Terra � vista... Mas, neste “barco” aqui, apenas para os ingleses navegadores, cors�rios, ge�grafos, marinheiros, soldados, n�ufragos, cirurgi�es-barbeiros e, principalmente, mercadores. Entre 1526 e 1608, no in�cio da coloniza��o portuguesa no Brasil, o litoral e outras �reas foram visitados por esses europeus que narraram suas experi�ncias e aventuras em cartas, not�cias, relat�rios, obras de geografia, di�rios de bordo, relatos de viagem e depoimentos � Justi�a.
Livro � sempre uma “viagem”, com partida, observa��es, compara��es, conhecimento e percep��es. At� a chegada, ou ponto final na p�gina, as palavras se tornam guias do destino, fios condutores de emo��o, ca- minhos a serem desbravados. E por que esse cap�tulo � t�o desconhecido? Respondem as pesquisadoras: “As viagens inglesas ao Brasil durante o s�culo 16 s�o menos conhecidas do que as viagens de franceses e holandeses, e permaneceram praticamente � margem da historiografia brasileira.
Ocorridas em uma �poca de grandes transforma��es geopol�ticas, revelam o interesse que a Inglaterra nutriu pela col�nia portuguesa ao longo do primeiro s�culo de ocupa��o, assim como as diferentes fases das rela��es entre Brasil e Inglaterra — de um primeiro per�odo de explora��o mar�tima e descobrimento e de tentativas de estabelecer rela��es comerciais, at� as �ltimas d�cadas de hostilidade aberta e ataques de cors�rios”.
A maioria dos relatos est� nas colet�neas de viagem de Richard Hakluyt (1589-1600) e Samuel Purchas (1625), impressas em Londres. H� tamb�m os que integram livros aut�nomos, como os do navegador Richard Hawkins, autor de um livro sobre sua viagem � Am�rica do Sul, e pelo cirurgi�o-barbeiro William Davies, que navegou pelo rio Amazonas.
A edi��o traz tamb�m material iconogr�fico, composto por mapas da �poca, folhas de rosto e p�ginas dos livros originais, “que ajuda o leitor a criar um imagin�rio e a contextualizar as viagens”, informam as tradutoras dos documentos e organizadoras da obra. Os relatos reunidos em Ingleses no Brasil, contextualizados por um posf�cio e notas explicativas, “refletem a diversidade cultural e social de seus autores e trazem um olhar m�ltiplo sobre esse per�odo e sobre aspectos pouco co- nhecidos da col�nia”.
Para tornar a leitura mais saborosa, vale a orienta��o de Sheila e Vivien: “O interessante � que os relatos conjugam experi�ncias vividas com um pouco de fic��o, como era costume na �poca. Para o leitor de hoje, parecem narrativas de aventuras, algumas quase inacredit�veis. Nossa motiva��o foi tornar acess�vel ao leitor brasileiro esse conjunto de relatos sobre a forma��o da col�nia, que trazem quest�es e problemas ainda hoje pertinentes e oferecem perspectivas pouco conhecidas do Brasil”.
A leitura � ponto de partida tamb�m para conhecer as pesquisadoras e seu trabalho. Sheila Hue � professora do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Suas principais �reas de pesquisa s�o os discursos quinhentistas sobre o Brasil e os estudos camonianos. J� Vivien Kogut Lessa de S� leciona estudos lus�fonos na Universidade de Cambridge (Reino Unido). Pesquisa principalmente as intera��es entre a Europa renascentista e o Brasil col�nia, literaturas de viagem de fins do s�culo 16 e estudos latino-americanos.
Juntas, as duas editaram As incr�veis aventuras e estranhos infort�nios de Anthony Knivet (Zahar, 2007) e desenvolvem h� anos pesquisas sobre os relatos das viagens inglesas ao Brasil no s�culo 16. Entre os �ltimos trabalhos publicados est� o cap�tulo English pirates: early angloportuguese relations in the new world, no volume Transnational portuguese studies, organizado por Hillary Owen e Claire Williams (Liverpool University Press, 2020). A seguir, uma entrevista com as organizadoras.
"Seria necess�rio todo um livro s� para descrever os tipos estranhos de peixes que se encontram nessa costa e tamb�m os estranhos animais e aves da terra, pois h� alguns peixes parecidos com homens e mulheres, e alguns parecidos com cavalos, e alguns com coelhos, e alguns s�o semelhantes aos sapatos altos usados pelas mulheres na Espanha e estes s�o muito venenosos."
Relato da viagem feita em 1526 pelo ingl�s Roger Barlow
ENTREVISTA
Sheila Hue e Vivien Kogut Lessa de S� (organizadoras)
Por que a presen�a dos ingleses no Brasil, no per�odo mostrado no livro, ficou encoberta tanto tempo, ao contr�rio da dos franceses e holandeses?
