
No romance “O para�so � bem bacana” (2006), o jogador de futebol Man� troca o Santos pelo Hertha Berlin, converte-se a uma vertente extremista do isl�, � rebatizado como Muhammad Man� e acaba envolvido em um atentado terrorista. Nas hist�rias de “O Brasil � bom” (2014) e do rec�m-lan�ado “Discurso sobre a met�stase” (Todavia), temos esse mesmo esmiu�ar de uma terr�vel banalidade linguageira que, de uma forma ou de outra, sempre resulta em viol�ncia.
Qualquer pessoa que vive no Brasil contempor�neo (e n�o � uma bo�al) conhece bem e, em muitos casos, sente na pele essa viol�ncia do discurso e esse discurso da viol�ncia. Ambos s�o lados de uma mesma moeda, baseados na repeti��o de chav�es e mentiras, na corrup��o do verbo, da rep�blica e do esp�rito. Para dar conta desse deserto da consci�ncia que � — sempre foi, sublinhe-se — o nosso pa�s, Sant’Anna recorre a um estilo prolixo e repetitivo, metralhado por lugares-comuns e caracterizado por uma, v� l�, l�gica interna muito peculiar. Ou seja, � uma par�dia literariamente estupenda das imbecilidades que assolam as redes sociais e os almo�os domingueiros de boa parte das fam�lias brasileiras.
“Discurso sobre a met�stase” � dividido em tr�s partes: “O homem”, “O autor” e “O discurso”. A primeira delas � composta por catorze hist�rias de tamanhos variados (qualquer coisa entre uma e 39 p�ginas), incluindo a que d� t�tulo ao volume. A segunda parte apresenta tr�s narrativas autobiogr�ficas, com destaque para “A hist�ria do meu pai”, bela elegia para S�rgio Sant’Anna, falecido em 2020: “Eu n�o conseguia enquadrar a literatura do meu pai junto com as outras literaturas que eu estava come�ando a ler. S� algum tempo depois eu comecei a conhecer outras literaturas que n�o se encaixam em lugar nenhum. Literatura de exce��o?”.
Por fim, na terceira parte, temos uma narrativa que emula a forma teatral (� certa altura, Godot entra em cena e pergunta: “E a�? Qual que vai ser?”) para descrever, entre outras coisas, a ascens�o dos Imbecis (sic) que hoje testemunhamos: “Ainda tinha os livros”, diz o personagem Zeitgeist, “mas (...) n�o foi preciso nem fazer lei. Foi uma coisa espont�nea, lindo, as fogueiras de palavras, os imbecis tomando as ruas, os imbecis todos trazendo seus agrupamentos de palavras impressas como combust�vel para as fogueiras. Finalmente, �ramos todos iguais, todos imbecis”.
O teor e a reconstitui��o dessa imbecilidade pela via ficcional s�o muitas vezes c�micos, mas tamb�m aterrorizantes. � algo pr�ximo demais do cotidiano grotesco sob o qual estamos soterrados. E n�o h�, aqui, nenhuma facilidade. Tome-se como exemplo a hist�ria-t�tulo. Nela, a obtusidade � devassada por meio de uma forma tamb�m obtusa, que reitera certas express�es (“homens de bem”, “est� chovendo dinheiro em Nova York”, “croc-chips-bits-burgers”, “dinheiro, que � a coisa mais importante que existe”, “a culpa � do direitos humanos”, “classe baixa alta”) e � repleta de contradi��es (“Libere o seu inconsciente fascista! Diga sim � viol�ncia do bem!”; “Fa�a uso da viol�ncia leg�tima que a sua superioridade natural permite e garanta a sobreviv�ncia da civiliza��o que erguemos (...), dos croc-chips-bits-burgers que continuar�o sendo os pilares do inesgot�vel crescimento de nosso Produto Interno Bruto”).
O rid�culo e o absurdo
O emaranhado absurdo desse discurso ridiculariza � perfei��o os esperneios de certas figuras da Rep�blica, como os tu�tes daquele famigerado “vereador federal” e as falas golpistas do chefe do Executivo, bem como os mugidos da massa em que se misturam fundamentalistas religiosos, ignorantes, paranoicos, ressentidos e oportunistas, todos naquela “ang�stia das novas classes, a nova classe m�dia, a nova classe, a Classe Baixa Alta”, nesse “Brasil cheio de policiais honestos vibrando com o filme do Padilha, dando tapas nas caras de adolescentes e jovens de cor escura que usam bon� com a aba para tr�s e corrente no pesco�o” (em “Purgat�rio”), Brasil no qual o “ pobre, quando � crian�a, vai na escola p�blica ruim e toma um tiro na cabe�a, no meio da aula” (em “Os melhores do mundo”).
Em meio � sujidade pret�rita e presente, n�o surpreende que um levante social se d� por conta do racionamento que, mais uma vez, est� a caminho, “com aquele fedor que j� estava tomando conta de tudo. Aquele cheiro de podre no ar. Aquele cheiro de civiliza��o em decad�ncia” (em “A idade das trevas”).
Em suma, as hist�rias exp�em esse irracionalismo essencial que suplantou qualquer possibilidade de conviv�ncia pac�fica. O radicalismo formal �, portanto, uma resposta ao desarvoramento do real, presente mesmo nos textos que versam sobre outros temas: “Ela vai morrer no final” descreve um traum�tico ac�mulo de adiamentos, e a hist�ria se transforma e desvia para chegar ao mesm�ssimo e irrespir�vel lugar. Por tudo isso, “Discurso sobre a met�stase” � um not�vel exemplar da “literatura de exce��o” que Andr� Sant’Anna enxergava nos escritos do pai.
*Andr� de Leones � escritor, autor do romance “Eufrates” (Jos� Olympio), entre outros
Trecho
“Quando saiu ‘Confiss�es de Ralfo’, eu j� era o George Harrison e o livro era todo psicod�lico, e eu ficava ouvindo o ‘Dark Side of the Moon’ o tempo todo, e o ‘Clube da Esquina’, e a cidade do livro era Gotham City e, al�m de ser George Harrison, eu era tamb�m o Batman, e, nessa �poca tamb�m, setenta e poucos, eu comecei a ouvir as hist�rias da ditadura militar, as torturas e tal, e, no ‘Ralfo’, tinha o trecho do ‘Interrogat�rio’, que dava medo, sei l�, podiam prender o meu pai pelo conto, sei l�, mas eram engra�adas as perguntas dos torturadores, os temas das perguntas e eu pensava nos meus professores da escola me torturando, a minha professora de portugu�s, que eu amava, me torturando. (...)”
