
Talvez o mais emblem�tico desses casos seja o de Antonio Carlos Secchin, que dedicou a Jo�o Cabral ao menos trinta e cinco anos de aten��o cr�tica, em formato de ensaios, pref�cios, estudos, entrevistas, palestras etc. Secchin � o respons�vel, com Edneia R. Ribeiro, pela organiza��o de Poesia completa, rec�m-lan�ado pela Editora Alfaguara, com poemas in�ditos do pernambucano. “A obra de Jo�o Cabral apresenta-se quase isolada em nosso panorama liter�rio, por n�o existir uma linguagem ostensiva na qual ela possa se inscrever, � exce��o, talvez, da dic��o, todavia narrativa de um Graciliano Ramos”, aponta Secchin no pref�cio. “Ele representa, na poesia em l�ngua portuguesa, a mais consequente conjuga��o de uma pr�tica po�tica simultaneamente aberta � comunica��o e a um elevado grau de elabora��o e consci�ncia formal”, conclui, na introdu��o do volume que inclui todos os livros do pernambucano e um ap�ndice com poemas in�ditos, cronologia e a bibliografia do autor.
J� em Jo�o Cabral de ponta a ponta, da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), h� um conjunto abrangente e significativo de ensaios escritos por Secchin, que al�m de cr�tico liter�rio � tamb�m poeta e membro da Academia Brasileira de Letras, com foco central na obra do autor de Morte e vida severina. O resultado � um impressionante apanhado de mais de quinhentas p�ginas em que se vislumbra a proximidade do cr�tico com a obra cabralina e com o pr�prio poeta que, nas palavras de Secchin, “dizia apreciar meu trabalho cr�tico sobre sua poesia”. E, de fato, essa intimidade com a obra � reveladora da atra��o insistente que esta exerce sobre o seu olhar sens�vel, votado a uma decifra��o minuciosa e incans�vel. Como j� indicado acima, a publica��o, tamb�m comemorativa, torna patente um espelhamento de dois autores �s voltas com suas obsess�es: Cabral e sua disposi��o antil�rica e Secchin com a sua hip�tese de “poesia do menos”, tra�o central, para ele, da po�tica cabralina.
Jo�o Cabral de ponta a ponta atesta isso ao oferecer ao leitor os ensaios produzidos por Secchin desde 1985 e j� reunidos anteriormente em outros volumes: Jo�o Cabral: a poesia do menos (Duas Cidades, 1985), Jo�o Cabral: a poesia do menos e outros ensaios (Topbooks, 1999) e Jo�o Cabral: uma faca s� l�mina (Cosac Naify, 2014). O conjunto agora editado pela Cepe al�m de resgatar os ensaios que compuseram as colet�neas anteriores, oferece aos interessados na obra cabralina um conjunto de in�ditos que, embora pequeno, � certamente precioso.
Por um lado, esses in�ditos valem pelo valor iconogr�fico evidente na reprodu��o de imagens com v�rias dedicat�rias importantes, al�m de reprodu��es de capas e folhas de rosto de obras de Cabral, algumas delas bastante raras. Por outro, acrescenta � bibliografia cr�tica sobre o poeta: um ensaio in�dito, “Drummond e Cabral: afagos & alfinetes”; uma importante entrevista de Cabral, concedida a Secchin em 1980; e a �ltima palestra do poeta em ambiente universit�rio, ocorrida na Faculdade de Letras da UFRJ, em 1993. Todos s�o documentos que certamente acrescentam � composi��o da figura de Cabral neste seu centen�rio e n�o h� d�vida de que alimentar�o as abordagens que n�o cessam de se realizar acerca da obra do pernambucano.
Por um lado, esses in�ditos valem pelo valor iconogr�fico evidente na reprodu��o de imagens com v�rias dedicat�rias importantes, al�m de reprodu��es de capas e folhas de rosto de obras de Cabral, algumas delas bastante raras. Por outro, acrescenta � bibliografia cr�tica sobre o poeta: um ensaio in�dito, “Drummond e Cabral: afagos & alfinetes”; uma importante entrevista de Cabral, concedida a Secchin em 1980; e a �ltima palestra do poeta em ambiente universit�rio, ocorrida na Faculdade de Letras da UFRJ, em 1993. Todos s�o documentos que certamente acrescentam � composi��o da figura de Cabral neste seu centen�rio e n�o h� d�vida de que alimentar�o as abordagens que n�o cessam de se realizar acerca da obra do pernambucano.
