
Quando dizer � fazer, escrever uma carta, al�m de propor visitas, tra�ar mundos, pontilhar rotas, itinerar vidas, pode implicar na desmontagem de mapas. Trata-se, nesse caso, de desmedir o que est�, pela raz�o que seja, fora de alcance. Quem escreve sabe, portanto, que n�o � certo encontrar o seu destinat�rio, aquele a quem ela se endere�a, mas o texto, conduzido pelas circunst�ncias e trope�os, certamente achar� (ou inventar�) algu�m para travar uma conversa ou desconversa. A� est� o jogo do inesperado que constitui o elo entre a literatura e a vida, no qual quem lan�a o dado jamais consegue eliminar o acaso de um destino incerto.
Por isso, esta ideia de organiza��o de cartas entre amigos e entre desconhecidos, cartas que �s vezes s�o respondidas e �s vezes sabem da impossibilidade de resposta, pode ser entendida tanto quanto “obra” quanto “desobra”, posto que trabalha no impasse de um tempo sem correspond�ncia – tempo de fixa��o a um certo realismo pragm�tico, que oblitera as utopias e os projetos revolucion�rios.
O projeto, em um primeiro momento circunscrito ao Instagram, nasceu de uma amizade, de um mineiro e um cearense, que propuseram aos seus amigos atravessarem textualmente o distanciamento social ocasionado pela COVID-19. Agora, esse projeto se torna livro, inscrevendo-se na esteira de uma longa tradi��o afetiva epistolar na qual podemos incluir in�meros nomes, como o do importante pensador franc�s Maurice Blanchot e o poeta russo Vadim Kozovoi, a quem o fil�sofo ajuda a entrar na Fran�a, com seu filho, em busca de tratamento m�dico para ele; Fernando Pessoa e o seu amigo mais �ntimo, M�rio de S�-Carneiro, com quem se corresponde at� o momento em que, sabendo astrologicamente de sua morte, ainda assim lhe escreve; Ana Cristina C�sar e Helo�sa Buarque de Hollanda, a quem nomeia de cora��o, dolcezza, dearest of my heart; os pensadores Georges Bataille e Michel Leiris, ao redor dos quais formou-se aquela comunidade inconfess�vel tamb�m conhecida como comunidade dos amantes.
Esses s�o apenas alguns dos exemplos de escrita a dois, entre dois, confinados a um porvir que geralmente falta ou de um desaparecimento que vem, e que ainda assim falam de uma amizade sem reserva. O que nos lembra a c�lebre amizade entre Montaigne e �tienne La Bo�tie, a eternizar a frase que consta nos ensaios do primeiro: “Se insistirem para que eu diga por que o amava, sinto que o n�o saberia expressar sen�o respondendo: porque era ele; porque era eu”.
Esses s�o apenas alguns dos exemplos de escrita a dois, entre dois, confinados a um porvir que geralmente falta ou de um desaparecimento que vem, e que ainda assim falam de uma amizade sem reserva. O que nos lembra a c�lebre amizade entre Montaigne e �tienne La Bo�tie, a eternizar a frase que consta nos ensaios do primeiro: “Se insistirem para que eu diga por que o amava, sinto que o n�o saberia expressar sen�o respondendo: porque era ele; porque era eu”.
Entretanto, o projeto de Pedro e Urik vai al�m do princ�pio do prazer epistolar ou de uma paix�o da igualdade, desta esp�cie de intimidade a dist�ncia que a carta propicia. Se o livro come�a com um di�logo entre os dois amigos, logo desaguamos em uma s�rie aberta de textos com destinat�rios os mais imprevis�veis, em que a rela��o afetiva revela a impossibilidade de ser decomposta em elementos objetivos. Por que n�o considerar, ent�o, estes epistol�grafos e leitores, como um povo m�ltiplo, uma comunidade de potencialidades que aparece e desaparece, posicionando-se intempestivamente diante de fatos sociais, fatos liter�rios, cinematogr�ficos, musicais?
