
Da casa comum � casa partida. O amor eterno, os sonhos comuns, o casamento que se estilha�a. Ao final de toda a viagem, ter� valido a pena? Para ela, o amor se revela como que em um “estado de vizinhan�a”, algo ao estilo “as coisas bonitas que falamos, as coisas feias que fazemos”. Para ele, n�o � diferente: “o amor mais nos engana para melhor nos abater”.
Valendo-se de igual recurso utilizado por Valter Hugo M�e em obras como nosso reino, o remorso de baltazar serapi�o, a m�quina de fazer espanh�is e o apocalipse dos trabalhadores, Kaio Carmona ignora as normas para utiliza��o das letras mai�sculas. Turbilh�es de emo��es brotam da mem�ria de vida mais �ntima das duas personagens ao narrar o “aqui e agora da separa��o”.
Todo em letras min�sculas, o desencadear do texto ganha o ritmo da oralidade sofrida, despejada ap�s o trauma recente; dor que se sobrep�e, se mistura �s dores do mundo e � s�bita redescoberta do contexto social e coletivo da cidade em que vivem. Quem � ela, quem � ele, onde moram, nada disso importa. A obra aborda as dores das perdas; para passar por elas, basta estar vivo.
Ao mesmo tempo em que enfatiza a universalidade do tema, Kaio Carmona oferece especial aten��o ao olhar existencial sob o vi�s cultural de g�nero. A caligrafia l�mpida da carta que n�o hesita – convite para que o leitor refa�a o percurso das muitas dores do amor – parece ser feminina e de fato �. � ela que d� a partida, com o singelo manuscrito depositado sobre o tampo de vidro, que encerra o casamento: pede a ele que se respeite um per�odo sem que ambos se encontrem, at� que “o tempo melhore as coisas entre n�s”.
Mas � na primeira parte da hist�ria que se revela o g�nero de quem escreve a carta. Solta-se, dali, o fio do g�nero, a trilha de toda a trama: “eu, que fui forjada para o sim, moldada para o sim, agora sigo em contram�o. sou eu a matar de vez o amor. cortar seus �ltimos vest�gios de vida, ver o f�lego findar-se, suspenso no ar. eu, a assassina. eu, o monstro. eu, a autora da ferida. mas insisto, cumpro um destino. a vida �til do amor, o prazo do amor. cansei. preciso sair e andar.” Prossegue: “e me pergunto se ser� esse o meu enredo. repetir a hist�ria de minha m�e, de minhas irm�s, de minha amiga, das mulheres todas”.
%u201CEmbora seja meu primeiro romance, ou novela, ou prosa po�tica, ou como o leitor preferir, n�o me preocupei muito com a forma, e, sim, com o ritmo do texto: o ritmo das palavras ao se aproximarem do amor, do fim do amor"
Kaio Carmona
O livro � dividido em duas se��es – “ela” e “ele” – em que os sofrimentos circunstanciais da mulher e do homem referenciam-se aos contornos dos constrangimentos sociais. Da se��o “ele” emerge a linguagem do destinat�rio da carta. Por detr�s da agressividade de algumas express�es chulas, indignadas pela revolta do abandono anunciado, encontra-se a dor escondida, a decep��o, o vazio, o mundo sem gravidade, sem ch�o: “o amor. estranha salom� o amor, que despe pouco a pouco os seus sete v�us e ao final se v� nua e rid�cula ao descobrir que a beleza estava no gesto que fazia ao deitar os v�us ao ch�o. puta. vagabunda. majestade cultuada que se vexa quando exposta em celebra��o e d� logo mostra de sua vaidade, de sua agonia, exp�e sua chaga e perecimento. vadia, puta-filha-da-puta. o amor. o amor. o amor. o que j� conhecemos de antem�o como finito e mesmo assim decidimos experimentar como se pud�ssemos contra ele alguma modifica��o, algum sopro eterno, alguma cria��o”.
