
Jos� Saramago faz parte da vida da minha fam�lia h� 40 anos. Em 1982, em viagem a Portugal, minha m�e recebeu uma encomenda: comprar para seu irm�o, meu tio, um livro de que ele tinha ouvido falar. Era “Levantado do ch�o” (1980), adquirido em uma pequena livraria de Lisboa. Consagrado no al�m-mar, Saramago seria publicado no Brasil alguns anos mais tarde – e as edi��es brasileiras logo chegaram � minha casa. Comecei por “O evangelho segundo Jesus Cristo” (1991), o pol�mico romance que o levou a deixar Portugal em resposta � censura sofrida. Al�m da narrativa, me encantou a escrita “dif�cil”, com per�odos longu�ssimos para ler uma, duas, tr�s vezes, com suas m�ltiplas v�rgulas e escassos pontos finais.
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Em 1997, era trainee, com seis meses de Estado de Minas, quando foi anunciada sua vinda para lan�ar “Todos os nomes”. Seria uma palestra em S�o Paulo e outra em Belo Horizonte, nas chamadas Confer�ncias do Centen�rio, encontros que celebravam a efem�ride da cidade. Depois de pedidos insistentes, consegui a entrevista. Seria em S�o Paulo, na casa de Luiz Schwarcz, editor e fundador da Companhia das Letras, no domingo, 16 de novembro de 1997, quando Saramago completava 75 anos. Convidei uma amiga, estudante de belas artes e fot�grafa diletante, j� que ela tamb�m estaria na cidade.
Embaixo do bra�o, al�m do gravador de fita cassete, ia o exemplar de “Evangelho”, que eu tinha dado de presente para minha m�e em seu anivers�rio de 1992 – para ganhar, dele, a devida dedicat�ria.
Na resid�ncia, a nossa dupla, mal entrada na casa dos 20, encontrou dois rep�rteres experientes � espera de Saramago, que havia chegado naquela manh� a S�o Paulo. A primeira entrevista seria a minha.
Ansiosas e maldormidas depois de um festival de rock, o encontramos na biblioteca. Logo descobri que a d�zia de perguntas que eu tinha n�o seriam todas respondidas – Saramago falava como escrevia. Per�odos longos, reflexivos – meia hora n�o era suficiente. Terminada a conversa, mais tranquilas (e muito encantadas) fomos �s fotos. Por sugest�o de Lilia Schwarcz, em frente a um quadro de Amilcar de Castro. Luiz e ela haviam acabado de voltar de Lanzarote – Lilia nos contou hist�rias da ilha enquanto mostrava o �lbum de fotografias.
Vinte e cinco anos mais tarde, n�o d� para negar, h� quest�es da entrevista que ficaram datadas. Por exemplo, sobre o Pr�mio Nobel, que ele perdeu naquele ano para Dario Fo. “Eu tive o pr�mio, mas tu � que deverias ter tido”, Saramago me contou, reconstituindo o telefonema que recebeu do italiano no dia seguinte ao an�ncio da premia��o. A corre��o da Academia Sueca, vale lembrar, foi feita no ano seguinte.
Mas h� tamb�m temas que permanecem no centro do debate, passado um quarto de s�culo, como o papel da Igreja e da esquerda, temas caros a Saramago e a sua obra. E j� naquela �poca ele alertou para o capitalismo e a desconstru��o da cidadania: “J� n�o se fala em cidad�os, se fala em consumidores. O mundo � um gigantesco hipermercado. O que realmente conta � o que cada um pode comprar. O que verdadeiramente tem import�ncia hoje � o nosso n�mero no cart�o de cr�dito”. A seguir, a entrevista concedida por Saramago h� 25 anos.
O senhor escreveu “Todos os nomes” a partir de uma pesquisa que fez com um irm�o que morreu ainda crian�a. Como foi o processo?
