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Estado de Minas LITERATURA

Livro de M�nica de Aquino une a antiguidade ao contempor�neo

'Linha, labirinto', da escritora mineira, tem refer�ncias a mitos gregos e �s artes visuais


29/10/2021 04:00 - atualizado 29/10/2021 08:20

A escritora belo-horizontina Mônica de Aquino, sentada, com um livro aberto
A belo-horizontina M�nica de Aquino estabelece, em 'Linha, labirinto', di�logo com os mitos de Pen�lope e Ariadne (foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)
M�nica de Aquino, que tecia Pen�lopes desde “Fundo falso” (Relic�rio Edi��es, 2018), finalista do pr�mio Jabuti, e labirintos desde “S�stole” (Bem-Te-Vi, 2005), seu livro de estreia, segue o fio de uma trama espessa em “Linha, labirinto” (Edi��es Macondo). Mais uma vez, a indicar a cont�nua e incans�vel tarefa provocada pelo par escritura-re- escritura, a poeta retoma o fio do texto do poema para percorrer o mito e tra�ar uma nova costura para o v�u, um contraponto para uma escrita que prop�e, tamb�m, diferentes perspectivas e a tessitura de outras mem�rias. 

 

Com poemas in�ditos e alguns retomados de outros livros, mas ainda assim desfeitos e refeitos sob o influxo de outras tramas, M�nica recorta, como uma das Moiras da mitologia grega arcaica, outros fios e vozes para compor a materialidade do livro, que se abre em dire��o a novos caminhos e narrativas a serem tecidas. Jussara Salazar, Prisca Agustoni, Lenora de Barros, Daniel Arelli, Ana Martins Marques, Guilherme Gontijo Flores, Edith Derdyk, Julia Panad�s, In�s Campos, Ana Elisa Ribeiro, Ismar Tirelli Neto, Patr�cia Lavelle, Lu Menezes e Andr� Vallias v�o figurar como novos pontos constelares para a dic��o de uma narrativa po�tica que se abre plural e dial�tica.

Para al�m das imagens dos poemas, de vozes que tramam sua urdidura no tempo contempor�neo, o livro conta com imagens, no miolo, de fotografias e interven��es de Edith Derdyk, e com uma obra-ep�grafe de Mira Schendel e outra de Louise Bourgeois, sem contar com a pr�pria capa, parte de uma instala��o da artista japonesa Chiharu Shiota. 

 

A primeira parte do livro come�a como um exerc�cio borgeano, uma vez que os poemas de M�nica de Aquino (nascida em Belo Horizonte, em 1979), reunidos sob o t�tulo duplamente anunciativo “Pen�lope: press�gio”, nos encaminham para um jogo de partida de textos que dialogam incessantemente com outros textos, seus espelhos e bi- blioteca infinita. Al�m de criar e fiar, o verbo que pode nomear bem este livro � revisitar, tendo em vista que o projeto de livro, ao mesmo tempo em que parte da afirma��o de algo que j� existe, uma leitura e releitura de um topoi da literatura tradicional, elabora tamb�m um movimento de nega- ��o dos cl�ssicos.

Por mais que haja a visita ao c�none, a uma tradi��o po�tica, h� tamb�m sua apropria��o e consequente ressignifica��o, a cria��o de algo novo e, aqui, muito potente. O di�logo infinito e constante com os mitos de Pen�lope, Ariadne e Filomela – para citar apenas alguns que trespassam os poemas – vai adquirindo uma dimens�o cada vez mais cr�tica, at� despontar no �ltimo poema do livro, “O mar carmim �s vezes como fogo”, em que a poeta assume uma voz mais experimental, parte de uma proposta de escrita n�o criativa, em conson�ncia � voz de Molly Bloom, personagem joyceana e duplo moderno e infiel de Pen�lope. A tradu��o do “yes yes” t�o conhecido no “Ulisses” de Joyce se desdobra em “sim” e “isso”, recuperando, por meio desse pequeno desvio, o vi�s sexual que a part�cula, repetida tantas vezes na parte final do livro, apresenta.

