca”, pescador na capital catarinense, se dizia amigo do futuro escritor e contou que ele “estava sempre anotando alguma coisa e que gostava tamb�m de comer beijus feito com farinha de mandioca”, lembra M�nica Corr�a.

 

Em Porto Alegre, Saint-Exup�ry e colegas chamavam a aten��o passeando pela cidade com suas capas de piloto, profiss�o de grande novidade para a �poca. O piloto franc�s se tornou popular tamb�m no Rio de Janeiro e em Santos (SP). “Nem vou lhes falar dos pores do sol no Rio de Janeiro”, escreveu ele. A cidade era a capital do Brasil e ponto tur�stico aclamado recebia, inclusive, muitos franceses.

 

Foi em Buenos Aires, na Argentina, durante suas viagens de correio a�reo, que Saint-Exup�ry conheceu sua futura mulher, a artista Consuelo de Sunc�n, vi�va de El Salvador, com quem se casou na Fran�a e teve conviv�ncia dif�cil. Na d�cada de 1930, ele foi trabalhar na rec�m-criada Air France, que incorporou a Aeropostale e outras companhias. Nessa �poca, sofreu o segundo acidente grave ao cair no mar no sul da Fran�a, na regi�o de C�te d'Azur. A evolu��o dos avi�es era acelerada e Saint-Exup�ry testava v�rios modelos, inclusive hidroavi�es.

 

A eclos�o da Segunda Guerra, em 1939, foi outro baque na vida do piloto. Ele fez miss�es militares de reconhecimenmto a�reo at� que decidiu se mudar para os EUA, em 1940. Viveu dois anos em Nova York, onde escreveu “O pequeno pr�ncipe”, lan�ado em 6 de abril de 1943. J� era escritor conhecido com livros sobre avia��o, como “Terra dos homens”, “Correio do sul” e “Piloto de guerra”. Amargurado com a guerra e vendo seu pa�s ocupado pelos nazistas, contatou a for�a a�rea francesa para lutar contra os alem�es. Apesar da idade avan�ada para ser piloto, pois j� estava com 44 anos, e da pouca moblidade como sequela dos acidentes, tinha contatos influentes e conseguiu atuar como piloto de reconhecimento sobre a Fran�a. Era dif�cil para ele pilotar um avi�o moderno em compara��o com as engenhocas de d�cadas antes.

 

Ent�o, chegou o tr�gico dia. Em 31 de julho de 1944, quando seu grupo estava situado na C�rsega, ilha francesa no Mediterr�neo, Saint-Exup�ry decolou para uma miss�o na Su��a, �s 8h30. E nunca mais voltou. Em 1998, um pescador apanhou uma pedra calcificada em sua rede. Ao quebr�-la, encontrou um bracelete com um nome gravado: “Antoine de Saint-Exup�ry”. As buscas no local culminaram nos destro�os do P-38, que ele pilotava. 

 

Com a publicidade do caso, um piloto alem�o idoso, Horst Rippert, afirmou ter abatido o avi�o franc�s em 31 de julho de 1944. E, por ironia do destino, matou o escritor que admirava, porque n�o imaginava que ele estava naquele avi�o voando baixo durante a guerra.

 

 Assim, quando o livro “O pequeno pr�ncipe” foi lan�ado na Fran�a, em 1946, Saint-Exup�ry j� n�o estava mais neste mundo e n�o viu o sucesso estrondoso de sua obra por todo o planeta. Mas milh�es de leitores mant�m viva suas lembran�as com a eternidade do pequeno pr�ncipe do deserto. 

 

“O pequeno pr�ncipe”

 

  • Antoine de Saint-Exup�ry
  • Tradu��o de M�nica Cristina Corr�a
  • Companhia das Letrinhas
  • 176 p�ginas
  • R$ 47,90 (impresso)
  • R$ 19,90 (digital)

 

ENTREVISTA 
M�NICA CRISTINA CORR�A
Pesquisadora e tradutora

 

“Eu apostaria em mais 80 anos de sucesso”

 

A senhora concorda com a an�lise do bi�grafo Joseph Hanimann, autor de “Saint-Exup�ry – Der melancholische weltenbummler” (“Antoine de Saint-Exup�ry – O melanc�lico viajante”), que disse em entrevista ao site DW que “O pequeno pr�ncipe” n�o � um livro infantil, � para a crian�a que ainda existe dentro do leitor adulto?

 

Desde o come�o, “O pequeno pr�ncipe” se mostra um livro para crian�as, mesmo aquelas que est�o ocultas, ou seja, as j� “invis�veis” porque dentro de gente grande, que j� cresceu. � o mesmo jogo do carneirinho que est� contido na caixa, mas n�o se v�, e do pr�prio elefante que est� dentro da jiboia e os adultos n�o percebem, mas est� l�.

 

Na dedicat�ria, ele a faz para L�on Werh, “quando ele era menino”. Se Hanimman se referia apenas �s “crian�as crescidas”, ele se referia, naturalmente, a “gente grande”. Seja como for, se � tamb�m para a crian�a que ainda existe dentro de cada um, � para crian�as.

 

Sobre isso, h� um documento praticamente desconhecido, que foi publicado recentissimamente, em que temos a palavra do autor. Trata-se de um pequeno texto que Saint-Exup�ry dirigiu a seus editores, possivelmente, e traduzo aqui: “E eu mesmo ilustrei este livro para crian�as, ainda que eu n�o saiba desenhar (e n�o tenho sobre isso a menor ilus�o), � que encontrei, na �poca em que estava escrevendo, um garoto de sete anos que havia alinhado pedrinhas numa cal�ada. Como ele as deslocava com gravidade, eu lhe disse: “– Para que te servem essas pedrinhas? – Voc� n�o est� vendo? – respondeu ele. S�o navios de guerra! Esse aqui est� queimando. Esse outro j� afundou! – Ah! Bom. Ent�o, tive confian�a nos meus desenhos”.