� uma hist�ria complicada que tem rela��o com o “Livro das tenta��es”, projeto que anuncio h� sete anos. � uma esp�cie de autobiografia. Quando digo uma esp�cie, digo assim porque � uma autobiografia que vai at� os 14 anos. Eu sabia que tinha tido um irm�o mais velho que eu dois anos, que tinha falecido de difteria num hospital de Lisboa. Quando comecei a trabalhar mais no livro, deparei-me com a exist�ncia de um irm�o que j� estava � minha espera h� dois anos. Eu tinha de falar dele e como n�o tinha todos os dados, entrei em contato com a Conservat�ria do Registro Civil onde ele estava registrado. Pedi uma c�pia da certid�o de nascimento e quando eu recebo, verifico que n�o havia indica��o de que ele tinha falecido. Diante daquele documento, o meu irm�o continuava vivo. Foi necess�rio investigar os arquivos de seis cemit�rios de Lisboa. E � essa a hist�ria, que n�o tem nada rigoriosamente a ver com o que tem ver a ser o livro. Embora n�o tenha nada a ver, sem essa hist�ria o livro n�o teria existido.
Al�m do personagem se chamar Jos�.
Mas n�o tem nada a ver comigo, n�o � uma esp�cie de alterego meu e tem talvez uma explica��o. A personagem � insignificante, � umfuncion�rio modesto. Um homem de 50 anos, solit�rio, solteiro, com uma vida quase pobre. Ent�o, � aquilo que se pode chamar com alguma propriedade de uma personagem insignificante. Quis dar-lhe um nome insignficante para estar � altura e corresponder � personagem. Acontece que o nome mais insignificante que encontrou foi o meu pr�prio nome.
Por que o senhor tem adiado o “Livro das tenta��es”?
Por duas ou tr�s vezes me dispus a come�ar esse livro. Mas acontece que de cada vez se mete adiante uma outra ideia para fazer um romance e o livro vai ficando � espera de que chegue uma oportunidade. Quando acabei “Todos os nomes”, disse agora vai ser. Mas surgiu uma outra ideia que de certo modo eu diria, embora o “Ensaio sobre a cegueira” n�o tenha nada a ver com “Todos os nomes”, e o livro que tenho na cabe�a tamb�m n�o tem nada a ver, mas de uma certa forma os tr�s livros constituiriam algo com um car�ter unit�rio. Pode ser considerado algo como que pertencendo a um mesmo esp�rito, a um mesmo ponto de vista, a uma obsess�o do mundo neste momento da minha pr�pria vida. Portanto, � natural que o “Livro das tenta��es” seja mais uma vez adiado.
Como foi a sa�da de Lisboa para Lanzarote?
A hist�ria da mudan�a � complicada, mas ao mesmo tempo simples. Ela resultou de uma situa��o bastante dif�cil. Em 1992, “O evangelho segundo Jesus Cristo” tinha sido escolhido por organiza��es culturais para representar Portugal no pr�mio liter�rio criado pela Uni�o Europeia. O governo, num gesto infeliz, resolve n�o autorizar alegando que o livro ofendia as cren�as cat�licas do povo portugu�s. Foi um ato de censura clar�ssimo. N�o � preciso dizer que me desgostou muit�ssimo, me indignou. Minha mulher tem uma irm� que vive em Lanzarote. Ela veio com a ideia de que pod�amos comprar uma casa l� para descansar e sair um pouco daquela situa��o. Eu disse: “� um disparate, ora, n�o vou viver em Lanzarote, n�o tem sentido nenhum”. Isso eu disse num dia, mas no dia seguinte j� estava dizendo que a ideia talvez n�o fosse m�. O que � uma rea��o l�gica masculina. A mulher come�a por sugerir, o homem diz imediatamente que n�o e 24 horas depois j� fala que a ideia n�o � t�o m� (risos).
Qual a sua rela��o com a Igreja Cat�lica depois do lan�amento de “O evangelho segundo Jesus Cristo”?