Afinal, n�o se trata de um livro de cartas organizado necessariamente por afinidades, prefer�ncias, simpatias, amizades reais. Os outros e os outros dos outros s�o generosamente aceitos nessa partilha sideral, imagin�ria, formada ao acaso, em que semelhan�as e desencontros t�m lugar, na medida em que o comum � a sensa��o de dispensabilidade de poetas, sonhadores, surrealistas no tempo presente. O que nos faz recordar uma das cartas de Blanchot ao seu amigo russo Kozovoi, poeta e tradutor de poesia francesa, a quem nunca encontrou, sen�o textualmente (como � tamb�m o caso de uma ou outra carta do livro): “Ou ainda o sentimento de que ningu�m jamais estar� em seu lugar em nenhuma parte. Est� nisso nosso destino de escritor, mais pesado para ti do que para qualquer outro”.
Esta geografia parece herdar aquilo que o poeta surrealista franc�s Andr� Breton imaginou representar a tarefa especial de sua po�tica: ser poss�vel caminhar por onde ningu�m caminhou. A primeira carta, inclusive, tem o t�tulo de “�rbita”, e junto a outras, nomeadas como “Atra��o”, “A prop�sito de estrelas” e “Sussurro sob a Lua”, fazem da escrita uma recusa do objetivismo e do realismo, singularizando-se como pr�tica des-realizante.
Observamos formas de ocupar o mesmo tempo e o mesmo espa�o, simultaneamente a precursores, �queles de quem as obras on�ricas, pol�ticas, sens�veis, nos permitem sonhar uma sa�da a�rea, uma promessa de salva��o, ainda que turbulenta, como nos diz a carta de Rita Pestana a Augusto Barros. Em relato do seu sonho, Rita escreve: “Uma vez o avi�o em piloto autom�tico, come�a a maior turbul�ncia a�rea que senti. Percebo que o meu corpo est� de p� e que o meu equil�brio � muito fr�gil”. O gesto pol�tico se afirma precisamente no intento de trazer a imagina��o para este sintoma dos tempos desequilibrantes, em que tudo parece pender absolutamente, sem qualquer possibilidade de pol�tica antigravitacional, como defendia a fil�sofa Simone Weil.
Encontros inesquec�veis
As cartas apostam na imagina��o, no afetivo, e, mais ainda, na possibilidade de afeta��o dos corpos. O medo de deixar de sentir � relatado em muitos dos textos. De fato, a imunidade parece contaminar nossos sentidos, como pensa o fil�sofo italiano Roberto Esp�sito quando nos explica que a conserva��o da vida est� condicionada a um poder coercitivo que ao mesmo tempo protege e aprisiona o corpo. N�o por acaso s�o lembrados tantas vezes nas cartas os encontros pr�-pand�micos, regados a m�sica e dan�a, e que se tornam inesquec�veis justamente pela possibilidade de modifica��o e multiplica��o das percep��es espa�o-temporais.
Se uma amizade nasce de um estar �brio e louco, de um estar votado ao desconhecido, como lemos na carta de Urik a Pedro, no texto de Andr� Elias, dirigindo-se tamb�m a Pedro, a repulsa a estar s�brio s� n�o � maior do que a repulsa de estar embriagado. Nessa �ltima carta, posto que parece tratar-se do di�logo entre vizinhos, a escrita funciona como uma campainha, a salvar uma margem de comunicabilidade, mesmo que abst�mia, capaz de proliferar nossas sensa��es de proximidade e afastamento. Em certa medida, quer se trate de longas dist�ncias, quer o di�logo seja bem pr�ximo, o que as cartas operam � o apagamento das linhas de demarca��o, um abrir das portas a provocar graus de despersonaliza��o, quando algu�m pode ser apelidado, renomeado, reencontrado.
A m�quina epistolar propulsa novas vizinhan�as, novos limiares, descodificando, inclusive, as leis do g�nero e das filia��es. Uma carta em forma de poema � endere�ada a uma poeta que escreve poemas em forma de carta; seria isso uma carta ou um poema em abismo?. A tradi��o em que se inscreve o texto de Carina Gon�alves, a misturar os estilos, as dic��es e os objetos, � longa, e inclui, al�m da destinat�ria, a poeta contempor�nea Mar�lia Garcia, tamb�m Emily Dickinson, Maria Gabriela Llansol, as tr�s marias das “Novas cartas portuguesas”, entre outras escritoras que se propuseram a embaralhar os g�neros do ponto de vista sexual e liter�rio.
