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Estado de Minas PENSAR

Saramago: 'As injusti�as multiplicam-se e a ignor�ncia cresce'

Escritor fez dois discursos em Estocolmo, na Su�cia, em 1998, quando se tornou o primeiro autor em l�ngua portuguesa a receber o Nobel de Literatura


25/11/2022 04:00 - atualizado 25/11/2022 00:34

José Saramago, em discurso ao receber o Nobel de Literatura, em Estocolmo
"A mesma esquizofr�nica humanidade que � capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composi��o das suas rochas assiste indiferente � morte de milh�es de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte neste tempo do que ao nosso pr�prio semelhante", Jos� Saramago, em discurso ao receber o Nobel de Literatura, em Estocolmo (foto: FUNDA��O SARAMAGO)

 

“Com a mesma veem�ncia e a mesma for�a que reivindicamos nossos direitos, reivindiquemos tamb�m o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa come�ar a tornar-se um pouco melhor.” O apelo foi feito pelo escritor portugu�s Jos� Saramago (1922-2010), na noite de 10 de dezembro de 1998, ao participar do banquete oferecido pela monarquia sueca, tr�s dias depois de ser agraciado com o Nobel de Literatura pela Academia Sueca, em Estocolmo. Ao lembrar a assinatura da Declara��o Universal dos Direitos Humanos, exatamente 50 anos depois, o primeiro autor portugu�s agraciado com o maior pr�mio liter�rio do planeta fez um pronunciamento humanista, criticou e invocou governos, multinacionais e cidad�os do mundo para cumprirem sua responsabilidade social contra a fome e a mis�ria.

 
 

 

“Nesses 50 anos, n�o parece que os governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que, moralmente, quando n�o por for�a da lei, estavam obrigados. As injusti�as multiplicam-se no mundo, as desigualdades agravam-se, a ignor�ncia cresce, a mis�ria alastra”, provocou Saramago. Em outro trecho, ele faz uma inc�moda compara��o: “A mesma esquizofr�nica humanidade que � capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composi��o das suas rochas assiste indiferente � morte de milh�es de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte neste tempo do que ao nosso pr�prio semelhante”.

 

A �ntegra do discurso est� reproduzida no livro “A intui��o da ilha – Os dias de Jos� Saramago em Lanzarote”, que acaba de ser lan�ado pela mulher do escritor,  Pilar del Rio. No cap�tulo dedicado ao Nobel, ela conta que anos depois da entrega do pr�mio, em Estocolmo, a Universidade Nacional Aut�noma do M�xico (Unam) assumiu o desafio feito por Saramago e convocou um congresso internacional para criar a Declara��o Nacional de Deveres Humanos – reproduzida no final do seu livro. “Jos� Saramago j� n�o estava (morreu em 18 de junho de 2010), mas a funda��o que leva seu nome assumiu esse projeto com a seriedade e o rigor com que o escritor leu seu discurso na capital sueca. Em abril de 2018, o documento nascido das diferentes delibera��es tomadas no M�xico e subscrito por um conjunto representativo de personalidades foi apresentado na ONU”, relata Pilar.

 

O secret�rio-geral da ONU, Ant�nio Guterres, incentivou a iniciativa. “Necessitamos de uma cidadania ativa”, disse ele ao receber o documento. Desde ent�o, a Declara��o Universal dos Deveres Humanos vem sendo discutida. “� um instrumento que amplia os valores da civilidade e da igualdade, e tamb�m os deveres de respeito e cuidado para com as pessoas e a natureza, t�o necess�rios, t�o urgentes, t�o definitivamente humanos”, avalia Pilar.

 

M�LTIPLOS PERSONAGENS

 

Tr�s dias antes do banquete, Saramago havia proferido outro discurso, o da premia��o do Nobel na Academia Sueca. Diferentemente do segundo, foi um longo discurso, em 7 de dezembro de 1998, intitulado “De como o personagem foi mestre e o autor, seu aprendiz”. Ele come�ou assim: “O homem mais s�bio que conheci em toda a minha vida n�o sabia ler nem escrever. �s quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de Fran�a, levantava-se da enxerga e sa�a para o campo, levando ao pasto a meia d�zia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus av�s maternos, da pequena cria��o de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia, Azinhaga de seu nome, na prov�ncia do Ribatejo. Chamavam-se Jer�nimo Melrinho e Josefa Caixinha esses av�s, e eram analfabetos um e outro. No inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a �gua dos c�ntaros gelar dentro da casa, iam buscar �s pocilgas os b�coros mais d�beis e levavam-nos para a sua cama”.