 

[O documento � de Nova York, folha datilografada entre 1942 e 1943. Est� publicado no cat�logo da recente exposi��o “A la reencontre du Petit Prince”, em Paris, na qual foram vistos os seus manuscritos. Edi��o da Gallimard, 2022. P�gina 88. Minha tradu��o.] A ideia subjacente no caso � a de que somente uma “crian�a crescida” poderia usufruir de “O pequeno pr�ncipe” e com isso n�o concordo.

 

Conforme a idade, a crian�a poder� percorrer as imagens, ler com os pais ou ler sozinha. O fato � que Saint-Exup�ry, mesmo falando com as crian�as, aborda temas muito complexos, entre os quais o da morte, portanto, das separa��es. E � nisso, me parece, que “gente grande” se baseia para dizer que n�o � para crian�as. O autor, entretanto, argumentou com sua professora de ingl�s, numa conversa, que nada havia de problem�tico em falar de morte com as crian�as, pois elas encarariam isso de forma natural.

 

Por que “O pequeno pr�ncipe” virou esse fen�meno ao longo de oito d�cadas e se tornou o segundo livro mais lido da hist�ria? Uma das raz�es seria porque a relev�ncia da obra de Saint-Exup�ry vai muito al�m das suas mensagens pin�adas como clich�s e muitas vezes descontextualizadas?

 

A obra se sobrep�e aos clich�s e tem uma rara vida liter�ria. Vida intemporal, pois n�o se sente nunca “O pequeno pr�ncipe” como um livro datado. Isso porque ele trata de valores imperec�veis centrados num ponto: o de dar sentido � vida.

 

Sendo a morte inexor�vel, o essencial (para continuar com o autor) � encontrar uma raz�o para se viver. N�o ser� a autoridade (do rei), o v�cio (do b�bado), o automatismo (do acendedor de lampi�es); n�o ser� a gan�ncia do homem de neg�cios, nem a vaidade tola, tampouco o sedentarismo do ge�grafo. Tudo isso, como demonstrado, � viver num “planeta” solit�rio.

 

A ess�ncia que o pequeno pr�ncipe busca e encontra no auge de sua jornada � o entendimento de que apenas as rela��es humanas valem a pena. Isso Saint-Exup�ry verbalizou, ali�s, em seu livro anterior, “Piloto de guerra”, de 1942: “S� h� um luxo verdadeiro: as rela��es humanas”. � nisso que “O pequeno pr�ncipe” se centra, e da� que vem esse substrato imortal. E, por incr�vel que pare�a, ele � extra�do justamente da consci�ncia sobre a morte.

 

A condi��o humana, no meu entender, � o grande trunfo de “O pequeno pr�ncipe”. At� agora, nada mudou: nascemos e morremos. O que est� no meio precisa ser essencial e o grande problema � encontr�-lo para que esse intervalo valha a pena e fa�a sentido, Por isso, eu apostaria em mais 80 anos de sucesso para “O pequeno pr�ncipe”.

 

Como a senhora cita no posf�cio da �ltima edi��o da Companhia das Letrinhas, h� muitos elementos autobiogr�ficos em “O pequeno pr�ncipe”– que tamb�m v�o al�m dos clich�s – desde os mais claros, como a raposinha feneco (raposa-do-deserto), at� outros subliminares, como a rosa, que seria uma esp�cie de representa��o da esposa de Saint-Exup�ry. E ainda refer�ncias b�blicas, como o carneirinho, a serpente e a Terra como s�timo planeta visitado pelo pequeno pr�ncipe, que seria analogia aos sete dias da cria��o do mundo. Essas caracter�sticas aumentam o fasc�nio e o mist�rio da obra? 

 

Na cultura ocidental, em que o livro foi escrito, esses elementos t�m a capacidade de gerar uma profunda identifica��o para o leitor. Eles promovem uma “perten�a”. Sendo religioso ou n�o, o leitor tem essas no��es do inconsciente coletivo, n�? A serpente como s�mbolo da morte, o deserto como lugar de origem, a �gua como fonte da vida, a rosa como s�mbolo do amor (er�tico, inclusive).

 

Muitos desses aspectos transcendem a pr�pria civiliza��o judaico-crist�, mas � preciso lembrar que esta se originou num mundo n�o ocidental. Por isso, o livro parece “abranger” uma identidade muito larga. Mais do que fasc�nio, eu diria que esses elementos geram o sentimento de perten�a.

 

A heroica e incr�vel vida de Saint-Exup�ry, os graves acidentes a�reos e o desaparecimento misterioso em plena Segunda Guerra Mundial, s� desvendado meio s�culo depois, tamb�m aumentam o interesse sobre “O pequeno pr�ncipe”?

 

Sem d�vida, para os que v�o al�m do livro, sim. A mem�ria de um homem raro como Saint-Exup�ry “dialoga” com sua obra-prima. Basta lembrarmos que ele deixou rasurado que o pequeno pr�ncipe chegou a ver 43 pores do sol e mudou para 44. Este � o n�mero de anos que ele pr�prio viveu (1900-1944).

 

E que tamb�m ele desapareceu misteriosamente, sem deixar vest�gios de um corpo, como o pequeno pr�ncipe. O sucesso da obra se calca numa frase prof�tica tamb�m: “Eu parecerei estar morto e n�o ser� verdade”. Estamos constatando isso, n�o? Autor e personagem est�o aqui conosco, bem vivos e com a promessa de permanecer.

 

* Confira v�deos sobre “O pequeno pr�ncipe” clicando aqui 


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