N�o tenho qualquer tipo de rela��o com a igreja. N�o sou crente, nunca fui, n�o tive qualquer educa��o religiosa e por causa dela escrevi o livro. N�o tem nada a ver com isto. Sempre tive uma rela��o muito pac�fica com a ideia de uma vida futura, que n�o acredito, evidentemente. Simplesmente n�o creio na exist�ncia de Deus, � mais um mito entre tantos outros. Portanto, se � certo que n�o creio em Deus, tamb�m � certo que, no plano da mentalidade, sou um crist�o. Quando certos cat�licos mais intransigentes me dizem “voc� � ateu, n�o tinha o direito de escrever sobre Jesus e muito menos da maneira como o fez”, eu respondo que tenho o direito de escrever sobre aquilo que fez de mim a pessoa que sou. Mas por que escrever uma hist�ria sobre Jesus se elas j� s�o tantas? Eu acrescento aquilo que acabei dizer a uma coisa a mais. N�o teria escrito “O evangelho segundo Jesus Cristo” se n�o tivesse acontecido o que n�s chamamos de matan�a das crian�as em Bel�m. Essa ideia � tremendamente chocante. Jos� recebe em sonhos uma mensagem de Deus, trazida por um anjo, que ele diz que ele leve o menino e a m�e para fora de Bel�m, porque o rei Herodes vai mandar matar as crian�as. E ele faz isso, vai com o burrinho por a� afora. Este tema, ao mesmo tempo l�rico, po�tico, dram�tico e que deu lugar a tanta obra, houve a� qualquer coisa que n�o consigo entender. Como � que Jos� n�o fez o que, suponho eu, qualquer um de n�s faria se estivesse nas boas gra�as de Deus ao ponto de receber uma mensagem direta, que seria bater � porta dos vizinhos e dizer que ponham os vossos meninos a salvo porque Herodes vai mandar matar as crian�as? Jos� regressa do Egito e nunca vai perguntar o que aconteceu em Bel�m, n�o h� mais o leve sinal de remorso. Se n�o fosse este epis�dio, eu n�o teria escrito o livro. Ele � uma reflex�o sobre a culpa e a responsabilidade.
Na sua avalia��o, que papel desempenham as ideias e as a��es da esquerda atualmente?
O papel importante, diria mesmo indispens�vel, seria o de n�o permitir que o mundo se apresente � consci�ncia das pessoas, como se j� n�o houvesse outra solu��o, outros caminhos, outras alternativas. Pode-se dizer que o capitalismo tamb�m tem suas crises e que agora estamos vivendo uma. O pensamento de esquerda, marxista ou n�o marxista, est� neste momento em sua travessia no deserto. Mas n�o ser� eterno. As for�as de esquerda ir�o reorganizar-se. Somos uma esp�cie de sobreviventes que tem a grande responsabilidade de manter viva uma ideia, essa esperan�a, at� que as pr�prias condi��es sociais determinem que outros caminhos a esquerda pode tomar. Essa explora��o desenfreada, cada vez os ricos mais ricos, cada vez os pobres mais pobres, cada vez maior a dist�ncia entre os que t�m e os que n�o t�m e talvez, pior ainda, cada vez maior a dist�ncia entre os que sabem e os que n�o sabem, isso tem que ter um fim, ou ent�o a vida n�o tem qualquer sentido. N�s temos que viver hoje debaixo de uma m�quina que pretende transformar algo que voc� custa a conquistar, que � o sentido da cidadania. J� n�o se fala em cidad�os, fala-se em consumidores, clientes. O mundo � um gigantesco hipermercado. O que realmente conta � o que cada um pode comprar. O que verdadeiramente tem import�ncia hoje � o nosso n�mero no cart�o de cr�dito. O nome, voltando ao tema do meu romance, n�o significa muito.
O que o senhor tem a dizer a respeito do Pr�mio Nobel?
Minha posi��o em rela��o ao pr�mio Nobel � clara desde sempre. N�o considero que pelo prest�gio de um autor ou de uma literatura seja indispens�vel o pr�mio. Considero, e isso � o �bvio, que a Academia Sueca atribui os pr�mios a quem quer. O dinheiro � deles, n�o � nosso. N�s n�o podemos levar a vida nessa esp�cie de psicodrama em que se transforma um Pr�mio Nobel. Ele s� se transforma em um psicodrama porque � de quase US$ 1 milh�o. Se fossem US$ 10 mil, ningu�m precisaria. Neste ano, � sabido que at� os �ltimos dias os dois nomes de que se falava eram o de Dario Fo e o meu. A Academia inclinou-se por Dario Fo. Est� no seu direito e eu n�o discuto isso. No dia seguinte ao pr�mio, o Dario Fo me telefonou logo cedo para dizer: “Eu tive o pr�mio, mas tu � que o deverias ter tido”. E mais: na Feira de Frankfurt, dois dias depois, ele me procurou para me abra�ar. Foi um dos momentos mais bonitos que vivi nas rela��es com colegas de of�cio, que normalmente n�o s�o boas.