 

A partir da lembran�a de seus av�s na aldeia onde nasceu o beb� Jos� Saramago, o escritor portugu�s, no longo discurso – que na tela do computador tem quase 400 linhas –, discorre sobre os in�meros e inusitados personagens dos seus muitos livros. Pilar del Rio conta: “Viriam a seguir os personagens das diferentes obras de Jos� Saramago, seres sem brilho social nem lugares em conselhos de administra��o, que procuram a mulher desconhecida, ou se levantam do ch�o, ou se empenham em organizar uma vida humana em plena �poca de epidemia de cegueira, ou navegam na dire��o de outros sendo jangadas que transportam terra e sonhos, esses seres de fic��o que povoam a obra saramaguiana foram quem manifestou que a dimens�o humana se potencia a partir da consci�ncia e que assumir a �tica da responsabilidade � um doce mandato”.

E depois do longo discurso sobre seus personagens, assim Saramago termina: “A voz que leu estas p�ginas quis ser o eco das vozes conjuntas das minhas personagens. N�o tenho, a bem dizer, mais voz que a voz que elas tiverem. Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim � tudo”.

 

OS DEVERES HUMANOS 

 

“Majestades, Alteza Real, senhoras e senhores. Cumpriram-se hoje exatamente cinquenta anos sobre a assinatura da Declara��o Universal de Direitos Humanos. N�o t�m faltado, felizmente, comemora��es � ef�meride. Sabendo-se, por�m, com que rapidez a aten��o se fatiga quando as circunst�ncias lhe imp�em que se aplique ao exame de quest�es s�rias, n�o � arriscado prever que o interesse p�blico por este comece a diminuir a partir de amanh�. Claro que nada tenho contra atos comemorativos, eu pr�prio contribu� para eles, modestamente com algumas palavras. E uma vez que a data o pede e a ocasi�o n�o o desaconselha, permita-se me que pronuncie aqui umas quantas palavras mais.

 

Como declara��o de princ�pios que �, a Declara��o Universal de Direitos Humanos n�o cria obriga��es legais aos Estados, salvo se respectivas Constitui��es estabelecem que os direitos fundamentais e as liberdades nelas reconhecidas ser�o interpretados de acordo com a Declara��o. Todos sabemos, por�m, que esse reconhecimento formal pode acabar por ser desvirtuado ou mesmo denegado na a��o pol�tica, na gest�o econ�mica e na realidade social. A Declara��o Universal � geralmente considerada pelos poderes econ�micos e pelos poderes pol�ticos, mesmo quando presumem de democr�ticos, como um documento cuja import�ncia n�o vai muito al�m do grau de boa consci�ncia que lhes proporcione.

 

Nestes cinquenta anos n�o parece que os governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que, moralmente, quando n�o por for�a da lei, estavam obrigados. As injusti�as multiplicam-se no mundo, as desigualdades agravam-se, a ignor�ncia cresce, a mis�ria alastra. A mesma esquizofr�nica humanidade que � capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composi��o das suas rochas assiste indiferente � morte de milh�es de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte neste tempo do que ao nosso pr�prio semelhante.

 

Algu�m n�o anda a cumprir o seu dever. N�o andam a cumpri-lo os governos, seja porque n�o sabem, seja porque n�o podem, seja porque n�o querem. Ou porque n�o lho permitem os que efetivamente governam, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente n�o democr�ticos, reduziu a uma casca sem conte�do o que ainda restava de ideal de democracia. Mas tamb�m n�o est�o a cumprir o seu dever os cidad�os que somos. Foi-nos proposta uma Declara��o Universal de Direitos Humanos, e com isso julgamos ter tudo, sem repararmos que nenhuns direitos poder�o subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspondem, o primeiro dos quais ser� exigir que esses direitos sejam n�o s� reconhecidos, mas tamb�m respeitados e satisfeitos. N�o � de esperar que os governos fa�am nos pr�ximos cinquenta anos o que n�o fizeram nestes que comemoramos. Tomemos, ent�o, n�s, cidad�os comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veem�ncia e a mesma for�a que reivindicamos nossos direitos, reivindiquemos tamb�m o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa come�ar a tornar-se um pouco melhor.

 

N�o est�o esquecidos os agradecimentos. Em Frankfurt, onde estava no dia 8 de outubro, as primeiras palavras que disse foram para agradecer � Academia Sueca a atribui��o do Pr�mio Nobel de Literatura. Agradeci igualmente aos meus editores, aos meus tradutores e aos meus leitores. A todos volto a agradecer. E agora quero tamb�m agradecer aos escritores portugueses e de l�ngua portuguesa, aos do passado e de agora: � por eles que as nossas literaturas existem, eu sou apenas mais um que a eles se veio juntar. Disse naquele dia que n�o nasci para isto, mas isso foi-me dado.

Bem hajam, portanto.”

 

 

* �ntegra do discurso de Jos� Saramago no banquete do Nobel, em Estocolmo, em de 10 de dezembro de 1998 


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