
“O Brasil � um caso extremo de crescimento com alto custo social e pilhagem de um pa�s por uma pequena minoria protegida por um establishment militar muito caro. A mania de grandeza produziu sua mais fina caricatura. Fora isso, � um pa�s maravilhoso e bonito, voc� sabe disso.” A carta � de Celso Furtado (1920-2004), escrita em 24 de agosto de 1972 ao seu colega Nicholas Kaldor (1908-1986), expoente da Universidade de Cambridge, figura central na constru��o de uma cr�tica aos modelos de crescimento neocl�ssicos, fundador dos modelos estruturalistas p�s-keynesianos.
Ao mesmo tempo em que atravessava os “anos de chumbo”, o Brasil vivia o seu “milagre econ�mico”: assistia �s elevadas taxas de crescimento, acompanhadas do alto endividamento, da concentra��o de renda e da acentua��o das desigualdades sociais.
A Darcy Ribeiro, em 3 de abril de 1970, Celso Furtado tra�ava em correspond�ncia o seu diagn�stico pol�tico e social: o governo autorit�rio-militar ascendera ao poder n�o para introduzir mudan�as estruturais, mas antes, para “defender o status quo falsamente amea�ado”.
Depois de assinalar que o processo evolu�ra por um trajeto errado e de consequ�ncias imprevis�veis, Celso Furtado conclu�ra: “Em s�ntese, n�o vejo nenhum caminho curto que permita ao nosso pa�s ganhar tempo na hist�ria. Somos um pa�s grande que se define um perfil numa �poca dif�cil. Nas condi��es atuais de explos�o tecnol�gica, pode um pa�s em forma��o preservar o senso de identidade? Podemos iludir-nos com um milagre voluntarista. Mas n�o � isso um simples escapismo?”
Depois de assinalar que o processo evolu�ra por um trajeto errado e de consequ�ncias imprevis�veis, Celso Furtado conclu�ra: “Em s�ntese, n�o vejo nenhum caminho curto que permita ao nosso pa�s ganhar tempo na hist�ria. Somos um pa�s grande que se define um perfil numa �poca dif�cil. Nas condi��es atuais de explos�o tecnol�gica, pode um pa�s em forma��o preservar o senso de identidade? Podemos iludir-nos com um milagre voluntarista. Mas n�o � isso um simples escapismo?”
Do ex�lio, com os direitos pol�ticos cassados j� na primeira lista anunciada pelo Ato Institucional nº- 1, de 9 de abril de 1964, ministrando aulas na Universidade de Sorbonne e em intensa atividade intelectual, Celso Furtado, o �nico brasileiro indicado ao Pr�mio Nobel de Economia (2013), que dedicou a vida a entender o Brasil, a Am�rica Latina e a mec�nica do subdesenvolvimento, analisava e prospectava cen�rio em ass�dua correspond�ncia com um amplo espectro de interlocutores.
Ex�mio datil�grafo, soltava sob a teclas ideias e di�logos com intelectuais, pesquisadores, economistas, soci�logos, professores, jornalistas, militantes, pol�ticos e formuladores de pol�ticas. Esse � um tesouro epistolar particularmente volumoso entre 1964 e 1985, inserido em mais de 15 mil itens, que narram a trajet�ria de Celso Furtado entre 1949 e 2004. Uma sele��o de 300 dessas cartas aparece, sob a organiza��o da jornalista Rosa Freire D’Aguiar, no rec�m-lan�ado livro “Correspond�ncia intelectual” (Companhia das Letras).
Ex�mio datil�grafo, soltava sob a teclas ideias e di�logos com intelectuais, pesquisadores, economistas, soci�logos, professores, jornalistas, militantes, pol�ticos e formuladores de pol�ticas. Esse � um tesouro epistolar particularmente volumoso entre 1964 e 1985, inserido em mais de 15 mil itens, que narram a trajet�ria de Celso Furtado entre 1949 e 2004. Uma sele��o de 300 dessas cartas aparece, sob a organiza��o da jornalista Rosa Freire D’Aguiar, no rec�m-lan�ado livro “Correspond�ncia intelectual” (Companhia das Letras).
