
Incorporando elementos autobiogr�ficos, a narrativa da escritora italiana principia com leveza, ainda que trate do funeral paterno. A comicidade d� a t�nica, e nos aconchegamos aos epis�dios de uma fam�lia sulista vivendo no norte da It�lia nos anos 1960. Depois de instalados no texto, a vertigem. Campo entra sem d� nesse territ�rio, trazendo as peculiaridades da cultura em quest�o: “Sempre me pareceu uma atitude muito italiana, das fam�lias e dos indiv�duos, a de n�o querer enxergar as coisas como s�o, esquivar-se delas, querer elimin�-las, na esperan�a de que, desviando, n�o se colocando diante da verdade das coisas, as coisas mudem, se transformem, fa�am menos mal ou at� mesmo desapare�am”. Publicado em 2015 e laureado em 2016 com os pr�mios Strega Giovani e Elsa Morante, Onde voc� vai encontrar um outro pai como o meu vem na sequ�ncia de outros 10 livros publicados. Nascida em G�nova em 1963, a escritora estreou na literatura em 1992 com In principio erano le mutande (“No princ�pio eram as roupas �ntimas”), adaptado para o cinema por Anna Negri.
Corajoso, este recente romance de Campo olha para a verdade das coisas e nos arrebata pelo talento da escritora ao dissecar os extremos dos sentimentos – naquele n�cleo, se � muito feliz ou muito infeliz. A narradora enfrenta a dor de amar um pai cheio de defeitos, descrevendo a montanha russa emocional da vida de uma fam�lia impregnada pela personalidade paterna, inclu�das a� generosas doses de �lcool, viol�ncia, irresponsabilidade e autodestrui��o. Esses terroni, assim chamados pejorativamente no norte em fun��o da origem meridional, carregam ainda por cima sangue cigano. A um preconceito soma-se outro, provocando a sensa��o de dupla marginalidade.
Pertencente a uma gera��o forjada pela pobreza e pela viol�ncia do fascismo, Renato di Rocco � um personagem de muitas nuances. Ador�vel, recomenda � filha nunca ter medo de nada, j� que foi concebida em cima de uma mesa de bilhar. O pai que, na inf�ncia, busca a filha no acampamento tedioso com freiras, faz rir, traz doces e presentes, e ao fim de uma vida de dissipa��o ainda consegue deixar uma pequena heran�a. Renato di Rocco � tamb�m um sujeito asqueroso. B�bado violento, mentiroso contumaz, “uma merda de pai” que bate na m�e e leva os filhos a botecos que fedem a cigarro e urina. Policial militar, n�o se sujeita a regras e � expulso da corpora��o. Os atributos de encrenqueiro e desempregado em nada ajudam na rela��o com gente supostamente normal.
Mas estamos no terreno da ambival�ncia, e com esse pai a filha se identifica fortemente. Adulta, torna-se escritora, e procura ver sua hist�ria pessoal de outro ponto de vista. A mudan�a de perspectiva se relaciona inteiramente ao seu of�cio. Para al�m da reflex�o sobre os contrastes entre amor e �dio pela figura paterna, Campo questiona o lugar da escrita. Aterrorizada, pensa que o dia em que o pai morresse n�o produziria mais. E fora das palavras n�o haveria abrigo.
Intrigada por essa possibilidade, procura um psicanalista franc�s que escrevera ensaios sobre criatividade e loucura em alguns escritores. O famoso especialista, ao ouvir sua queixa de se sentir fora de lugar no mundo, desaconselha o tratamento – encoraja que assuma o desenraizamento como condi��o existencial, j� que aqueles que nascem com certa sensibilidade devem encarar seu destino. No texto, a constante sensa��o de desajuste experimentada pela narradora vai sendo direcionada para uma liberta��o pela arte, modo de tra�ar linhas de fuga.
H� uma passagem do romance relatando a cena de um dever escolar: a pedido da professora, as crian�as desenhariam a Lanterna de G�nova depois de visit�-la. Ajudada pelo pai, que s� cumpre a primeira parte da tarefa, a menina leva o trabalho � mestra e recebe dura repreens�o: a Lanterna pedida era o farol da cidade, c�lebre monumento portu�rio, e n�o uma lamparina qualquer – “meu caderno com a lanterna superbonita s� que toda errada”. Sem tentativa de reden��o ou tom lacrimejante, a narrativa vai ensaiando possibilidades, onde erros e acertos convivem de perto. Leitor de Hemingway, apreciador de poesia, esse pai desenha e transita pelo espa�o do sens�vel.
A m�o do homem tosco, que bate e levanta o copo pela mil�sima vez, � a mesma que afaga e cria coisas belas. N�o h� como escolher, indissoci�veis que s�o. Diante desse impasse, a narradora elege a tribo dos inadaptados – �s vezes a lanterna poss�vel � a lamparina errada, que, de um jeito torto, ainda ilumina.
TRECHOS
Contamos um ao outro mais epis�dios ligados ao nosso pai, da� digo: Sabe, se fosse um filme com as m�sicas do Tom Waits, com o roteiro do Bukowski, a gente ia gostar dessa hist�ria. Sim, ele disse, e, como que continuando meu pensamento, acrescenta: Mas em vez disso, era a nossa vida, entende? Claro, era a nossa vida.
O inimigo e o ser que eu sentia ser meu c�mplice e o �nico extraterrestre com pensamentos parecidos com os meus eram a mesma pessoa. Que confus�o desgra�ada, sentir-se parecida e amar algu�m que foi tamb�m o seu torturador. Que desconcertante reconhecer tra�os do meu pai no meu rosto, a forma do nariz, dos olhos, os bra�os, as m�os, o jeito de andar. Que merda de esfor�o, que dor saber que voc� herdou parte dele nos seus genes, parte do seu car�ter dif�cil, das suas fraquezas e fragilidades.

Onde voc� vai encontrar um outro pai como o meu
• De Rossana Campo
• Tradu��o de Cezar Tridapalli
• Ayin� Editora
• R$ 64,90
• 180 p�ginas