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Saramago: personagem assumiu controle de 'Ensaio sobre a cegueira'

Protagonista feminina passou a conduzir a angustiante hist�ria do romance e permitiu a Saramago continuar escrevendo seu livro mais popular


25/11/2022 04:00 - atualizado 25/11/2022 00:39

Jullianne Moore é a 'mulher do cego' na ótima adaptação de 'Ensaio sobre a cegueira' para o cinema
Jullianne Moore � a "mulher do cego" na �tima adapta��o de "Ensaio sobre a cegueira" para o cinema dirigida por Fernando Meirelles (foto: FOX FILME/DIVULGA��O)

 

A fluidez da narrativa de “Ensaio sobre a cegueira”, o livro mais popular, traduzido e vision�rio do escritor portugu�s Jos� Saramago, que demorou mais de tr�s anos para ser escrito e acaba de ganhar edi��o de luxo no Brasil, com capa dura, s� foi poss�vel porque a protagonista, a “mulher do m�dico”, tomou o controle das m�os do autor e passou a conduzir a angustiante hist�ria da popula��o de uma cidade imagin�ria que � tomada repentinamente por uma cegueira branca que leva todos a um mergulho nas trevas da estupidez, da gan�ncia e da barb�rie. 

 

 

 

A licen�a liter�ria de Saramago veio depois de muitas dificuldades. “Houve pausas que simplesmente sentia que o caminho que levava n�o era o indicado. Por fim, um personagem se imp�s com grande naturalidade: 'Tem de me levar tamb�m a mim, ceguei agora mesmo', disse a mulher do m�dico, subindo na ambul�ncia que levaria seu marido. Um personagem continua a ver por ter sido capaz de compaix�o. Nesse momento, o livro adquiriu forma e ritmo”, conta a mulher do Saramago, Pilar del Rio, que ouviu dele mesmo esse desfecho, no livro “A intui��o da ilha – Os dias de Saramago em Lanzarote”. A mulher do m�dico � a �nica que n�o fica cega, mas finge-se de cega para ser levada com o marido.

 

A g�nese do romance veio de maneira inusitada. “A ideia de escrever 'Ensaio sobre a cegueira' apresentou-se a Jos� Saramago num restaurante da Madragoa, em Lisboa, enquanto esperava um prato de bacalhau assado com batatas ao murro. 'E se todos fic�ssemos cegos?', perguntou-se o escritor. E em seguida respondeu a sim mesmo: 'Mas somos cegos, cegos que vendo n�o veem'. Nesse momento, em 6 de setembro de 1991, Jos� Saramago soube que teria que escrever 'Ensaio sobre a cegueira'. Os personagens cegariam talvez pelo colapso do sistema, talvez pela degrada��o moral de quem, podendo ver, optaria por tapar os olhos (…) Ser� uma epidemia diante do assombro geral. N�o h� medicina para combat�-la, os governos encontram-se perdidos. (…) Aparecer� um animal com mais humanidade que muitos serem humanos que se deixam levar pelo instinto. Os grupos que se re�nem podem parecer hordas”, conta tamb�m Pilar del Rio.

 

O escritor n�o nomeia nenhum personagem, n�o h� um nome pr�prio na obra. O pavor e a trag�dia que se seguem s�o t�o inc�modos que o pr�prio Saramago teve dificuldades de continuar. Pilar conta que o sofrimento de Saramago foi tanto que ele n�o conseguiu reler o epis�dio em que um grupo de cegos toma as r�deas do caos e obriga as mulheres igualmente cegas a serem estupradas por eles em troca de comida. Quando terminou o livro, ele anotou em seus “Cadernos de Lanzarote”: “Lutei, lutei muito, s� eu sei quanto, contra as d�vidas, as perplexidades, os equ�vocos que toda a hora se me iam atravessando na hist�ria e me paralisavam. Como se isso n�o fosse o bastante, desesperava-me o pr�prio horror do que ia narrando. Enfim, acabou, j� n�o terei de sofrer mais.”