Rosa, segunda esposa de Celso Furtado, era correspondente em Paris da revista Isto� quando o conheceu em 1979, durante uma feijoada na casa do jornalista e fundador do PDT Jos� Maria Rab�lo, momento em que o Brasil discutia a anistia ampla e geral. A aventura que levou Rosa a mergulhar nesse “mar de cartas”, dando corpo a “Correspond�ncia intelectual”, se iniciou em 2019. Na ocasi�o, foi lan�ada a obra “Di�rios intermitentes” (Companhia das Letras), que re�ne anota��es deixadas por Celso Furtado ao longo de seis dec�nios e meio de sua vida, entre 1937 e 2002. “Quando estava preparando os di�rios, ca� nas cartas. Na verdade, nenhum dos dois livros saiu em 2020, ano do centen�rio. O di�rio foi publicado em novembro de 2019 e a obra com as correspond�ncias est� saindo agora, depois do centen�rio”, conta ela.
A lista com quem Celso Furtado correspondeu ao longo de sua vida, trocando impress�es sobre a conjuntura, partilhando afinidades e apontando discord�ncias te�ricas sobre o desenvolvimento do Brasil e da Am�rica Latina � ampla e ecl�tica. Passa por Alain Touraine, Albert O. Hirschman, Antonio Callado, Antonio Candido, Bertrand Russell, Caio Prado Jr., Carlos Lacerda, Darcy Ribeiro, Ernesto Sabato, Eugenio Gudin, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Francisco de Oliveira, Francisco Weffort, H�lio Jaguaribe e Luciano Martins. E segue com Lina Bo Bardi, Luiz In�cio Lula da Silva, Maria da Concei��o Tavares, Nicholas Kaldor, Otto Maria Carpeaux, Pl�nio de Arruda Sampaio, Ra�l Prebisch e Roberto Campos, entre outros.
Em seu conjunto, essa troca de correspond�ncia aponta para as ideias, muitas em seu nascedouro, elaboradas em 30 volumes de grandes obras de Celso Furtado – entre elas “Forma��o econ�mica do Brasil” e “Forma��o econ�mica da Am�rica Latina” –, que marcaram a hist�ria do pensamento econ�mico brasileiro e latino-americano na segunda metade do s�culo 20.
Em seu conjunto, essa troca de correspond�ncia aponta para as ideias, muitas em seu nascedouro, elaboradas em 30 volumes de grandes obras de Celso Furtado – entre elas “Forma��o econ�mica do Brasil” e “Forma��o econ�mica da Am�rica Latina” –, que marcaram a hist�ria do pensamento econ�mico brasileiro e latino-americano na segunda metade do s�culo 20.
''N�o vejo nenhum caminho curto que permita ao nosso pa�s ganhar tempo na hist�ria''
Celso Furtado (1920-2004)
FRAN�A E CHILE
Compreendendo a economia com uma vis�o interdisciplinar e humana, Celso Furtado sedimentou as bases de novas concep��es sobre desenvolvimento econ�mico e subdesenvolvimento latino-americanos. Formado em direito no Rio de Janeiro, doutorou-se em economia na Fran�a e, em 1949, mudou-se para Santiago, no Chile, para integrar a rec�m-criada Comiss�o Econ�mica para a Am�rica Latina (Cepal), �rg�o da ONU voltado para o desenvolvimento regional.
A Cepal era o centro de debates sobre os aspectos te�ricos e hist�ricos do desenvolvimento da �poca. Assim como a sua obra, na correspond�ncia de sua vida, Celso Furtado aborda o subdesenvolvimento sob a perspectiva estrutural. Para ele, romp�-lo n�o seria um problema apenas de planejamento econ�mico, mas fundamentalmente pol�tico, de vontade pol�tica para empreender transforma��es estruturais na realidade.
