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Estado de Minas CR�NICAS

Muito al�m da noite

Pesquisador Guilherme Tauil mostra por que nomes como Verissimo consideram Ant�nio Maria o mais completo dos cronistas brasileiros


17/12/2021 04:00 - atualizado 17/12/2021 07:37

Antônio Maria (E) com Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Dolores Duran
Ant�nio Maria (E) com Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Dolores Duran: destrui��o do lugar-comum de um mero cronista das agitadas noites cariocas (foto: Arquivo CB/D.A Press)

Quem conta a hist�ria � o pr�prio Ant�nio Maria na cr�nica publicada mais ou menos um m�s antes de sua morte. Convidado por Carlos Drummond de Andrade para participar do livro “Rio de Janeiro em prosa & verso”, que o poeta mineiro e Manuel Bandeira organizavam para a Editora Jos� Olympio – volume que reuniria os melhores textos escritos sobre a Cidade Maravilhosa –, o menino grande recifense hesita.  Fica surpreso com o convite. O nosso mais completo cronista, na opini�o do mestre Luis Fernando Verissimo, n�o acreditava na for�a dos seus textos.

Quase todos escritos na correria do dia a dia, entre o intervalo de uma reda��o e outra, n�o achava que tivesse uma obra que pudesse figurar ao lado de nomes como os dos amigos Rubem Braga e Paulo Mendes Campos. E recusa o convite. Na cr�nica, pede desculpas ao poeta. E se explica: “Meu caro Drummond, por mais incr�vel que pare�a, jamais guardei o que escrevi. Simplesmente, porque n�o acredito no que escrevo. Minhas cr�nicas, suporto-as enquanto as escrevo; detesto logo depois, quando as releio; esque�o-as quando descem �s oficinas. Fa�o bem, eu sei.  E, se a maioria fizesse assim, n�o haveria tanta besteira por a�, impressa em livro e consagrada em noites de aut�grafos”.

Com a morte prematura aos 43 anos, em outubro de 1964, Maria n�o viveria o bastante para ver suas cr�nicas ganharem o respeit�vel formato do livro. Uma primeira reuni�o de seus textos s� apareceria em 1968: “O Jornal de Ant�nio Maria”, com apresenta��o de Ivan Lessa e Paulo Francis, al�m de ilustra��es do pr�prio cronista. Depois dela, outros volumes seriam publicados: os melhores foram organizados pelo jornalista, e excelente cronista, Joaquim Ferreira dos Santos, autor ainda de uma divertid�ssima biografia do escritor pernambucano.

Mas confesso que s� fui entender por que Verissimo considera Ant�nio Maria o mais completo de todos os nossos cronistas depois da leitura de “Vento vadio: As cr�nicas de Ant�nio Maria”. Com o volume, organizado pelo pesquisador Guilherme Tauil, podemos finalmente ter a no��o da grandeza do escritor pernambucano. Um cronista que fazia humor, mas tamb�m fazia textos mais s�rios: que podia ser l�rico ou sarc�stico. Com a mesma intensidade. E qualidade.

Recorte limitador

“Como pesquisador de literatura brasileira, sempre tive interesse em estudar a cr�nica. � um g�nero ainda pouco examinado pela academia, e embora recentemente tenham surgido trabalhos importantes, ainda h� muito a se fazer”, conta Tauil, que no ano passado defendeu mestrado sobre Ant�nio Maria na Universidade de S�o Paulo (USP). “E entre nossos principais cronistas, achei que Ant�nio Maria era o mais lacunar, que rendia um trabalho de f�lego. Primeiro porque, de fato, t�nhamos acesso a muito pouco de sua obra: menos de 10% estava compilado em livro. Segundo, tinha a impress�o de que o recorte das antologias era excessivamente limitador.”

O livro organizado por Guilherme destr�i, definitivamente, um certo lugar-comum criado, desde sua morte, de que Maria seria apenas o cronista das agitadas noites cariocas dos anos 1950 e 1960. E que quase todas as edi��es anteriores ajudaram a criar. Maria acabaria virando apenas o “informante em coisas noturnas”. (Leia box.)

“Pod�amos ler um excelente Ant�nio Maria noturno, um grande personagem das boates de Copacabana, daquela badala��o que foi a noite do Rio de Janeiro, ent�o capital federal. Mas n�o estavam ainda estabelecidos momentos e assuntos que, na minha opini�o, s�o fundamentais para entender bem a sua obra, como, por exemplo, uma constante sensa��o de deslocamento e de inferioridade”, afirma Guilherme Tauil.