Sheila – Os ingleses n�o tiveram um projeto de efetiva coloniza��o do Brasil, como ocorreu com os franceses e holandeses, e isso fez com que n�o se lan�asse tanta luz sobre a produ��o discursiva inglesa a respeito da col�nia portuguesa. Lembremos a Fran�a Ant�rtica no Rio de Janeiro, no s�culo 16, a Fran�a Equinocial no Maranh�o, no s�culo 17, e o dom�nio holand�s em Pernambuco, no mesmo s�culo, que tantas marcas deixou. A produ��o letrada dessas tr�s investidas logo ganhou as tipografias e teve uma ampla difus�o.
Os relatos sobre a Fran�a Ant�rtica, por exemplo, foram publicados em l�ngua portuguesa, assim como v�rios outros livros e documentos sobre a hist�ria do Brasil, entre a segunda metade do s�culo 19 e o in�cio do 20, quando o Instituto Hist�rico e Geogr�fico Brasileiro (IHGB) e a Academia de Ci�ncias de Lisboa lideraram um movimento de divulga��o e tradu��o (quando era o caso) desses documentos, com a inten��o de erigir uma hist�ria do Brasil. Nessa �poca, apenas o livro de mem�rias do ingl�s Anthony Knivet foi traduzido e publicado (e a primeira tradu��o n�o foi do original ingl�s, mas de uma muito deficiente tradu��o holandesa).

Como os ingleses descreviam os portugueses?
Sheila – Os relatos ingleses, por conta do antagonismo pol�tico e religioso entre as coroas ib�rica e inglesa, descrevem colonos e portugueses de forma, por vezes, bastante depreciativa. James Lancaster, que invadiu e saqueou o Recife em 1595, por exemplo, descreve os portugueses como trai�oeiros e vis. Outros ridicularizam os colonos e os classificam como covardes e medrosos – uma perspectiva dos fatos na medida para engrandecer os navegadores da rainha Elisabeth I diante dos leitores conterr�neos, e que visava construir uma identidade nacional imperialista numa �poca em que a Inglaterra dava seus primeiros passos nos mares que, ent�o, eram de exclusivo uso de portugueses e espanh�is.
Essa pintura depreciativa de ib�ricos e colonos do Brasil certamente pesou para que esses documentos n�o fossem publicados pelo IHGB e pela Academia de Ci�ncias de Lisboa, quando se criou uma esp�cie de c�none de livros e documentos sobre a hist�ria do Brasil.
Outro motivo � que a maior parte dos relatos ingleses sobre o Brasil no per�odo estudado n�o s�o obras aut�nomas, n�o s�o livros exclusivamente dedicados ao Brasil, como os escritos pelos integrantes da Fran�a Ant�rtica ou pelos holandeses em Pernambuco, mas trechos de livros sobre viagens mais amplas, englobando outras regi�es da Am�rica do Sul, ou, ainda, s�o pequenos relatos, not�cias, di�rios de bordo, depoimentos, a maioria deles publicada em duas grandes colet�neas inglesas de viagem impressas em Londres em 1589-1600 e 1625, que, juntas, totalizam umas seis mil p�ginas.
Os relatos, por assim dizer, ficaram perdidos entre essas milhares de p�ginas e nunca foram reunidos em um s� conjunto, como fizemos agora com Ingleses no Brasil – Relatos de viagem. Era um material de dif�cil acesso. Para se ter uma ideia, somente dois dos 12 relatos do livro j� tinham sido traduzidos para o portugu�s.
Quem eram os ingleses que vieram para c�? Sofreram repres�lias dos portugueses ou a Coroa portuguesa sabia?
Sheila – No in�cio do s�culo 16, temos a viagem de um navegador ingl�s que, assim como os franceses da Normandia, queria comerciar pau-brasil com os ind�genas, antes da institui��o das capitanias heredit�rias. Esse senhor, William Hawkins, veio a ser o patriarca de uma fam�lia de navegadores ligados � Coroa inglesa. Temos tamb�m navios de mercadores an�nimos que vieram tentar a sorte no litoral da col�nia portuguesa, que era uma regi�o desconhecida para os ingleses.
Numa segunda fase, quando parte do litoral brasileiro j� era povoado e a navega��o de estrangeiros era proibida, acontece uma viagem muito interessante, do navio Minion of London, armada por importantes mercadores de Londres. Apesar da proibi��o oficial, o navio � recebido pelas principais autoridades coloniais e faz seus neg�cios � vontade. O respons�vel pela vinda do navio foi um ingl�s radicado em Santos (no atual estado de S�o Paulo), John Whithall (chamado de Jo�o Leit�o, no Brasil), que havia se casado com a filha de um poderoso senhor de engenho.