Al�m disso, as constru��es po�ticas de M�nica de Aquino desfazem n�o apenas os fios de tecidos que enganam os pretendentes de Pen�lope pelo seu inacabamento, mas tamb�m a carga arquet�pica que vai ser ressignificada. O primeiro poema, “Ulisses n�o existiu”, nos conta: “Saber�o, talvez, que esta hist�ria foi escrita/ por uma mulher”, um sujeito po�tico que, ao elaborar duplamente a trama da sua hist�ria, compra sua liberdade, percorre mapas por meio de sua inventividade e, no poema “Insone”, recria a si pr�prio, “recusa o passado seus retalhos/ prefere o que ainda n�o aconteceu// enquanto pensa: Ulis- ses, agora, sou eu”.

Fazer, desfazer e refazer

“Destruir, ela disse” n�o � apenas t�tulo de um poema, mas dita o tom do livro como um todo: o it�lico, que sugere a leitura do romance e do filme hom�nimo da escritora e cineasta francesa Marguerite Duras (“D�truire, dit-elle”, 1969), nos quais uma voz feminina � imperativa de certa destrui��o, nada mais � do que a ruptura de formas tradicionais, a sinaliza��o de sua vulnerabilidade e a tentativa de uma renova��o. Este exerc�cio tamb�m se aproxima do fazer e desfazer e refazer proposto por Louise Bourgeois na equa��o “I do, I undo, I rendo” (“eu fa�o, eu desfa�o, eu refa�o”, em tradu��o livre), em que o movimento de repara��o �, al�m de cont�nuo, proposital. Assim, � poss�vel perceber, neste poema-meton�mia de procedimentos que v�o se repetir, de diferentes maneiras e inaugurando ou repropondo mitologias de cria��o ao longo do livro, esta equa��o: 

 

Primeiro, desfiz a mortalha

como de h�bito.

 

Mas a noite ainda era vasta.

 

Inventei, ent�o, um press�gio

h� muito a destruir:

 

colcha, tapete, rede

 

este vestido de renda

 

a trama da cadeira

 

a cama

 

a mesa posta.

 

A agulha � lenta, lenta

 

a tesoura � lenta

 

o amor � lento

 

destruir me rouba a noite

e as estrelas.
  

Entre a destrui��o, do tecido, da tradi��o liter�ria, e a cria��o, de uma nova trama, de uma nova po�tica, de novos personagens, h� todo um labirinto a ser percorrido, como indica o �ltimo poema da primeira parte do livro: “Melhor uso para tanta linha/ seria conhecer o labirinto”. Curto e conciso, o poema serve tamb�m como um convite, um novelo ofertado, para a segunda parte: “Algaravias: outros fios, outras vozes”, em que um processo de alinhavar – para seguir pensando no campo sem�ntico da tecelagem – � bem-sucedido e coloca lado a lado grandes poetas que j� tratam da rela��o direta entre as artes t�xteis e a poesia ou que incorporam, em sua linguagem po�tica, met�foras reiteradas de uma l�ngua que evoluiu a partir n�o s� de seus mitos, mas de uma vanguarda dom�stica que traz para o cotidiano o vocabul�rio dos fios, das linhas e sua infinita cogna��o em torno da urdidura.

Serve de ep�grafe a segunda parte do livro um trecho de “A odisseia de Pen�lope”, da escritora canadense Margaret Atwood: “So I’ll spin a thread of my own” (“Ent�o eu vou tecer meu pr�prio fio”, em livre tradu��o). No romance em quest�o, essa � a fala de Pen�lope, j� morta, no Hades, finalmente tra�ando sua pr�pria narrativa, por meio da mem�ria, contando sua hist�ria pela primeira vez, enfim sob o seu ponto de vista, e n�o do outro. A reivindica��o de uma voz pr�pria pode ser lida ao longo de todo o livro; um exemplo � o poema de Prisca Agustoni, no qual as pen�lopes s�o confinadas em conventos, impedidas de falar sua l�ngua materna, em “posi��es no escuro”, sempre a costurar, maquinalmente, “No vaiv�m das agulhas/ os pedais Singer/ s�o novenas germinando [...] Somos jovens Pen�lopes/ com velhas heran�as”. No entanto, nessa repeti��o, atestada pela m�sica (ou baru- lho infernal) da m�quina de costura, as perso- nagens, jovens e redivivas Pen�lopes, negam, de maneira ir�nica, suas velhas heran�as ao n�o se calare � procura de uma voz que vem surgindo na garganta de toda uma nova gera��o de mu- lheres/Pen�lopes, seu legado.