Segundo o pesquisador paulista, esse sentimento de deslocamento e inferioridade passava por sua origem nordestina, sua afrodescend�ncia (o �nico daquela gera��o de cronistas) e pela trajet�ria profissional. “Diferente dos outros cronistas, que vieram todos de registros da literatura, Maria deu seus primeiros passos no r�dio, no mundo da oralidade. Ent�o fui estudar isso, e dessa reinterpreta��o de sua po�tica nasceu ‘Vento vadio’, uma antologia pautada por resgatar essas quest�es, explica Tauil.

O resultado da grande pesquisa de arquivo feita por Guilherme � um alentado volume, de quase 500 p�ginas, com 185 cr�nicas selecionadas: 132 in�ditas em livro. E que se l� com um enorme prazer. Com voc�s, mais uma vez, Ant�nio Maria.

Para Drummond, um “moderno Jo�o do Rio”

O convite feito por Drummond ao cronista pernambucano para participar do livro sobre o Rio n�o renderia apenas a cr�nica de Ant�nio Maria. Inspiraria o pr�prio Drummond, que numa cr�nica publicada em 18 de outubro de 1964, alguns dias depois da morte de Maria, tamb�m se recordaria do epis�dio. E num dos trechos escreve: “Poeta que trocou a poesia em mi�dos, jornalista que n�o aspirou a ser escritor, largava todos os dias uma prosa cheia de sabor e vivacidade, como um Jo�o do Rio Moderno. Fica-se imaginando que livro n�o poderia ele ter deixado, reunindo lembran�as pernambucanas, de que guardava a nostalgia, as vis�es da noite carioca, de que foi o int�rprete mais sens�vel”.

Uma cr�nica

“Destemor acima de tudo”

Estava espanado na cama, morto de fome, sem um tost�o no palet� que eu via sobre o espaldar na cadeira. Era o ano de 1941, quando este gordo cronista pesava menos cinquenta quilos e cinquenta remorsos. Mor�vamos no edif�cio Andraus e acredit�vamos num sol de praia que nos dava a pigmenta��o necess�ria � dignidade de um mo�o de Copacabana. Passava do meio-dia, o banho de mar tinha sido muito agrad�vel, mas dele s� restava aquela fome sem rem�dio, sem ter onde matar, ali, nas redondezas do Posto 5. O jeito era fechar os olhos e pedir a Deus umas horas de sono para o santo esquecimento da nossa pobreza. Pensei em vender o can�rio-do-imp�rio, comprado na v�spera pelo meu companheiro de apartamento. Ou seria mais f�cil com�-lo frito? Enquanto rejeitava essas duas solu��es, entrou de quarto adentro um cheiro de comida gostosa que, de t�o ativo, devia ser um assado de novilha rondando a minha mis�ria. Levantei-me num pulo e abri a porta.

Ao lado, no 29, o mensageiro da pens�o acabava de deixar uma marmita de razo�vel gabarito, rescendendo carne feita no torresmo. Lembrei-me de coisas honestas e sagradas — minha m�e e a fita azul da Congrega��o Mariana —, mas lembrei-me muito mais de mim, um andarilho, um coitado, a quem a Comiss�o de Inqu�rito do c�u jamais negaria perd�o por crime de gula. Tirei a tampa da primeira panelinha e dei com tr�s fatias de carne assada (dessas que s�o escuras e tomam todo o gosto do molho) ao lado de um pur� sem import�ncia e de uma folha de alface pr�pria para can�rio. N�o perdi mais tempo. Revi a solid�o do corredor, meti a m�o e ia tirando as tr�s fatias quando a porta se abriu.

Agachado, humilhad�ssimo, vi primeiro os p�s da mo�a; depois, os tornozelos, os joelhos, as coxas e, finalmente, a sunga amarela. Est�vamos, agora, frente a frente. Os olhos dela (verdes), indignados. Os meus (marrons mesmo), suplicantes. Ela cheia de raz�o e eu, apenas, com fome. O sil�ncio demorava, quando ela o quebrou: “Fa�a o favor de me dizer seu nome”. Respondi, com a maior dignidade deste mundo, disposto a todos os males que porventura ca�ssem sobre minha culpa: “Fernando Lobo, minha senhora”.

“Vento vadio: as cr�nicas de Ant�nio Maria”
• Organiza��o de Guilherme Tauil
•Todavia
• 469 p�ginas
• R$ 89,90


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