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Estado de Minas PENSAR

Um panorama da imprensa negra do Brasil p�s-aboli��o at� os dias de hoje

Embora com vida ef�mera, boa parte dos jornais negros na primeira metade do s�culo 20 teve esta marca: eram �rg�os dos locais de reuni�o da popula��o negra


18/02/2022 04:00 - atualizado 18/02/2022 10:08

Ilustração de Quinho
Os jornais impressos sempre foram locais estrat�gicos para a publicidade das ideias e an�lises de homens e mulheres negros, que pelo dom�nio da escrita, do acesso � educa��o formal e pelo ativismo social se apresentaram como pensadores e intelectuais do seu tempo. Escapando das amarras de se entender a popula��o negra somente a partir da sua corporeidade, como nos lembraria Stuart Hall, em que se reserva ao corpo negro a l�gica do trabalho, do perigo, do exotismo, da sensualidade e se abomina ou descarta a sua capacidade intelectual e criativa.

A escrita � uma das express�es da cultura, em sentido amplo, a partir da qual se exerce a media��o das explica��es que integram os modelos conceituais com os quais representamos o mundo. E em um mundo em transforma��o, como foi a passagem do s�culo 19 para o 20, o que homens e mulheres negros fizeram no p�s-aboli��o? Ser� que se portaram como cr�ticos sociais e idealizadores de outros projetos de futuro?

As publica��es da imprensa negra entram em cena para cultivar e colher um mercado de opini�es sobre temas sens�veis para a coletividade negra, como racismo e ra�a, o lazer e a cultura, os valores morais do trabalho, a no��o de na��o, os entendimentos sobre cidadania, os repert�rios de urbanidade e respeitabilidade. E a celebra��o de personagens negros, como Luiz Gama, a M�e Preta, Henrique Dias, Zumbi dos Palmares, Jos� do Patroc�nio. Al�m de ventilar a situa��o da popula��o da di�spora africana em outros cantos do mundo. Tamb�m se analisava o funcionamento das institui��es e sobre como o mundo do escravismo modificava-se e, depois da aboli��o, transbordava para os novos tempos republicanos.

Nos jornais da imprensa hegem�nica, a popula��o negra, na maioria das vezes, aparecia por um vi�s racializado: nas charges, nas vagas de empregos, nas an�lises sociais, nas p�ginas policiais, nos cadernos de cultura e esporte, que criavam um repert�rio acerca dos afrodescendentes e conformava vis�es de mundo excludentes, hier�rquicas ou estereotipadas. Como n�o poderiam publicar nessa imprensa, ou quase nunca tinha acesso para tensionar essa torrente negativa de textos e imagens, a cria��o de jornais negros foi uma sa�da e uma urg�ncia, inclusive para pautar os temas que lhes interessavam.

As publica��es negras pipocaram, em todo o territ�rio nacional, desde o s�culo 19. O marco foi o pasquim, O Mulato ou O Homem de Cor, publicado pelo tip�grafo fluminense Paula Brito, no ano de 1833, que trazia quest�es sobre as falhas da cidadania conferida a negros livres e libertos, contrariando os princ�pios da Constitui��o brasileira de 1824, e alertava sobre a prec�ria situa��o dos “homens de cor” n�o escravizados. Ana Fl�via Magalh�es nos deixa a par de outras publica��es da incipiente imprensa negra brasileira do s�culo 19, como o Brasileiro Pardo e O Lafuente, que circularam na corte na d�cada de 1830, e O Homem, que apareceu no Recife, em 1876, e tinha como objetivo “promover a uni�o, a instru��o e a moraliza��o dos homens de cor pernambucanos” e denunciava que j� n�o havia “mais nesta prov�ncia um s� emprego de alta import�ncia e considera��o que seja exercido por homem de cor”, apontando como o crit�rio racial foi sendo introduzido como linha de corte para a ocupa��o de certos cargos p�blicos, � medida que o s�culo 19 avan�ava.

Quando a aboli��o veio, em 1888, e a partir do advento da Rep�blica, a imprensa em geral assumiu um papel “civilizador” contra o analfabetismo e as pr�ticas ‘incultas’, al�m de divulgar interesses de grupos pol�ticos desempenhando um papel de peso no jogo eleitoral, mas tamb�m na forma��o da opini�o p�blica. Nesse per�odo, tamb�m vimos o surgimento de jornais alternativos que criaram repert�rios de luta e identidade, de pedagogia e solidariedade, para grupos sociais espec�ficos, como a popula��o negra, mas tamb�m oper�rios, mulheres, imigrantes. Nessa fase, temos o jornal Exemplo, de Porto Alegre, que circulou entre 1892 a 1930, e tamb�m A Alvorada, de Pelotas, publicado entre 1907 e 1965, com algumas interrup��es. Ainda no Rio Grande do Sul, temos A Tesoura (1924), A Revolta (1925), O Tagarela (1929). Sobre os jornais negros de Minas Gerais, temos A Verdade (1904), que circulou na cidade de Pouso Alegre, e o Ra�a (1935), de Uberl�ndia.