Outra cantiga � convocada no poema de Jussara Salazar, sendo novamente a quest�o da costura, mais especificamente do fiar, e desfiar, um exerc�cio necess�rio � sobreviv�ncia, ao atravessamento dos dias, e at� mesmo das gera��es. “Fia esta cantiga/ desfia depois/ tecer e tran�ar/ Fia esta cantiga/ no tear. Em sil�ncio/ como as tuas tias [...] como tua m�e um dia/ sem alarde desatou// e teceu [...] Fia esta cantiga/ e se vires a vida/ fia bem depressa fia// Fia/ esta cantiga pra passar”. Fia, al�m de palavra derivada do procedimento t�xtil, � tamb�m t�tulo do livro de onde este poema vem, em que mulheres an�nimas do sert�o de Pernambuco, que se chamam “fia” no momento do trabalho de costura, desencadearam tamb�m um procedimento po�tico. Aqui h�, mais uma vez, o resgate de uma tradi��o, mas tamb�m sua apropria��o em termos particulares: a fia��o de uma cantiga que n�o ne- cessariamente foge do corte da vida provocado por �tropos, mas a ressignifica��o de uma terceira Moira que pode ser, tamb�m, o sert�o mesmo, numa cosmogonia pr�pria � comunidade rendeira do agreste do pa�s.

“Linha, labirinto”, que nos oferta uma linha desde a primeira palavra de seu t�tulo, ao contr�rio de nos dar um caminho de volta, nos convida a perdermo-nos pelo labirinto. O di�logo com as artes pl�sticas, as ep�grafes inusitadas de Mira Schendel, Orides Fontela e Louise Bourgeois, todas circulares, cada uma � sua maneira, repropondo a linha que circunda um abismo entre o tra�o e a letra, a dif�cil e necess�ria tessitura do nada, a circularidade de um rel�gio de horas do esquecimento, respectivamente, todos esses paratextos anunciam a ousadia do projeto gr�fico e criativo do livro, bem como sua circularidade, assumida por diferentes vozes em um mesmo fio, que � este livro – sem nem mencionar a obra da capa, instala��o de Chiharu Shiota fotografada por Zan Wimberley, que nos convida � contempla��o de uma teia vermelha e duas cadei- ras para conversas: � preciso tomar assento, se pre- parar para abrir o volume e se deixar enredar por ele. O vermelho, cor potente que nos circunda desde dentro, pelo sangue, tamb�m remete � cria��o como substantivo feminino, se espalhando desde a potencialidade de dar � luz at� o “mar carmim” do poema final, que � tamb�m o come�o para mais um in�cio: o “sim sim” de Joyce � retomado como uma nova oferta, mais do que uma abertura � alteridade, uma reabertura para novas escri- turas, e tamb�m leituras – n�o terminamos o livro, nos perdemos em suas tramas.

*Formada em Letras pela UFMG, com mestrado na �rea de literaturas modernas e contempor�neas, Marina Baltazar � professora, revisora e pesquisadora

Lan�amento virtual

“Linha, labirinto” foi lan�ado oficialmente em 30 de ou- tubro de 2020, pela Edi��es Macondo, casa editorial que vem tomando import�ncia crescente no cen�rio nacional por suas publica��es de poesia contempor�nea. O lan�amento virtual contou com a discuss�o de Fabr�cia Walace e Leonardo Antunes, que escreveram a orelha e o pref�cio, respectivamente, bem como com a bel�ssima leitura de poemas por v�rias poetas, al�m da pr�pria M�nica de Aquino, e um pocket show da Pecora Loca, grupo paranaense que recria, a partir de sonoridades contempor�neas, a dimens�o vocal da poesia antiga, de Safo aos trovadores medievais. Tudo isso pode ser acessado pela grava��o do evento: https://www.youtube.com/watch?v=EUHOBcQb-KA, que nos mostra que, passado todo esse tempo, ainda estamos longe de acabar as leituras deste livro-labirinto.


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