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Estado de Minas LITERATURA

Paulina Chiziane: 'Sou uma contadora de hist�rias'

Pr�mio Cam�es de Literatura em 2021, escritora mo�ambicana explica porque n�o gosta de ser chamada de romancista e enaltece os escritos de Carolina de Jesus


29/10/2021 04:00 - atualizado 29/10/2021 16:10

A escritora moçambicana Paulina Chiziane
A escritora mo�ambicana Paulina Chiziane (foto: Editora Dublinense/Divulga��o)
Depois de ser anunciada como a vencedora do Pr�mio Cam�es de Literatura, a mo�ambicana Paulina Chiziane concedeu uma entrevista em v�deo que viralizou no Brasil. A escritora aparece em casa, sentada ao lado de uma fogueira, e revela como ficou sabendo que havia sido agraciada: "Estava aqui preparando a minha verdura e, de repente, algu�m me liga. Eu nem sequer me lembrava que existia o Pr�mio Cam�es. Estava muito tranquila na minha vida camponesa. Ent�o recebo a not�cia. S� sei dizer que a verdura que normalmente fa�o, com aquele gosto, aquele requinte, porque sou eu mesma quem vai comer, acabou queimada", disse, revelando o que deixou queimar: "Folhas de ab�bora com amendoim para comer com xima, uma papa de farinha de milho engrossada".

 

O v�deo revela o jeito de ser da escritora, uma das primeiras mulheres de Mo�ambique a publicar um romance. Vem dessa maneira de olhar para o mundo uma obra vasta e complexa que n�o se refere apenas � vida e aos costumes daquele pa�s, mas revela muito mais quando nos aproximamos do universo das mulheres retratadas nos livros: o lugar do feminino na constru��o de um outro mundo.

 

Paulina nasceu na cidade de Manjacaze, na Prov�ncia de Gaza, em 4 de junho de 1955. Ela cresceu nos sub�rbios da capital, Maputo, e graduou-se em lingu�stica na Universidade Eduardo Mondlane. Na juventude, participou da Frente de Liberta��o de Mo�ambique. Atuou na Cruz Vermelha Internacional durante a guerra civil do pa�s, entre 1977 e 1992. Ap�s o fim do conflito, trabalhou no N�cleo das Associa��es Femininas da Zamb�zia. Atua como consultora e projetos de ajuda internacional, com foco em conflitos e defesa dos direitos das mulheres.

 


Paulina estreou na literatura h� 31 anos, com o romance "Balada de amor ao vento". No entanto, prefere ser chamada de contadora de hist�rias em vez de escritora. Costuma dizer que as suas hist�rias v�m do imagin�rio coletivo do seu pa�s. Confira, a seguir, uma entrevista exclusiva com a autora.

 

No v�deo que viralizou no Brasil, voc� diz que gosta de ficar ao lado da fogueira, mesmo quando o clima est� quente...

� verdade. � uma mania de inf�ncia. Venho do campo e n�s cozinh�vamos com a lenha. N�s fic�vamos preparando a refei��o. Hoje, j� sou mais crescidinha e estou a regressar ao tempo de inf�ncia: claro que tenho o carv�o dispon�vel, fog�o a g�s, mas, agora, apetece-me comer com lenha, com aquele fumo. A fogueira acesa tem uma magia que me atrai. Mesmo que fa�a calor de 40 graus, n�o fico sem a minha fogueira.

 

Por que prefere ser chamada de contadora de hist�rias e n�o de romancista?

Sou de Manjacaze, sou chope (povo do Sul de Mo�ambique), aqueles que s�o autores de um dos maiores patrim�nios da humanidade, a timbila (instrumento de percuss�o reconhecido pela Unesco como patrim�nio mundial). Venho desse grupo, de uma terra de tantos guerreiros, pioneiros na luta contra os portugueses, na luta pela liberta��o. Gosto muito da cultura chope, da cultura banto, e gosto muito da cultura portuguesa.

Mas o que � o romance para quem vem de uma cultura banto? A minha l�ngua portuguesa � produto dessas duas misturas. Se eu aceitasse ser romancista, aqueles especialistas do romance, no estilo europeu, eles iriam colocar a autoridade deles sobre a minha vida. Eu disse n�o. O que eu escrevo � parecido com o portugu�s, � parecido com o romance, tem muita proximidade. Mas, por favor, me deixa escrever como eu quero. N�o sou romancista. Conto hist�rias.