A Cepal era o centro de debates sobre os aspectos te�ricos e hist�ricos do desenvolvimento da �poca. Assim como a sua obra, na correspond�ncia de sua vida, Celso Furtado aborda o subdesenvolvimento sob a perspectiva estrutural. Para ele, romp�-lo n�o seria um problema apenas de planejamento econ�mico, mas fundamentalmente pol�tico, de vontade pol�tica para empreender transforma��es estruturais na realidade.
Para al�m de sua teoria, Celso Furtado buscou tamb�m transformar a realidade: foi respons�vel pela cria��o da Superintend�ncia do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) no governo Juscelino Kubitschek e como ministro do Planejamento no governo Jo�o Goulart formulou o Plano Trienal de Desenvolvimento Econ�mico e Social, lan�ado em 1962, com as chamadas reformas de base, agr�ria, tribut�ria e social, que, segundo ele, seriam uma condi��o fundamental para superar o subdesenvolvimento. Mesmo n�o sendo uma transforma��o do sistema produtivo, o plano foi condenado pelo empresariado brasileiro, pelo empresariado internacional, que, articulados com militares e o governo norte-americano, articularam o golpe militar de 64.
Celso Furtado tinha 43 anos quando partiu para o ex�lio, em meados de maio de 1964. Do Chile, onde ficou alguns meses, foi para os Estados Unidos lecionar como professor visitante no Economic Growth Center, da Universidade de Yale. Por interfer�ncia do regime militar, contudo, a universidade n�o renovou o seu contrato e, em 1965, Celso Furtado se instalou em Paris. Voltava � Sorbonne, onde se doutorara, agora, lecionando economia do desenvolvimento e economia latino-americana.
No ex�lio se escrevia muito. N�o obstante o mundo despontasse do p�s-guerra, em nova ordem internacional, com o triunfal ressurgimento da democracia no Ocidente sobre os escombros do nazismo e do fascismo, a Am�rica Latina passava por um surto autorit�rio, com irrup��o em domin� de muitas ditaduras, resultado da Guerra Fria e da disposi��o dos Estados Unidos de cercar a sua �rea de influ�ncia no continente.
No ex�lio se escrevia muito. N�o obstante o mundo despontasse do p�s-guerra, em nova ordem internacional, com o triunfal ressurgimento da democracia no Ocidente sobre os escombros do nazismo e do fascismo, a Am�rica Latina passava por um surto autorit�rio, com irrup��o em domin� de muitas ditaduras, resultado da Guerra Fria e da disposi��o dos Estados Unidos de cercar a sua �rea de influ�ncia no continente.
O tempo das ditaduras, sob a repress�o pol�tica das oposi��es, tamb�m foi um tempo de intensifica��o da concentra��o de renda. “Estou convencido de que, independentemente do processo inflacion�rio, existem for�as de car�ter estrutural que levam � concentra��o da renda na economia brasileira (ou em qualquer economia com as caracter�sticas sociais e institucionais da nossa) e que essa concentra��o de renda � o principal obst�culo para a consecu��o de uma taxa elevada e est�vel de desenvolvimento”, escreveu ele em 1º de setembro de 1968 ao economista chileno Anibal Pinto (1919-1996), conhecido por seu trabalho na teoria da depend�ncia e na economia estruturalista.
Ora cruzando o Atl�ntico, ora o Pac�fico, foram cartas que nem sempre chegavam pelo correio, dada a permanente vigil�ncia do regime militar sobre os intelectuais, conforme se depreende de correspond�ncia trocada com o soci�logo Luciano Martins (1934-2014), autor de “Estado capitalista e burocracia no Brasil p�s-64” e “A gera��o AI-5 & maio de 1968”.