A organiza��o do livro facilita muito a percep��o do obstinado trabalho de Secchin, sempre empenhado em decifrar Jo�o Cabral, tal como j� dito, atrav�s do prisma do “poeta do menos”. Tanto a primeira parte do volume, que se dedica aos estudos de Secchin a respeito dos livros do poeta, ordenados em s�rie cronol�gica, quanto a segunda parte, dedicada a ensaios de escopo mais geral, revelam um olhar cr�tico que persegue, nas malhas do texto cabralino, a testagem incans�vel de sua hip�tese, de sua ideia fixa com rela��o ao que seja o �mago da po�tica do autor de O c�o sem plumas.
Para que se tenha uma ideia disso, vale recuperar a forma como o cr�tico caracteriza, na introdu��o de Jo�o Cabral de ponta a ponta, a poesia de Cabral: “Este livro procura interpretar a poesia de Jo�o Cabral de Melo Neto a partir da hip�tese de que ela se constr�i sob o prisma do menos. Com isso, queremos dizer que a cria��o de seus textos � deflagrada por uma �tica de desconfian�a frente ao signo lingu�stico sempre visto como portador de um transbordamento de significado. Retirar do signo esse excesso � praticar o que denominamos a poesia do menos.” Secchin defende, em sua abordagem, que, contrariamente ao que se verificou no movimento mais dominante da poesia brasileira, voltada a transbordamentos po�ticos, sentimentais e ideol�gicos, a obstina��o que deu t�nus � po�tica de Jo�o Cabral foi a de desconfian�a contra tudo que pudesse adicionar elementos � palavra, que, sob essa �tica, passa a ter for�a porque nega, desconfia, desbasta.

Tens�es na estrutura
� esse princ�pio, por sua vez, a pr�pria ideia fixa do cr�tico, que busca desenvolv�-la no confronto com a obra de Jo�o Cabral valendo-se de um refinado conjunto de materiais anal�ticos. Dessa tenaz e elegante disposi��o cr�tica de Secchin merece destaque a sua capacidade de leitura da po�tica, que considera, sobretudo, as tens�es institu�das na pr�pria estrutura do poema, as quais s�o manejadas com rar�ssima compet�ncia anal�tica que, por sua vez, � capaz de observar cuidadosamente os esquemas de m�trica e rima, a constru��o das imagens e outros elementos constituidores da arquitetura po�tica.
Vale ressaltar ainda, como li��o cr�tica do excelente leitor que � Secchin, que s�o os pr�prios poemas, ou os conjuntos de poemas, que interpelar�o o analista, evidenciando quais s�o os modelos e aten��es que devem ser mobilizados na interpreta��o. Enquanto qualificado leitor e h�bil produtor de poesia, Secchin sabe que o cr�tico precisa respeitar, acima de tudo, o texto a ser lido, sem desejar impor a ele paradigmas te�ricos ou ideol�gicos que lhe s�o alheios. O leitor de Jo�o Cabral de ponta a ponta perceber� isso nas constantes oscila��es de pontos de vista que o cr�tico prop�e �s obras de Cabral, conforme as exig�ncias materiais que essas mesmas obras oferecem aos recursos de interpreta��o do leitor. Nesses termos, seria plaus�vel dizer que a disposi��o do cr�tico e a disposi��o da obra se adequam, sem disson�ncias, nesse caso espec�fico, ao que parece, para bem do leitor.
Para al�m do conjunto mais significativo de trabalhos de an�lise da poesia cabralina, o livro rec�m lan�ado apresenta como elemento de vivo interesse, como j� se disse, um ensaio in�dito sobre a rela��o entre Drummond e Cabral que vale destacar em especial. Escrito de forma leve, o texto persegue uma linha do tempo atrav�s da qual aproximam-se e afastam-se aqueles que s�o, talvez, os dois poetas mais importantes de nosso s�culo 20. Secchin vai percorrendo pistas deixadas em cartas, dedicat�rias e outras comunica��es entre os poetas.
Tais pistas ajudam, hoje, a partir da leitura de “Drummond e Cabral: afagos & alfinetes”, a formular quest�es sobre paradigmas po�ticos ainda vigentes no Brasil e sobre porque projetos po�ticos profundamente convergentes acabaram se tornando, a bem da hist�ria da poesia brasileira, divergentes e distanciados. Ler o ensaio sob esse prisma atesta como a investiga��o de fontes paralelas ao texto liter�rio pode contribuir para o estudo das din�micas do sistema liter�rio e, no caso espec�fico, para a elabora��o da hip�tese de que o distanciamento entre Drummond e Cabral foi, a um s� tempo, um evento transformador e um grande sintoma da produtiva evolu��o verificada na poesia brasileira em certo momento de meados do s�culo 20.
