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Estado de Minas LITERATURA

Sexo, morte e futebol no �ltimo livro de S�rgio Sant'Anna

Organizador de 'A dama de branco' destaca a diversidade de temas e estilos na despedida do escritor, que morreu de COVID em 2020


29/10/2021 04:00 - atualizado 29/10/2021 08:52

Em um pa�s cada vez mais deteriorado, o que resta � contemplar o c�u (“embora os trilh�es de astros estivessem ocultos pela n�voa”) e se dedicar � arte, � imagina��o, � mem�ria; tamb�m se atirar ao passado e escutar Jim Morrison cantar “The end, this is the end”, “mesmo quando ningu�m o estivesse escutando, eterno”. Imposs�vel dissociar o personagem de “Eterno”, um dos contos de “A dama de branco”, de seu autor, S�rgio Sant’Anna.

O escritor carioca, vitimado pela COVID em 2020, completaria 80 anos neste s�bado, 30/10. O livro p�stumo, organizado pelo escritor Gustavo Pacheco (“Alguns humanos”), inclui 17 contos: alguns haviam sido publicados em revistas e sites, outros permaneciam in�ditos.

Tamb�m foi inclu�da na edi��o uma novela inacabada. “Carta marcada” come�a  no final da d�cada de 1960, em Belo Horizonte (onde o escritor morou), e chega abruptamente ao Rio de Janeiro contempor�neo: “Os personagens s�o os mesmos, mas n�o h� qualquer sinal de que tenham envelhecido, nem indica��o alguma de passagem do tempo”, destaca Pacheco na apresenta��o, ao chamar a aten��o para o “cavalo de pau narrativo” na hist�ria pontuada por paix�es, fetiches, cita��es (Baudelaire, Ana�s Nin), quadros descritos como “obras de arte degenerada” e encerrada com um crime de “corpos inertes e nus, abra�ados”. 

Ainda em “A dama de branco”, h� cria��es a partir de lembran�as da inf�ncia (o encantador “Das mem�rias de uma trave de futebol em 1955”), do fazer liter�rio (“Um conto quase m�nimo”, “Anticonto”), de sonhos e de desejos, pontuados por certezas: “A vida, toda ela, � um devorar sem fim”. Quase todas as narrativas, como o escritor preferia chamar suas hist�rias curtas, s�o assombradas pela proximidade da morte, descrita como “a �ltima e aparentemente definitiva noite” em “O bordel” e encarada como “uma obsess�o” na hist�ria que d� nome ao livro. Em outra narrativa potente, “A filha de Dr�cula”, relato inicialmente impessoal e que vai sendo tomado por erotismo e horror, o autor recusa a finitude do corpo e garante: “Nosso encontro permanece vivo”. O mesmo se pode dizer em rela��o a Sant’Anna e seus leitores: a cada encontro com as palavras, ele permanece vivo. A seguir, uma entrevista por e-mail com Gustavo Pacheco. 

Gustavo Pacheco, organizador do livro 'A dama de branco'
Gustavo Pacheco, organizador do livro 'A dama de branco' (foto: Maria Mazzillo/Flip/divulga��o)

Entrevista
Gustavo Pacheco
Organizador de “A dama de branco”

'O conto que d� nome ao livro � uma esp�cie de despedida'

Como voc� conheceu S�rgio Sant’Anna? O que guarda de mais marcante nos encontros com ele?
Encontrei S�rgio Sant’Anna pela primeira vez no final dos anos 1980, eu tinha uns 15 ou 16 anos e ele veio ao meu col�gio conversar com alunos. Lembro-me de que fiquei impressionado como ele respondia com toda a aten��o �s perguntas idiotas que a gente fazia. Fui reencontr�-lo 30 anos depois, quando publiquei meu primeiro livro e enviei a ele um exemplar. Ele leu, gostou e, mesmo sem me conhecer, me mandou um e-mail muito afetuoso e generoso.

A partir da�, ficamos amigos, nos fal�vamos com alguma frequ�ncia e eu o visitava sempre que ia ao Rio. Nessas conversas, sempre me espantou duas coisas. Primeiro, que ele n�o falasse muito de literatura, eu tentava levar a conversa pra esse lado, mas ele acabava falando do Fluminense, da pris�o do Lula, do �ltimo filme do Godard. Apesar de passar muito tempo sozinho em casa e sair pouco, ele estava sempre ligado no que acontecia no mundo, tinha muitos interesses.

Segundo, me surpreendia que ele estivesse genuinamente interessado no que eu tinha a dizer, ele sempre perguntava minha opini�o a respeito do que ele escrevia e de outros assuntos. Ouvi a mesma coisa de outros escritores mais jovens que tinham contato com ele. O S�rgio nunca se colocou no papel de vaca sagrada que fica cagando regra, pelo contr�rio, estava sempre interessado em ouvir os outros, inclusive os mais jovens.