Em 22 de maio de 1965, Luciano Martins lhe escreveu narrando os primeiros meses do golpe: “(...) As exig�ncias de radicaliza��o repressiva s�o cada vez mais constantes. E - o que � pior – se v�o institucionalizando aos poucos: atualmente em vias de ir ao Congresso a legisla��o das inelegibilidades, do arrocho salarial, a lei de seguran�a, a lei de imprensa, a anula��o do foro especial, a retirada da compet�ncia da Justi�a civil dos crimes contra a seguran�a etc. A ditadura total se vai implantando aos poucos, em suma. (...) Bem, meu caro Celso, vou ficar por aqui para aproveitar o portador que segue daqui a horas para Nova York e de l� poder� enviar com seguran�a essa carta para voc�. � que institu�ram agora uma censura postal altamente irritante, n�o pelas implica��es policiais que possam advir, mas simplesmente porque a gente escreve e a carta n�o chega. O curioso � que parece que a coisa � s� para as cartas que saem, e n�o para as que entram. Enfim, o c�rebro militar tem um funcionamento de fato muito peculiar. O abra�o do Luciano.”
Em 22 de maio de 1965, Luciano Martins lhe escreveu narrando os primeiros meses do golpe: “(...) As exig�ncias de radicaliza��o repressiva s�o cada vez mais constantes. E - o que � pior – se v�o institucionalizando aos poucos: atualmente em vias de ir ao Congresso a legisla��o das inelegibilidades, do arrocho salarial, a lei de seguran�a, a lei de imprensa, a anula��o do foro especial, a retirada da compet�ncia da Justi�a civil dos crimes contra a seguran�a etc. A ditadura total se vai implantando aos poucos, em suma. (...) Bem, meu caro Celso, vou ficar por aqui para aproveitar o portador que segue daqui a horas para Nova York e de l� poder� enviar com seguran�a essa carta para voc�. � que institu�ram agora uma censura postal altamente irritante, n�o pelas implica��es policiais que possam advir, mas simplesmente porque a gente escreve e a carta n�o chega. O curioso � que parece que a coisa � s� para as cartas que saem, e n�o para as que entram. Enfim, o c�rebro militar tem um funcionamento de fato muito peculiar. O abra�o do Luciano.”
Tormento pelo destino do Brasil, afli��o por um per�odo cr�tico de sucessivos golpes militares que se abateram sobre o continente s�o sentimentos que transparecem na correspond�ncia de Celso Furtado e in�meros intelectuais e pesquisadores brasileiros e chilenos banidos ou autoexilados. No contexto do brutal golpe militar que destituiu o presidente chileno Salvador Allende, Gonzalo Martner, que fora seu ministro de Planejamento, envia a Celso Furtado carta em 8 de outubro de 1973, j� refugiado na embaixada da Venezuela, em Santiago: “Escrevo-lhe estas linhas de meu asilo na embaixada da Venezuela. Outros amigos est�o asilados, como Pedro Vuskovic na do M�xico, enquanto outros est�o presos (Carlos Matus e outros), e uns poucos economistas foram fuzilados. Este foi o golpe mais sangrento dos �ltimos anos e estimamos que h� n�o menos de 20 mil mortos, enquanto se fuzilam de 15 a 20 pessoas por dia, segundo os jornais”. Tamb�m Jos� Serra, do Chile, escreve a Celso Furtado antes de ser obrigado a se refugiar na embaixada italiana. Entre os interlocutores brasileiros, a correspond�ncia com o soci�logo e ex-presidente da Rep�blica Fernando Henrique Cardoso est� entre as mais volumosas (leia entrevista).
S�o muitas as experi�ncias e emo��es reveladas no “olho do furac�o”, no momento de grandes acontecimentos hist�ricos. M�rcio Moreira Alves, deputado federal cassado ap�s pronunciar em setembro de 1968 derradeiro discurso cr�tico ao regime militar, que antecedeu a edi��o do Ato Institucional nº 5, escreveu a Celso Furtado em 25 de novembro de 1975, de Lisboa. Na correspond�ncia, ele descreve a tentativa de golpe por parte de um grupo de militares de esquerda portuguesa, que disputava com as for�as moderadas a dire��o do Conselho da Revolu��o, que derrubou, em 1974, a ditadura salazarista em Portugal.