Tais pistas ajudam, hoje, a partir da leitura de “Drummond e Cabral: afagos & alfinetes”, a formular quest�es sobre paradigmas po�ticos ainda vigentes no Brasil e sobre porque projetos po�ticos profundamente convergentes acabaram se tornando, a bem da hist�ria da poesia brasileira, divergentes e distanciados. Ler o ensaio sob esse prisma atesta como a investiga��o de fontes paralelas ao texto liter�rio pode contribuir para o estudo das din�micas do sistema liter�rio e, no caso espec�fico, para a elabora��o da hip�tese de que o distanciamento entre Drummond e Cabral foi, a um s� tempo, um evento transformador e um grande sintoma da produtiva evolu��o verificada na poesia brasileira em certo momento de meados do s�culo 20.
Estudos e interroga��es
Embora seja estudado de forma contumaz e com muita qualidade pelos assim chamados cr�ticos acad�micos, al�m de muito lido e repercutido no Brasil e no exterior, Jo�o Cabral � daqueles autores que parece que n�o se esgotam e cujas grandes an�lises apenas convocam a mais leituras e tentativas de interpreta��o. Jo�o Cabral de ponta a ponta evidencia isso de maneira inquestion�vel pois, mais do que produzir respostas sobre a poesia de Cabral, a compet�ncia cr�tica de Secchin ali revelada provoca interroga��es intensivas e exigentes, que merecem ser levadas adiante.
Acerca do que aqui foi sublinhado em rela��o aos altos valores da empreitada cr�tica levada a termo por Secchin sobre a obra de Cabral, pode o leitor, por exemplo, querer problematizar, entre outras coisas, o encaixe perfeito entre perspectiva cr�tica e obra po�tica e pensar em imaginar ou intuir os resultados da leitura cr�tica de algu�m que fizesse uma interpreta��o da obra cabralina, com esse mesmo escopo amplificado, mas a contrapelo daquilo que Cabral tanto propagandeia. Se todo poeta ao escrever defende um certo conceito de poesia, em Cabral essa defesa ganha uma tonalidade de estranha insist�ncia, da qual vale inquirir as raz�es. Nesse caso, seria de supor que a aproxima��o entre poeta e cr�tico, deixada muito patente por Secchin, se converteria em um poss�vel limite para a observa��o de matizes da obra de Cabral que ultrapassam o paradigma do menos e a insist�ncia em desvestir de lirismo a forma po�tica?
Haveria, para al�m de leituras que potencialmente correspondessem �s expectativas de Cabral quanto � subst�ncia da poesia, espa�o para uma interpreta��o, em certa medida, disruptiva da poesia do menos cabralina? Deste paradigma indicado por Secchin, que envolve seu t�o propalado antilirismo, pode-se saltar, qui��, para outro plano de interroga��es, de modo especial se, dialeticamente, for considerada profundamente l�rica a propaganda antil�rica que Cabral tanto se esfor�a para fazer em seus versos e suas apari��es p�blicas como poeta e que, com justeza e consist�ncia, � apontada por seus melhores leitores. Pensar desse modo seria talvez for�ar limites e interrogar se a l�rica n�o est� presente pelo avesso em uma po�tica que, ao tempo que se alimenta das contradi��es, procura revel�-las atrav�s da apar�ncia da palavra descarnada.
Por fim, acerca da aproxima��o entre Drummond e Cabral, parece haver, n�o apenas no ensaio in�dito, mas em outras refer�ncias feitas por Secchin ao poeta itabirano, um conjunto de trilhas ainda n�o suficientemente exploradas pela cr�tica dos dois poetas, de modo especial se consideramos as tens�es entre “regionalismo” e “universalismo” nas obras dos dois. Se de um lado Drummond ansiou ser o “poeta nacional”, Cabral investiu tudo na regionaliza��o agreste da voz. Essas s�o apenas algumas das inquieta��es que se extrai da leitura deste verdadeiro marco nas comemora��es do centen�rio cabralino, que � Jo�o Cabral de ponta a ponta.
Como no caso das grandes obras liter�rias, que fazem mais quando n�o nos oferecem respostas e sim perguntas sobre o mundo, as grandes empreitadas de cr�tica devem seu valor de vig�ncia � quantidade de quest�es espinhosas que estimulam, seja relativamente �s obras lidas seja relativamente ao contexto social e liter�rio em rela��o ao qual se situam. Sem d�vida � esse o caso desta bela reuni�o de textos de Antonio Carlos Secchin, que soube espelhar suas obsess�es cr�ticas nas ideias fixas mais intensivas e inquietantes da obra de Jo�o Cabral.