 

No livro "As andorinhas", voc� conta a hist�ria do imperador chope. Fico imaginando que n�s, aqui no Brasil, n�s negros, ficamos sempre buscando nossa origem africana. Tivemos uma interrup��o com o processo de escraviza��o. No caso de voc�s, em Mo�ambique, apesar do colonialismo, parece-me n�o ter havido esse corte com a ancestralidade. Queria que voc� falasse de sua perspectiva se, de fato, n�o h� esse corte, embora haja todo esse processo de coloniza��o...

N�o � f�cil dar uma resposta a essa pergunta, mas o que posso dizer � que houve corte, sim, n�o numa dimens�o semelhante � vossa, mas houve. Nos tempos modernos, os africanos, os mo�ambicanos, que tiveram acesso a grandes forma��es na Europa, na Am�rica, no considerado Primeiro Mundo, alguns deles s�o os primeiros a negar-se a si mesmos. O projeto colonial fez trabalho muito poderoso de lavagem cerebral.

Uma prova disso � o tipo de coisas que eu escrevo, falo de todas as coisas, aquilo que diz respeito ao meu povo e j� encontrei pessoas muito importantes a dizer 'por favor, Paulina, n�o escreva isso, tu est�s a escrever coisas tradicionalistas. A literatura da Paulina n�o � boa, porque fala de coisas tradicionais'. Houve, sim, uma ruptura, at� determinado n�vel. O que posso dizer � que esse pr�mio pode vir a resolver alguns problemas, a afirma��o de alguns mo�ambicanos pode come�ar a surgir. Os meus livros s�o essa mistura, minhas hist�rias, do centro, do Norte e do Sul, trazem a nossa vis�o de mundo, os nossos sonhos, nossas frustra��es, n�s como africanos, como mo�ambicanos, como negros.

Acredito que os novos escritores ou aqueles que j� escrevem v�o come�ar a perceber que os livros da Paulina se tornaram interessantes porque levam dentro de si a alma de seu povo. Esse pr�mio � extremamente importante por causa disso. As minhas hist�rias, nas aldeias mais recolhidas desse pa�s, ser�o conhecidas em todo o mundo. 

 

O livro "Niketche," embora trate da quest�o das mulheres mo�ambicanas, aborda um tema universal: as rela��es afetivas e amorosas que n�s, mulheres, temos em todos os lugares. Rami � uma mulher que tem uma rela��o muito forte com Tony, com clareza da situa��o: o marido tem outras fam�lias, que essa pr�tica, na verdade, n�o ocorre somente com ela, quando ela conta que as mulheres ficam ali sozinhas e o marido dela � o �nico que, esporadicamente, aparece por l� ainda. Ela vive o conflito de conseguir se ver a partir desse amor e entender todos os males que traz para ela e outras mulheres. Pelo menos na minha leitura, n�o � uma quest�o tradicionalista, mas uma quest�o contempor�nea. O que a motivou escrever sobre a poligamia?

N�o sei. Vou contar como tudo come�ou. Estava na Zamb�zia, vivia l�, trabalhava l�, estava sentada na varanda, � tardinha, e, de repente, vejo duas mulheres que pareciam embriagadas, vinham gritando, falando e foram parar na casa que estava � frente do meu pr�dio e de l� come�aram a gritar. De l� saiu uma senhora, a dona da casa, com bebezinho �s costas. As duas embriagadas disseram: 'Viemos informar-te que tu n�o �s a �nica mulher dele. Quando tu estavas gr�vida foi conosco que ele se realizava'.

Juntou-se um n�mero de pessoas para ver aquela querela. Peguei o telefone e liguei ao marido: � meu vizinho, eu o conhe�o. 'Regresse, urgentemente, porque a sua casa est� a ser assaltada.' 'A minha casa est� a ser assaltada?' 'Sim. Venha!' Ele estava bem perto, correu quando percebeu que se tratava de uma confus�o. Deu um passo na retaguarda e desapareceu. Ent�o, n�s, vizinhos, fomos socorrer aquela mulher, que tinha um beb� pequeno, e ela foi apanhada por loucas e embriagadas. Come�ou assim.  Passado um tempo, vi-me a escrever os palavr�es das duas mulheres embriagadas.