Salto no abismo
Sa�da, n�o h�. Apenas o abismo: saltar � a �nica op��o, conclui a personagem masculina. Resta a viagem de um relacionamento, posta por Goethe nos termos de uma “s�ntese de impossibilidades”. N�o � toa, a ep�grafe cita a obra Afinidades eletivas – express�o usada nas ci�ncias naturais para designar a atra��o entre dois elementos qu�micos diferentes, mas afins –, em que considera o casamento uma "s�ntese de impossibilidades": da qu�mica, tem-se que esses dois elementos agregados se separam para se unir a dois outros elementos.
� dessa forma que Goethe estressa aspectos morais e psicol�gicos do jogo de atra��es e repulsas entre casais, aquilo que um dia os atraiu � tamb�m aquilo que em dado momento da rotina os repele: “E assim descansam os dois amantes um ao lado do outro. A quietude paira sobre sua morada; anjos serenos, seus afins, olham-nos do espa�o. E que momento feliz aquele em que, um dia, despertar�o juntos!”.
A apresenta��o do romance – que como sugere Kaio Carmona, a partir da prefer�ncia do leitor, pode tamb�m ser categorizado sob a forma de novela ou prosa po�tica – � assinada ao final da obra pela professora de literatura N�dia Battella Gotlib. Sob o t�tulo “Das artimanhas do discurso amoroso” – e em refer�ncia � cita��o de Carmona, “o amor n�o � mais um estado de perman�ncia” – ela pontua, na narrativa das emo��es despejadas pelas personagens, a for�a das alus�es presentes no repert�rio m�tico de uma cultura cl�ssica, tanto na tradi��o da literatura brasileira quanto tamb�m europeia, naturalmente encaixadas na trama.
Assim como Clarice Lispector emerge sob a men��o de Macab�a, personagem de A hora da estrela; Abelardo e Helo�sa surgem em alus�o ao dram�tico desfecho dessa hist�ria de amor do s�culo 12, na Fran�a. E como n�o poderia deixar de ser, Jos� de Alencar tamb�m se faz presente: “julguei ter meu nome escrito nessa cartografia do amor. achei que merecia meu papel, meu espa�o, fosse aur�lia na janela, fosse o encontro de iracema, fosse o destino de l�cia, fosse atriz, fosse beatriz.”
Sobre o autor
Kaio Carmona � poeta e professor de literatura, doutor em estudos liter�rios pela UFMG, publicou v�rios livros, entre eles Um l�rico dos tempos (Scortecci, 2006), Comp�ndios de amor (Scriptum, 2013), Para quando (Scriptum, 2017). O autor embarcar� para Luanda (Angola), onde ser� “Leitor Brasileiro” por dois anos na Universidade Agostinho Neto
Trecho
“cansei. pronto. � isso. ponto final. j� n�o suporto mais, j� n�o dou conta. � isso. o amor acaba. n�o tem mais jeito. o amor realmente acaba. todo livro tem a sua �ltima p�gina, o �ltimo par�grafo. � preciso atribuir os devidos cr�ditos ao filme que se encerra, sair da escurid�o da sala. � sabido, � esperado. antes disso, as estrat�gias. aprende-se a ler com mais calma, deixa-se de ir ao cinema. mas mesmo em casa a cena tem de chegar ao fim. as diversas possibilidades do enredo j� foram pensadas, inventadas, testadas, e quaisquer delas levam ao mesmo lugar. agora posso ter a certeza. a certeza de meu momento. o que sei agora � o que sou agora. um ep�logo. uma constata��o. cumpro um destino. etapas que um dia pensei existir, mas passavam distantes como not�cias. palavras que orbitam em torno de um mesmo eixo e que apontam para um mesmo sentido. o fim. e � claro que imaginei isso um dia. o fim. devaneei. sonhei. fiz o exerc�cio. rezei a cartilha da hist�ria”
A casa comum
De Kaio Carmona
Editora: Quixote+Do
Cole��o Desassossego
76 p�ginas.
R$ 49,90
Lan�amento: 1º de outubro
Transmiss�o pelo YouTube, no canal Quixote+Do Editoras Associadas