Como no caso das grandes obras liter�rias, que fazem mais quando n�o nos oferecem respostas e sim perguntas sobre o mundo, as grandes empreitadas de cr�tica devem seu valor de vig�ncia � quantidade de quest�es espinhosas que estimulam, seja relativamente �s obras lidas seja relativamente ao contexto social e liter�rio em rela��o ao qual se situam. Sem d�vida � esse o caso desta bela reuni�o de textos de Antonio Carlos Secchin, que soube espelhar suas obsess�es cr�ticas nas ideias fixas mais intensivas e inquietantes da obra de Jo�o Cabral.
Alexandre Pilati � professor de literatura brasileira da Universidade de Bras�lia e poeta. Autor de, entre outros, Autofonia (2018) e Poesia na sala de aula (2017).

Jo�o Cabral de ponta a ponta
• De Antonio Carlos Secchin
• Lan�amento Companhia Editora de Pernambuco (Cepe)
• 598 p�ginas
• R$ 18 (e-book) R$ 60 (livro f�sico)

Poesia completa
• De Jo�o Cabral de Melo Neto
• Organiza��o de Antonio Carlos Secchin
• Editora Alfaguara
• 896 p�ginas
• R$ 154,90
Trecho:
Plateia — Eu queria insistir na quest�o do fazer po�tico. Alguns autores falam que t�m necessidade de escrever. Quando voc� escreveu Morte e vida severina, por exemplo, passou por a� a compuls�o de escrever?
Jo�o Cabral — N�o, eu n�o sou levado pela necessidade. Eu poderia perfeitamente ficar sem escrever. Ali�s, no conjunto da minha obra, � uma constante que eu considere aquele livro in�til. Acho que a gente escreve como um arquiteto constr�i um edif�cio. A escrita � um edif�cio. Um quadro, a pessoa n�o tem necessidade assim de pintar um quadro como eu imagino que um compositor tenha necessidade de compor uma melodia. O quadro � uma coisa mais intelectual, � mais objeto da raz�o e da vontade do que propriamente de um impulso interior. Quanto a Morte e vida severina, devo dar uma explica��o. Eu era muito ligado ao An�bal Machado, um escritor de Minas, pai da Maria Clara Machado, que tem essa import�ncia no teatro brasileiro que todos voc�s conhecem. A Maria Clara era muito minha amiga e me pediu um auto de Natal. Eu o escrevi para o Tablado. E esse auto de Natal foi o Morte e vida severina. Ou seja, foi uma obra escrita de encomenda.
Tr�s poemas in�ditos de Jo�o Cabral
A droga
Quando se h� de desenvolver a droga
que feche o rel�gio, como porta?
Que nunca abra a porta desse p�tio
onde se escuta o trem do hor�rio?
Mas que abra os p�tios de estar,
as pra�as sem correntes de ar,
Onde num trem que n�o se sente
se vai no passado presente.
65 anos
O pulso n�o est� mais fraco.
Martela como sempre, claro.
Mas decerto o po�o ou cacimba
de onde bombeia para cima
o que pelas veias circula
(vida? Sangue?) o que quer que suba,
j� n�o est� como esteve, cheia:
j� se deve ver o ch�o de areia.
Decerto n�o deve faltar muito
para que a bomba alcance o fundo,
soe o ralar erres de quando
j� corre pouca �gua nos canos.
“Poucos anos
nos convivemos”
Poucos anos nos convivemos,
mas convivemos tantos dias
que at� mesmo quando
olhando-me � a ti que te via.
Eu te encontrava em qualquer coisa;
ser� por que te procurava?
N�o sei, mais coisa tinha,
vinha marcado de tua marca.
Certo dia, n�o cara a cara.
Cruzei-te, era o outro lado da rua,
em estado de multid�o,
ter na tua, eu sempre na tua.
Era meio-dia e ao meio-dia
toda lembran�a se esvazia
do que haja nele de concreto:
Mas a tua era carne viva.
Nunca te vira t�o carnal,
nem em teu corpo essa alegria
de carne, a carne alegre,
que � alma alegre se transferia.
Por que ent�o n�o te fiz parar
no meio-dia morno e lento?
Os sins e n�os, os pr�s e contras
contabilizaram-se: em tempo.
� dif�cil de re-emendar
esse fio mil-fios, o tempo,
se emendamos duzentos deles
teremos ainda oitocentos,
E muito embora tantos fios
sejam de um algod�o aparente,
a dist�ncia de uns poucos anos
deu-lhes maduro diferente.