Nos primeiros cap�tulos, h� mulheres que brigam, que rebolam na rua, mais ou menos o que eu vi. Escrevi as duas primeiras p�ginas, achei interessante e continuei. O editor portugu�s (Jos� Zeferino Coelho, da Caminho) me perguntava: 'Ent�o, Paulina, quando terei o pr�ximo livro?'. Eu dizia: 'Calma que j� tenho o grosso da hist�ria, estou editando, preciso de um tempo para fazer a limpeza, eu escrevi o livro para mim'. Ele pediu para eu enviar o que tinha, eu fiz isso.  Passados tr�s meses, ele me liga e diz: 'Paulina, tens que vir lan�ar o livro em Portugal.' Eu falei n�o, que n�o podia ser daquele jeito. Ele disse: 'O livro est� fant�stico.

O que tu queres mudar?'. Primeiro, a forma como falo da sexualidade n�o � moralmente aceit�vel, n�o � politicamente correto. Precisava fazer algumas mexidas. Ele afirmou: 'Tenha calma, n�o se aborre�a, vamos experimentar para ver o que d�.' O livro saiu e eu temia porque a gente fala de sexualidade, mas n�o em p�blico. Foi um best-seller em Portugal. A ousadia trouxe essa novidade para os leitores. Eu confesso que se o doutor Zeferino n�o tivesse feito isso, eu poderia at� ter mutilado as partes mais belas do livro em nome de uma moral social, em nome de uma pol�tica, mas foi uma surpresa muito agrad�vel. 

 

Pode explicar o t�tulo do livro? 

Niketche � uma dan�a do Norte e centro do pa�s. O nosso pa�s tem a tradi��o muito forte desse tipo de inicia��o, os rapazes e as meninas tamb�m. � uma dan�a muito bonita, muito er�tica.

 

Queria que voc� falasse sobre a mulher negra como escritora. A sua hist�ria e o fato de esse pr�mio de reconhecimento desse lugar que ocupa n�o s� na cultura de Mo�ambique, que � muito importante, mas para a cultura de pa�ses de l�ngua portuguesa. Voc� � refer�ncia para todos os pa�ses de l�ngua portuguesa e para todas as mulheres que querem fazer essa produ��o simb�lica.

No meu entendimento, a arte � feminina. Uma crian�a acaba de nascer, � um beb� no colo de sua m�e e toda mulher que � m�e dedica uma can��o de embalar, um poema para seu filho ou sua filha. Aquele processo de embalar a crian�a com aquela sonoridade, com aquela cantiga, com aquele poema, com aquela pequena composi��o que a m�e sabe que vai embalar o seu filho, esse � o primeiro momento da socializa��o da crian�a pela arte.

Depois � o momento de o menino e a menina crescerem. Temos a fogueira no entardecer, primeiro espa�o de intimidade, onde toda a fam�lia se junta, e quem � que conta hist�rias? Normalmente, a av�, porque est� mais perto, o pai foi trabalhar, vai dormir mais cedo, porque est� cansado e essa tarefa de socializa��o das crian�as � muito feminina. Temos os grandes cerimoniais da comunidade, casamentos, funerais, festas... quem faz o brilho de uma festa � a mulher. Ent�o, no contexto africano, temos uma mulher absolutamente artista, mas quando surge o mundo moderno, as escolas, a primeira escolha para mandar algu�m � o homem. Depois, pronto, o homem vai produzindo arte. Quando chega � altura de produzir um livro, gravar uma m�sica ou entrar no est�dio, quem tem mais facilidade � o homem, porque teve acesso � melhor educa��o, com muito mais proximidade com o mundo moderno.

A� a tradi��o da oralidade � relegada a segundo plano. � complexo, mas precisamos resgatar. A mim, quem me contou hist�rias foi a minha av�, o meu av� tinha migrado para as minas da �frica do Sul ou ficava a trabalhar na capital. O mundo moderno que tanto se celebra como detentor da magia para todas as situa��es � este mundo moderno que retira o lado mais belo, o lugar mais sagrado de uma mulher na sua comunidade. Eu posso estar ofendendo algu�m a dizer isso, h� quem ache que o mundo moderno � a solu��o de tudo. N�s, que vivemos na cidade, achamos que somos mais importantes do que as mulheres do campo.