Saltando para S�o Paulo, temos A P�tria, de 1889, e O Progresso, cujo primeiro n�mero � de 1899. Na primeira metade do s�culo 20, houve uma profus�o de publica��es negras paulistas, como O Baluarte e Getulino, de Campinas; na capital circularam O Menelick (1915), O Xauter (1916), A Rua (1916), O Bandeirante (1918), O Alfinete (1918), A Liberdade (1919), A Sentinela (1920), Kosmos (1922), Clarim d’Alvorada (1924), Elite (1924), Progresso (1928) e A Voz da Ra�a (1933). Sendo que A Voz foi a publica��o oficial da mais importante organiza��o negra da primeira metade do s�culo passado, a Frente Negra Brasileira, que funcionou entre 1931 e 1937.

Embora com vida ef�mera, pelas dificuldades de sustentar sua publica��o regular e cont�nua, boa parte dos jornais negros teve esta marca: eram �rg�os dos locais de reuni�o da popula��o negra e serviam para lan�ar sua programa��o e a vida social dos seus membros. E neles os associados e convidados publicavam suas an�lises e impress�es sobre variados temas. Naquilo que Ana Fl�via Magalh�es, j� citada, chamaria de “jornais feitos por negros; para negros; veiculando assuntos de interesse das popula��es negras”. Embora o p�blico leitor fosse muito al�m e o debate e den�ncias ali gerados reverberassem em toda a sociedade. Outras publica��es surgiram ao longo da segunda metade do s�culo 20, principalmente nos momentos de democracia, como entre 1945 e 64, como os jornais O Novo Horizonte, Mundo Novo, A Voz da Negritude, o Mutir�o, Not�cias de �bano, Nosso Jornal e as revistas Senzala (1946) e N�ger (1960).

Nos anos finais da ditadura militar e durante a redemocratiza��o do pa�s, a sociedade civil se rearticularia com mais vigor. Em 1978, foi fundado o Movimento Negro Unificado (MNU), que trouxe � tona novos temas e diretrizes para o movimento e o mais importante: a contesta��o ao “mito da democracia racial” que, desde os anos 30, serviu para demover as den�ncias do racismo estrutural, o que foi piorado pelo cerceamento do regime militar, que via com maus olhos o debate racial e a a��o dos movimentos sociais.

Nessa fase, foram fundados v�rios jornais por muitas pessoas que passaram pelo MNU. Foi o caso do Ti��o (1977), de Porto Alegre, ou o Objetivo (1977), da cidade mineira de Uberaba, e a Voz do Negro (1984); em BH, o �fricas Gerais (1995). Em Salvador, na primeira metade da d�cada de 80, os jornais N�go, AfroBrasil, El�mi. Ou em S�o Paulo, ainda na d�cada de 70, os jornais O Saci, Negrice, Jornegro, Vissungo; ou o Irohin (1996), em Bras�lia. Tantos outros �rg�os da imprensa negra vieram a lume, em diversos lugares do pa�s: no Rio, em S�o Lu�s, no Recife, em Florian�polis.

Foi o caso da revista Ra�a, de circula��o nacional e grande apelo est�tico e comercial, cuja primeira edi��o � de setembro de 1996. A exist�ncia material das publica��es, a linha editorial adotada, a busca pelos an�ncios, os textos e imagens selecionados, as escolhas de quem e o que devia ser publicado, os di�logos travados com outros sujeitos sociais, as no��es a respeito da liberdade de imprensa e de pensamento foram atos pol�ticos, por excel�ncia, quando a luta contra o racismo moldou a hist�ria da imprensa negra, desde sua origem. Mas ela n�o p�ra por a�, tanto no formato escrito quanto no digital.

Atualmente, ela continua amplificada no que chamamos de “m�dia negra”, que engloba sites, blogs, p�ginas e perfis em redes sociais, canais no YouTubepodcasts nos tocadores digitais e at� um canal de televis�o com conte�do majoritariamente produzido e voltado para o p�blico negro, a Wolo TV. Exemplos dessa m�dia negra s�o o Alma Preta, o Portal Geledes, o Afropress, o Hist�ria Preta, o Nossos passos v�m de longe, o Atl�ntico Negro, o Pensar Africanamente, e uma infinidade de outros ve�culos. No p�s-aboli��o, esse tempo em aberto em que as demandas e tens�es a partir da ideia de ra�a s�o parte constituinte do mundo atual, a escrita e as vozes da gente negra, na sua m�ltipla experi�ncia e ag�ncia, s�o centrais para a compreens�o da sociedade brasileira.

Os jornais negros trazem an�lises potentes para al�m dos lugares limitantes, em v�rias �reas do conhecimento, sobre a trajet�ria da popula��o negra. Desde a d�cada de 1950, existem preciosos estudos sobre o seu significado e pot�ncia. O interessante � que boa parte dos jornais negros podem ser acessados no site da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, o que facilita a vida dos curiosos dessa hist�ria e os pesquisadores de v�rias �reas.

A imprensa negra � um lugar privilegiado para ir ao encontro das escritas dessa ‘gente de cor’, da hist�ria vista de baixo para cima, como incita a pensar o historiador Eric Hobsbawm. S�o textos que trazem novas leituras sobre a popula��o negra, que tamb�m nos permitiu pavimentar uma identidade coletiva positiva e afastar a ideia de que ficamos � margem, em um eterno estado de anomia social e resigna��o infrut�fera. Lutou-se! E luta-se! Pelas palavras, ideias e projetos coletivos tamb�m!

*Jo�o Paulo Lopes � historiador, professor e integrante da rede de historiadores negros


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