Afinal, haveria uma forma epistolar, ou esta seria como que o resultado da devora��o de v�rios modelos textuais? Os espectros se multiplicam, afirmando a possibilidade de um entre-lugar, como quando lemos na carta de Carina: “Vejo que o que voc� escreve � transparente como fantasma”. O sil�ncio, a lacuna, o transl�cido, s�o importantes nesses textos, seja na escans�o de versos, seja ainda no desejo de manter o assunto da carta indefinido, inespec�fico. Ainda nessa carta, s�o os enganos geogr�ficos ou as geografias da interpreta��o que prevalecem, em conson�ncia com a po�tica da destinat�ria, Mar�lia Garcia.
Por que, ent�o, n�o escrever cartas como se estiv�ssemos a estudar, a aproximarmo-nos daqueles a quem nossas pesquisas se voltam, a quem nosso sens�vel se devota, seja por conta de um filme, um verso, um ensaio sobre o retrato no cinema, um manuscrito traduzido e esgotado? Por que n�o pensar, ainda, na carta, n�o enquanto egografia ou conserva��o de si, e sim como um dispositivo coletivo, descentralizador, capaz de fazer de n�s fantasmas a atravessar os limites do tempo? Uma m�quina capaz de desarticular nossas no��es espaciais, de armar outras percep��es e outros sens�veis nos quais transitamos e atravessamos...? A carta de Joviano Maia � exemplar do que se defende em termos de uma po�tica da conflu�ncia, ao restituir um timbre afropindor�mico, aprendido com o poeta Nego Bispo, a quem o texto se endere�a, e que, de alguma forma, o celebra, celebrando sua posi��o contra colonialista. Neste, lemos um poema, um “versar a resposta da resposta/ a r�plica da r�plica, a tr�plica, / que em verdade/ nada responde/ nem faz proposta/ somente expressa, / talvez uma aposta, / em tr�s palavras/ in�cio meio in�cio”.
Conversa infinita
O poema em homenagem a Bispo diz n�o mais acreditar no fim. De fato, esse � um livro que comunga com a ideia blanchotiana de uma conversa infinita, ao mesmo tempo em parece disparar os in�cios, os recome�os, os prel�dios, as reescritas. As pr�ticas afro-diasp�ricas de montagem e colagem de pontos dispersos no mapa e interrompidos pela brutalidade colonialista, nesta carta de Joviano, ilustram o que viria ser a posi��o afropindor�mica, pot�ncia conectiva que est� sempre por restabelecer e recriar as liga��es e as continuidades entre as culturas. Este parece ser um ponto alto do livro e do projeto organizados por Pedro e Urik: o de estabelecer pontes entre lugares distintos, al�m de desconfiar dos fundamentos ocidentais da escrita epistolar, t�o ancorada na interioridade, na sinceridade e na profundidade, mas tamb�m da nossa cultura t�o apegada a valores de linearidade, progressismo e racionalidade.
Assim, um navio negreiro dev�m jangada e uma jangada dev�m g�ndola.
O anacronismo acaba por se revelar uma de nossas inesperadas vantagens, por dar continuidade ao inacabamento, reatualizando o come�o para que encontremos outro futuro. Trata-se de um importante dispositivo para que permanecemos resistindo entre o meio e o in�cio, como defende Joviano. A carta de Mara�za Labanca, por exemplo, custa a come�ar, gira em falso, sem achar o vocativo prop�cio. At� que assume essa impossibilidade como for�a motriz: “Talvez esta carta v� assim, sem vocativo, porque toda ela � um vocativo... no sentido em que o Nancy fala, voc� se lembra? Desse apelo ao outro, um apelo vocal. Ent�o eu talvez n�o diga nada aqui. Talvez, inclusive, nunca tenha havido nada a dizer. O que a humanidade faz, o tempo todo, � esse apelo, essa convoca��o �s vezes desesperada... A anuncia��o de uma falta.” Algumas cartas n�o nomeiam, deixam lugares vazios, dignos de nossos vivos interesses em deslocamento; a sala onde um dia se poder� dan�ar de novo, com os mesmos ou novos parceiros, com os nossos ancestrais, �vidos pela vida.