N�o � verdade: a mulher da cidade � escrava, mulher do campo � livre, vou explicar o porqu�. A mulher da cidade acorda de manh�, pois sai a trabalhar, volta para casa a correr para cozinhar, depois recebe o sal�rio para comprar mais disso e aquilo, o que d� um pouco mais de folga para o homem poder comprar mais cervejinha com outras mulheres l� fora. A mulher do campo, ela sabe, o trabalho est� muito bem dividido: casa, faz a sua comida ao entardecer, n�o faz trabalho duplo. A divis�o sexual do trabalho � muito bem definida, a mulher do campo n�o corre de um lugar para outro. A mulher do campo tem melhor controle da fam�lia do que a mulher da cidade.

Parece um bocado confuso esse ponto de vista, mas a mulher do campo � mais livre, tem mais tempo de humanidade, mais tempo de socializa��o, enquanto a mulher da cidade � quase prisioneira dos modelos sociais – tenho que fazer isso, tenho que fazer aquilo. Ela tem que fazer um milh�o de coisas e dar folga aos homens – essa � a parte de que eu n�o gosto – para poderem beber mais cerveja. N�o! N�o!

 

Voc� gosta da sua vida de camponesa, de preparar a verdura, preparar a comida...

Eu gosto. D�-me alegria regressar � inf�ncia, reviver aquele mundo de liberdade.

 

Em uma live recente, Concei��o Evaristo defendeu a import�ncia de reconhecer Carolina Maria de Jesus como escritora e que os textos dela n�o falavam apenas de car�ncia material, do que faltava, mas de quest�es filos�ficas...

Eu mesma acabei recusando os r�tulos que a sociedade, por vezes, coloca sobre as pessoas. Pergunto-me, v�rias vezes, o que � escrever. Alguns leitores meus diziam que eu escrevia mal. Mas o que � escrever? Que import�ncia tem a escrita quando escrevemos, o que � que escrevemos e para quem escrevemos; essas s�o algumas quest�es com que me deparo.

Carolina Maria de Jesus escreveu uma coisa t�o profunda que vinha da alma, portanto, ela com a sua capacidade de escrita transmitiu sonhos e pensamentos atrav�s das gera��es. Ela escreve de uma forma que me move e me emociona. Carolina Maria de Jesus � uma mulher sublime, muito acima de muitas daquelas pessoas, homens e mulheres, que se julgam escritores porque amontoaram palavras e fizeram um bom volume para n�o dizer nada.

 

Na estante

Obras de Paulina Chiziane

 

Capa do livro 'Niketche %u2013 Uma história de poligamia'
(foto: Reprodu��o)
"Niketche – Uma 

hist�ria de poligamia"

Companhia de Bolso

R$ 23,69

296 p�ginas

 

"O alegre canto da Perdiz"

Dublinense

336 p�ginas

R$ 69,90

 

"Balada de amor ao vento"

Editorial Caminho

176 p�ginas

Fora de cat�logo

 

Capa do livro 'O sétimo juramento'
(foto: Reprodu��o)
"O s�timo juramento"

Editorial Caminho

288 p�ginas

R$ 520

 

"Tenta!"

Nandyala

120 p�ginas

R$ 29,90

"As andorinhas"

Nandyala

96 p�ginas

R$ 36

Sobre o Pr�mio Cam�es

O Pr�mio Cam�es � a mais importante condecora��o liter�ria mundial de l�ngua portuguesa. Foi institu�do pelos governos de Portugal e do Brasil em 1988, com o objetivo de consagrar autores de l�ngua portuguesa que, pelo conjunto da obra, tenham engrandecido o patrim�nio liter�rio lus�fono. Contempla autores da Comunidade de L�ngua Portuguesa. 

 

Entre os brasileiros, receberam a l�urea Chico Buarque (2019), Raduan Nassar (2016), Alberto da Costa e Silva (2014), Dalton Trevisan (2012), Ferreira Gullar (2010),  Jo�o Ubaldo Ribeiro (2008), Lygia Fagundes Telles (2005), Rubem Fonseca (2003), Autran Dourado (2000), Antonio Candido de Melo e Sousa (1998), Jorge Amado (1994), Rachel de Queiroz (1993) e Jo�o Cabral de Melo Neto (1990). Paulina foi a primeira mulher africana a receber a premia��o. O conterr�neo Mia Couto foi homenageado em 2013. Em 1995, o agraciado foi o portugu�s Jos� Saramago. A escolha de Paulina ocorreu por unanimidade e destacou "a vasta produ��o e recep��o cr�tica, bem como o reconhecimento acad�mico e institucional da sua obra".  


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