Essa viagem � especialmente curiosa porque Whithall escreve uma lista de mercadorias necess�rias em Santos e nela encontramos coisas como fitas de veludo, sedas, cetim e mesmo cordas de viola. Isso em 1580. O embaixador espanhol em Londres (na �poca o Brasil tinha acabado de ser submetido � Coroa espanhola) sabia de todos os passos do navio, e da boa recep��o pelas autoridades coloniais, e escrevia ao rei Felipe II recomendando medidas urgentes para proibir e impedir o com�rcio ilegal na costa brasileira.
Havia v�rios tipos de homens nos navios que vieram para o Brasil: marinheiros, soldados, mercadores, aventureiros, de diferentes extratos sociais e forma��es culturais. Um dos relatos que publicamos foi escrito por um cirurgi�o-barbeiro, uma esp�cie de m�dico de bordo. Outro foi redigido por um "cosm�grafo", ou seja, o autor de um livro erudito sobre diferentes regi�es da terra. Outro por um homem culto e educado, Richard Hawkins (neto de William).
Outros, ainda, por agentes comerciais ou marinheiros. S�o relatos muito heterog�neos. Alguns s�o depoimentos orais transformados em texto, como o do n�ufrago Peter Carder, que viveu entre os �ndios e foi empregado de um senhor de engenho na Bahia.
Depois de 1581, quando houve a anexa��o de Portugal pela Espanha de Felipe II, temos duas invas�es francamente pir�ticas da Bahia e de Pernambuco, narradas de forma exuberante por um agente comercial e um mosqueteiro an�nimo, em que as batalhas entre os colonos e os ingleses invasores s�o o foco principal. S�o relatos que se assemelham a hist�rias de aventuras.

Qual foi a motiva��o para a pesquisa de voc�s? Como foram encontrados esses relatos?
Sheila – Pesquisamos os relatos ingleses desde o in�cio deste s�culo e publicamos em 2007, pela editora Zahar, uma edi��o comentada do livro de mem�rias de Anthony Knivet. Em uma pesquisa apoiada pela Biblioteca Nacional, fiz um levantamento dos relatos ingleses relativos ao Brasil e a partir da� come�amos a trabalhar na sele��o, tradu��o e notas, pensando em public�-los. Vivien fez uma pesquisa de doutorado no Reino Unido sobre o relato de Knivet, tamb�m pouco conhecido na Inglaterra, e preparou uma edi��o comentada publicada pela editora da Universidade de Cambridge.
Al�m disso, n�s duas publicamos v�rios artigos sobre esse corpus, o �ltimo deles � um cap�tulo no volume Transnational portuguese studies, que saiu este ano pela editora da Universidade de Liverpool, intitulado Piratas ingleses: primeiras rela��es anglo-portuguesas no Novo Mundo.
Portanto, nosso trabalho conjunto nesta cole��o de relatos vem de longe. A editora Ch�o acolheu o livro com entusiasmo e estamos muito satisfeitas com o resultado. A edi��o traz tamb�m um material iconogr�fico precioso, composto por mapas da �poca, folhas de rosto e p�ginas dos livros originais, que ajuda o leitor a criar um imagin�rio e a contextualizar as viagens.
A maioria dos relatos est� nas colet�neas de viagem de Richard Hakluyt (1589-1600) e Samuel Purchas (1625), impressas em Londres. H� tamb�m os que integram livros aut�nomos, como os do navegador Richard Hawkins, que escreveu um livro sobre sua viagem � Am�rica do Sul, e pelo cirurgi�o-barbeiro William Davies, que navegou pelo rio Amazonas.
O interessante � que os relatos conjugam experi�ncias vividas com um pouco de fic��o, como era costume na �poca, de forma que para o leitor de hoje parecem mesmo narrativas de aventuras, algumas quase inacredit�veis.
Nossa motiva��o foi tornar acess�vel ao leitor brasileiro esse conjunto de relatos sobre a forma��o da col�nia, que trazem quest�es e problemas ainda hoje pertinentes, e oferecem perspectivas pouco conhecidas do Brasil.
Pelos relatos, qual era a descri��o do Novo Mundo pelos ingleses? H� descri��es detalhadas sobre os ind�genas, a flora, a fauna e outros aspectos? Certamente, os ingleses ficaram deslumbrados com a natureza tropical...