 

Tr�s d�cadas depois de escrito, o romance de Saramago que foi adaptado para cinema (pelo brasileiro Fernando Meirelles), teatro, m�sica, exposi��o de pintura e at� bal�, voltou a ganhar grande evid�ncia durante a pandemia de COVID, principalmente, por causa do negacionismo. A ep�grafe da obra j� alerta: “Se podes olhar, v�. Se podes ver, repara”. Assim ele explicou, em 7 de outubro de 1996, em seus “Cadernos de Lanzarote”, a motiva��o que o levou a escrever a obra. “No meu romance 'Ensaio sobre a cegueira', tentei, recorrendo � alegoria, dizer ao leitor que a vida que vivemos n�o se rege pela racionalidade, que estamos usando a raz�o contra a raz�o, contra a pr�pria vida. Tentei dizer que a raz�o n�o deve separar-se nunca do respeito humano, que a solidariedade n�o deve ser a exce��o, mas a regra. Tentei dizer que a raz�o est� a comportar-se como uma raz�o cega que n�o sabe aonde vai nem quer sab�-lo. Tentei dizer que ainda nos falta muito caminho para tentar chegar a ser autenticamente humanos e que n�o seja boa a dire��o em que vamos.”

 

“Ensaio sobre a cegueira” � uma obra-prima perturbadora que leva a racionalidade ao limite do absurdo de ver sem enxergar. A nova edi��o cont�m textos adicionais do escritor e cr�tico liter�rio Juli�n Fuks (“O mundo est� todo aqui dentro”), da cr�tica liter�ria e professora da Faculdade de Letras de Lisboa Maria Alzira Seixo (“Cr�nica sobre um livro anunciado”), do escritor Marco Lucchesi (“Jos� Saramago passeia pelo mundo das trevas”) e da escritora e cr�tica liter�ria Leyla Perrone-Mois�s (“As artemages de Saramago”). E ainda o complemento “O autor e sua g�nese”, excertos dos tr�s primeiros volumes dos “Cadernos de Lanzarote”, desde o in�cio da escrita de “Ensaio sobre a cegueira” at� a conclus�o da obra.

 

TRECHO DE “ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA”

 

“Enquanto lentamente avan�ava pela estreita coxia, a mulher do m�dico observava os movimentos daquele que n�o tardaria a matar, como o gozo o fazia inclinar a cabe�a para tr�s, como j� parecia estar a oferecer-lhe o pesco�o. Devagar, a mulher do m�dico aproximou-se, rodeou a cama e foi colocar-se por tr�s dele. A cega continuava no seu trabalho. A m�o levantou lentamente a tesoura, as l�minas um pouco separadas para penetrarem como dois punhais. Neste momento, o �ltimo, o cego pareceu dar por sua presen�a, mas s� o orgasmo retirara-o do mundo das sensa��es, comuns, privara-o de reflexos. N�o chegaria a gozar, pensou a mulher do m�dico, e fez descer violentamente o bra�o. A tesoura enterrou-se com toda a for�a na garganta do cego. (…) A cega gritava, n�o percebia o que tinha acontecido, mas gritava, este sangue viera donde, provavelmente, sem saber como, havia feito o que chegara a pensar, arrancar-lhe o p�nis a dentada.”

 

 

“Ensaio sobre a cegueira”

 

  • De Jos� Saramago
  • Companhia das Letras
  • 432 p�ginas
  • R$ 99,90 (impresso)
  • R$ 39,90 (e-book)

 

 

OBRAS COMPLETAS 

 

ROMANCES 

 

  • “Terra do pecado” – 1947
  • “Claraboia” – 1953 (publicado postumamente em 2011)
  • “Manual de pintura e caligrafia” – 1977
  • “Levantado do ch�o” – 1980
  • “Memorial do convento” – 1982
  • “O ano da morte de Ricardo Reis” – 1984
  • “A jangada de pedra” – 1986
  • “Hist�ria do cerco de Lisboa” – 1989
  • “O evangelho segundo Jesus Cristo” – 1991
  • “Ensaio sobre a cegueira” – 1995
  • “Todos os nomes” – 1997
  • “A caverna” – 2000
  • “O homem duplicado” – 2002
  • “Ensaio sobre a lucidez” – 2004
  • “As intermit�ncias da morte” – 2005
  • “A viagem do elefante” – 2008
  • “Caim” – 2009
  • “Claraboia” – 2011
  • “Alabardas” (inacabado) – 2009 (publicado postumamente em 2014)
  •  CONTOS
  • “Objecto quase” - 1978
  • “Po�tica dos cinco Sentidos”  e  “O ouvido”, 1979