O vivido, o sabido e o que ainda n�o teve lugar se reencontram nessas trajet�rias que n�o s�o simplesmente relatos, mas, mais ainda, modos de acessar o real refrat�rio, o surreal, as po�ticas que est�o mais para l� do nome pr�prio, como numa dan�a sempre imprevis�vel, uma inc�gnita musical guardada para tempos futuros, para o pr�ximo ato ou para o par ainda n�o formado. De modo muito pertinente, Urik, em carta-conto a Dante, fala em uma “espera ativa”; este talvez seja um livro que procede, de fato, por rel�mpagos e raios, momento brev�ssimo em que o passado e o presente se tornam contempor�neos, abertos ludicamente ao aqui e ao agora da alquimia da escrita. Algo da ordem do imprevis�vel acontece para se continuar a criar, a escrever, a endere�ar-se. Qual seria essa for�a que nos faz deslocar os limites entre o documento e a fic��o, transbordando o enquadramento, a causa da escrita, o tema a-tem�tico de uma missiva?
“Geografia epistolar” n�o � de f�ceis respostas nem de trajetos previs�veis. Aqui tamb�m lemos a carta de um diretor goiano que escreve para um poeta tamb�m goiano, morto precocemente, para que juntos pensem o futuro; um compositor mostra como musicou o poema de uma poeta portuguesa, e h� quem garanta que ela sorriu para o resultado; uma artista conversa com um poeta e professor, autor de um belo livro nomeado “Geografia a�rea”. H�, inclusive, quem viva em mais de um lugar, como no caso de Randolpho Lamonier, artista mineiro cuja biografia no site Pr�mio Pipa nos diz que “vive entre Paris e Contagem, Betim e Berlim”.
Autor de uma s�rie de bandeiras intitulada “Profecias”, em que costura e bordado tecem mensagens vindas do futuro, Randolpho nos confirma que nunca estamos puros diante de outro, nem nos situamos num �nico tempo, e que a nossa descontinuidade acaba se mostrando motor para que os afetos possam resistir mesmo durante grandes intervalos, em que a aus�ncia de resposta ou o imposs�vel di�logo convertem nossas utopias a um pragmatismo pobre.
Autor de uma s�rie de bandeiras intitulada “Profecias”, em que costura e bordado tecem mensagens vindas do futuro, Randolpho nos confirma que nunca estamos puros diante de outro, nem nos situamos num �nico tempo, e que a nossa descontinuidade acaba se mostrando motor para que os afetos possam resistir mesmo durante grandes intervalos, em que a aus�ncia de resposta ou o imposs�vel di�logo convertem nossas utopias a um pragmatismo pobre.
A verdade � que, por mais que escritores e leitores se distanciem, �s vezes sendo at� an�nimos ou desconhecidos uns para os outros, “nesses tempos de isolamento todos s�o nivelados a esse patamar de c�mplices, parceiros de uma grande empreitada.” Os nomeados e os an�nimos que aqui comparecem s�o em alguma medida impessoais e singulares, reinstaurando um comum por meio de um convocar da carta n�o com vistas ao pacto que ela estabelece com o leitor, mas no sentido de sua subvers�o e desconstru��o. Marina Rima, em uma carta enumerada, em forma de lista, nos diz: “2. Talvez tenha decidido escrever porque sabia que n�o escreveria.” Uma carta, como a objetiva de uma c�mera fotogr�fica, �s vezes s� captura a imagem no movimento de abrir e fechar das lentes. No �ltimo texto destas geografias epistolares, l�-se com mais precis�o esse movimento paradoxal, presente em maior ou menor grau tamb�m nos outros textos, de um pensamento insensato, de uma escrita que libera possibilidades, de uma dic��o distra�da entre o p�blico e o privado.
A parcialidade dessas cartas n�o assume a exclusividade do testemunho ou da poesia de nosso tempo, tampouco parece almejar a palavra final. Ao contr�rio, nesse ir e vir das palavras elas abrem brechas, tornam sens�vel a dist�ncia que nos habita, ampliando o insond�vel deste tempo com restos que ainda est�o por serem indagados. “Geografia epistolar” �, ent�o, um esfor�o, po�tico e pol�tico, para pensar a partir de dois, para sonhar este mundo que n�o � t�o s� datado nas cartas.
“Geografia epistolar”
• Organiza��o de Pedro Rena e Urik Paiva
• Editora Surrealpolitik
• R$ 55
• Lan�amento presencial neste s�bado (18/12), das 19h � 1h, no Sula Beag� (Avenida Afonso Pena, 955, Centro), com discotecagem dos DJs Carichan e Fael