Sheila – Os relatos ingleses s�o mais diretos e objetivos, diferentes dos franceses, dos portugueses e da narrativa de Hans Staden (viajante alem�o,1525-1576). Observamos, quase sempre, que o foco principal era o com�rcio e, em alguns per�odos, o saque. Em meio a descri��es de rotas comerciais, oportunidades de neg�cios, abordagem e saque de navios portugueses e espanh�is, e intera��es com colonos e ind�genas, eles acabam revelando pormenores sobre a vida colonial, algumas vezes bem prosaicos, que n�o surgem nas narrativas mais elaboradas de franceses e portugueses.
Como, por exemplo, as viagens de um m�dico ingl�s que ia atender pacientes em v�rias capitanias, os h�bitos das senhoras de Santos, as rela��es comerciais entre o governador da capitania do Rio de Janeiro e um poderoso bispo radicado na atual Argentina, as pr�ticas de boas- vindas dos habitantes da col�nia, etc.
H� um relato em especial que faz uma deslumbrante descri��o da natureza, resultado de uma viagem feita em 1526. Roger Barlow entregou o manuscrito de sua obra ao rei em 1540. Portanto, � uma obra anterior � de Hans Staden. Trata-se de uma narrativa encantadora justamente por ter um frescor e um maravilhamento que parecem realmente genu�nos.
As viagens se limitaram ao litoral? Onde exatamente?
Vivien – Os relatos d�o conta de viagens que passam por diferentes capitanias, desde a Amaz�nia a outros trechos do litoral Norte do Brasil – como uma regi�o por eles chamada de “Canibales” – , Nordeste (invas�es da Bahia e de Pernambuco), Rio de Janeiro, S�o Paulo, Sul da col�nia e mesmo uma viagem que adentra o rio Paran�.
Alguns narram tamb�m viagens n�o mar�timas, como o n�ufrago Peter Carder, que faz uma longa travessia por terra, segundo ele diz saindo do Sul e chegando � Bahia. Acredita-se que haja partes do seu relato que foram omitidas pelo editor ingl�s, Samuel Purchas, e portanto o seu itiner�rio pelo interior do Brasil ainda � nebuloso, mas tudo indica que cruzou a �rea que hoje em dia engloba v�rios estados brasileiros.
O que podemos aprender com os relatos em termos de preserva��o? H� alguma boa li��o?
Vivien – Em meio ao acervo relativamente limitado de fontes sobre o Brasil em seu primeiro s�culo como col�nia portuguesa, impressiona ver o n�mero de registros e descri��es feitos pelos ingleses e que at� hoje permaneciam in�ditos ou pouco conhecidos. Isso talvez sinalize a import�ncia de nos reconectarmos com essa �poca mais antiga da hist�ria brasileira, revalorizando fontes e ampliando o campo de pesquisa.
Os ingleses t�m uma longa tradi��o de registros – como indicamos acima, em geral respondendo a necessidades pragm�ticas de com�rcio e lucro – o que contrasta com a pol�tica de sigilo imposta por Portugal. Com isso, ironicamente, muitas das fontes mais antigas que temos sobre o Brasil n�o v�m de portugueses, mas de outros europeus, cuja perspectiva mais ‘estrangeira’ fica evidente. � o que acontece nesses relatos ingleses.
Os ingleses tinham cors�rios famosos, a exemplo de sir Francis Drake. D� para saber, pelos relatos, dos reais interesses econ�micos desses viajantes?
Vivien – Num primeiro momento, os interesses eram basicamente o com�rcio com os ind�genas do litoral, especialmente de pau-brasil e algod�o. Num segundo momento, a proposta era trocar as manufaturas inglesas por a��car, ent�o uma mercadoria extremamente valorizada, e numa �poca em que o Brasil era o principal produtor. Num terceiro momento, quando havia uma guerra entre Espanha e Inglaterra, as expedi��es eram de corso, ou seja, ataques a naus e territ�rios com o objetivo de saquear bens e carregamentos de a��car.
Um dos autores dos relatos � um n�ufrago da viagem de Francis Drake, o marinheiro Peter Carder, que, ao voltar para a Inglaterra, narra suas aventuras no Brasil para a rainha Elisabeth I.
Vale lembrar que naquela �poca quaisquer informa��es sobre navega��es no Atl�ntico eram extremamente valiosas, pois redundavam em vantagens estrat�gicas, principalmente a partir de meados do s�culo, no contexto da rivalidade entre Inglaterra e os pa�ses ib�ricos em rela��o ao chamado Novo Mundo. Portanto, relatos, mapas, registros de viagens tinham quase o mesmo valor de tesouros, e eram roubados, contrabandeados, copiados, destru�dos, ocultados. Assim, esses registros ingleses t�m uma import�ncia singular e quase subversiva aos interesses de Portugal e Espanha.