 

 

 

BIOGRAFIA

 

  • “As pequenas mem�rias” – 2004

 

 

CR�NICAS 

 

  • “Deste mundo e do outro”, 1971
  • “A bagagem do viajante”, 1973
  • “As opini�es que o DL teve”, 1974
  • “Os apontamentos”, 1976
  • “Folhas pol�ticas” - 1976-1998

 

 

 DI�RIOS

 

  • ”Cadernos de Lanzarote I” – 1994
  • “Cadernos de Lanzarote II” – 1995
  • “Cadernos de Lanzarote III” – 1996
  • “Cadernos de Lanzarote IV” – 1997
  • “O caderno: textos escritos para o blogue” – 2008-2009
  • “O caderno 2: textos escritos para o blogue” – 2009-2010
  • “�ltimo Caderno de Lanzarote – O di�rio do ano do Nobel” – 1998 (publicado postumamente em 2018)

 

 

VIAGEM

 

  • “Viagem a Portugal” – 1981

 

 

POESIA

 

  • “Os poemas poss�veis” – 1966
  • “Provavelmente alegria” – 1970
  • “O ano de 1993” – 1975

 

 

TEATRO

 

  • “A noite” – 1979
  • “Que farei com este livro?” – 1980
  • “A segunda vida de Francisco de Assis” – 1987
  • “In nomine Dei” – 1993
  • “Don Giovanni e o dissoluto absolvido” – 2005

 

 

OBRAS ESSENCIAIS

 

“Ensaio sobre a cegueira”

Uma misteriosa e repentina epidemia de cegueira branca leva a popula��o de uma cidade imagin�ria ao desespero e � barb�rie. A protagonista � a mulher do m�dico – tamb�m cego – que conduz um grupo de cegos num manic�mio se fingindo de cega para n�o ser separada do marido pelo governo segregador. Saramago leva o leitor a uma reflex�o sobre a condi��o humana, compaix�o e solidariedade num mundo ca�tico, onde a disputa por comida � o maior desafio.

 

 “O evangelho segundo Jesus Cristo”

“Homens, perdoai-lhe, porque ele n�o sabe o que fez”. O clamor b�blico invertido (“Pai, perdoa-lhes, porque n�o sabem o que fazem) de Jesus crucificado, com o qual Jos� Saramago cria sua fic��o ir�nica e par�dica do Novo Testamento e questiona dogmas b�blicos, rendeu grande pol�mica em Portugal. O livro levou o escritor de Lisboa ao autoex�lio em Lanzarote, nas espanholas Ilhas Can�rias, depois da censura imposta pelo governo de Cavaco Silva, que apontou ofensa aos cat�licos. Deus vingativo, anuncia��o feita pelo Diabo, a vida sexual de Maria e Jos�, Jesus medroso, amante de Madalena e resistente ao “Pai”... tudo isso deu muito o que falar.

 

 “Caim”

Depois de “O evangelho segundo Jesus Cristo”, Jos� Saramago retoma o tema b�blico, agora no Velho Testamento, para fazer sua leitura, com humor, da hist�ria de Caim, que matou Abel, seu irm�o, e se tornou o primeiro criminoso da humanidade. O autor portugu�s volta a criar pol�mica ao questionar dogmas e apresentar um confronto �tico e moral entre Caim e Deus.

 

 “A jangada de pedra”

Jos� Saramago leva um leitor a uma viagem fant�stica ao desgarrar a pen�nsula ib�rica da Europa e deix�-la � deriva no oceano Atl�ntico como “jangada de pedra”. Uma bela met�fora ou par�bola sobre o isolamento de um povo, uma viagem apocal�ptica e personagens atemporais igualmente inusitados.

 

 “O homem duplicado”

Inquietante romance fant�stico que narra a hist�ria do professor Tertuliano M�ximo Afonso, que encontra casualmente um homem com o seu rosto, seu corpo e sua voz, ou seja, � um homem duplicado. Como sempre, diante desse embate existencial, Jos� Saramago possibilita profundas reflex�es sobre a perda de identidade e a condi��o humana num mundo globalizado. 


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