Por que voc� chama, na apresenta��o, S�rgio Sant’Anna de um escritor “obcecado por seu of�cio”?
Porque ele sempre levou a literatura muito, muito a s�rio, e investia muito tempo e energia lendo, escrevendo e pensando sobre literatura. Podia passar dias e dias reescrevendo um mesmo par�grafo, e o humor dele oscilava muito, conforme a satisfa��o ou a insatisfa��o que ele sentia com aquilo que escrevia. Diz o Andr� Sant’Anna, filho dele, que o ato de escrever sempre foi muito doloroso e angustiante para o S�rgio, pelo menos at� o fim da vida, quando ele come�ou a relaxar um pouco mais. 

O que une as narrativas publicadas depois de “Anjo noturno” e reunidas no livro?
Acho que, por um lado, h� alguns elementos que atravessam todas as narrativas, como por exemplo a ang�stia diante da morte. Ele estava sentindo a morte chegar e n�o escondia uma certa obsess�o com isso. Por outro lado, as narrativas tamb�m retomam temas que atravessam toda a obra do S�rgio, como o sexo, o futebol, a mem�ria, os artistas que ele admirava. Nesse sentido, � como se ele quisesse revisitar pela �ltima vez as obsess�es de uma vida inteira, e isso tamb�m d� unidade ao livro.

O que mais o impressionou nos textos in�ditos que encontrou no computador do escritor?
O mesmo que sempre me impressionou na obra do S�rgio: a diversidade. Havia um pouco de tudo ali, desde narrativas mais convencionais, como “A filha de Dr�cula”, at� textos mais metalingu�sticos e experimentais, como o “Anticonto”.

Como o “Anticonto” se insere nas narrativas de Sant’Anna sobre o fazer liter�rio?
O “Anticonto” tem parentesco com uma s�rie de outras narrativas, como “Conto (n�o conto)”, “Um conto abstrato” e “O conto fracassado”, que, em conjunto, formam praticamente um subg�nero que atravessa toda a obra do S�rgio. Ele disse uma vez, a respeito da pr�pria fic��o: “� como se o mundo, para mim, j� surgisse filtrado pela representa��o”. Nessas narrativas, isso � radicalizado, a representa��o salta para o primeiro plano e vira a pr�pria raz�o de ser do texto.

O que voc� destaca na novela inacabada “Carta marcada”? Como Belo Horizonte aparece nessa narrativa?
“Carta marcada” � uma novela que tem alguns elementos autobiogr�ficos evidentes, e um deles � justamente a Belo Horizonte que aparece nela, que � a cidade dos anos de forma��o do S�rgio, no final da d�cada de 1960 e come�o da d�cada de 1970. Uma cidade ao mesmo tempo muito conservadora e muito efervescente do ponto de vista cultural. Uma cidade em que o narrador s� podia ficar com a namorada na varanda da casa dela, enquanto era observado pela fam�lia dela, mas ao mesmo tempo virava noites discutindo pol�tica e literatura nos botequins. Mas a novela vai bem al�m desse cen�rio, ela mergulha fundo em v�rias obsess�es do S�rgio. Tem fantasias sexuais, tem poesia, tem viol�ncia, tem humor... tem um pouco de tudo isso ali. 

Capa do 'A dama de branco'
(foto: Reprodu��o)
“A dama de branco” � uma das mais fortes narrativas, a ponto de ser o t�tulo do livro. O que mais chama a sua aten��o nessa hist�ria?  
“A dama de branco” foi o �ltimo conto publicado pelo S�rgio, 10 dias antes de morrer. Sabendo disso, � dif�cil n�o ver uma esp�cie de premoni��o ao ler uma frase como “�s vezes penso que a dama de branco � a pr�pria morte.” O conto � uma esp�cie de despedida, e parece que ele sabia disso.

O que o Brasil perdeu com a morte de Sant’Anna? 
Perdeu um dos artistas mais l�cidos e �ntegros que o pa�s j� teve, no auge de sua produ��o. Ele publicou seis livros excelentes nos �ltimos 10 anos. Numa fase da vida em que outros autores se aposentam ou se repetem, ele estava escrevendo muito, em quantidade e qualidade. N�o sabemos quantos outros livros excelentes ele poderia ter escrito se a sua vida n�o tivesse sido interrompida pela pandemia que matou mais de 600 mil brasileiros.

Para quem n�o conhece a obra de Sant’Anna, quais narrativas ou livros seriam um ponto de partida? 
Com mais de 20 livros bem diferentes uns dos outros, � dif�cil sugerir um s�. Sugiro tr�s: “Anjo noturno”, “O voo da madrugada” e “O concerto de Jo�o Gilberto no Rio de Janeiro”.

“Por que escrevo?”, pergunta o autor no t�tulo de uma das narrativas. Voc� arriscaria uma resposta? Por que Sant’Anna escreveu?
Um dos melhores ensaios do S�rgio, que est� na antologia “O conto n�o existe" (que organizei com o Andr� Nigri), se chama “A arte de n�o escrever”. No ensaio, ele discorre sobre “essa arte t�o dura e demandante de rigor que � a de silenciar quando n�o se tem o que dizer”. Depois de listar muitas raz�es para n�o escrever, ele diz: “Por�m, se, apesar de tudo, a necessidade de expressar-se por escrito brota dentro de algu�m como uma toxina end�gena, � melhor expeli-la em palavras”. E eu acho que � por isso que ele escrevia: por pura e incontorn�vel necessidade.


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