Celso Furtado lhe responde de Paris, em 26 de dezembro de 1975: “Uma revolu��o social n�o � uma cruzada. Se nos colocamos no plano irracional, a direita ter� sempre mais chance de dizer a �ltima palavra (...) O que foi realizado em Portugal � extraordin�rio. Poucas revolu��es ter�o feito tanto em t�o pouco tempo e deixando t�o poucas feridas. Creio que voc� atribui qualidades m�gicas � mudan�a do modo de produ��o. O importante � destruir os grupos que concentram o poder econ�mico e por esse meio controlam o Estado. Mais importante ainda � n�o permitir que eles se reconstituam, o que requer agora avan�ar r�pido na organiza��o de outras for�as”.
Celso Furtado lhe responde de Paris, em 26 de dezembro de 1975: “Uma revolu��o social n�o � uma cruzada. Se nos colocamos no plano irracional, a direita ter� sempre mais chance de dizer a �ltima palavra (...) O que foi realizado em Portugal � extraordin�rio. Poucas revolu��es ter�o feito tanto em t�o pouco tempo e deixando t�o poucas feridas. Creio que voc� atribui qualidades m�gicas � mudan�a do modo de produ��o. O importante � destruir os grupos que concentram o poder econ�mico e por esse meio controlam o Estado. Mais importante ainda � n�o permitir que eles se reconstituam, o que requer agora avan�ar r�pido na organiza��o de outras for�as”.
Em 1981, Celso Furtado se filiou ao Partido do Movimento Democr�tico Brasileiro (PMDB). Quatro anos depois, integraria a Comiss�o do Plano de A��o do governo Tancredo Neves. Foi embaixador do Brasil junto � Comunidade Econ�mica Europeia, mudando-se para Bruxelas antes de, entre 1986 a 1988, ser nomeado ministro da Cultura do governo Sarney, per�odo em que criou a primeira legisla��o de incentivos fiscais � cultura. Celso Furtado foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1997, e o seu pensamento permanece relevante na academia, na pol�tica e no debate p�blico. Ap�s a sua morte, em 2004, foi inaugurado o Centro Internacional Celso Furtado de Pol�ticas para o Desenvolvimento, respons�vel pela cria��o da Biblioteca Celso Furtado, que abriga 7.542 livros que pertenceram ao autor, e pela publica��o semestral de “Cadernos do Desenvolvimento”.

Correspond�ncia Intelectual (1949-2004)
• Celso Furtado
• Organizadora: Rosa Freire D’Aguiar
• Companhia das Letras
• 428 p�ginas.
• R$ 99,90 (E-book: R$ 39,90)

ENTREVISTA/Fernando Henrique Cardoso/Soci�logo, ex-presidente da Rep�blica
“O Celso sempre teve a capacidade
de entender do mercado e do povo”
O soci�logo Fernando Henrique Cardoso e o economista Celso Furtado se conheceram em 1960, quando este, superintendente da Sudene, recebeu-o na regi�o para uma pesquisa de campo em um engenho no Recife. Tornaram-se amigos, interlocutores e durante o per�odo autorit�rio-militar tiveram diversos encontros no Chile, em Dacar e em Paris, para onde Fernando Henrique tamb�m se mudou para lecionar na Faculdade de Nanterre. Em entrevista por telefone ao Estado de Minas, o ex-presidente da Rep�blica conta o que considera mais marcante na trajet�ria de Furtado.
O que Celso Furtado representou para a teoria econ�mica e a forma de pensar o Brasil?
Sou de uma gera��o para a qual o Celso era o mestre da economia sobre o desenvolvimento. Ele trabalhou na Cepal, trabalhou com o Ra�l Prebisch e escreveu livro importante sobre o desenvolvimento do Brasil. O Celso foi personalidade marcante de nossa gera��o, pois conhecia a teoria econ�mica e era tamb�m um cientista social: juntava a vis�o de economista e a vis�o pol�tica e social, representa uma liga��o, um cientista social.
Hoje temos bons economistas, mas s�o economistas, entendem do mercado, n�o entendem do povo. O Celso sempre teve a capacidade de entender do mercado e do povo. Conheci o Celso quando ele era diretor da Sudene. Ele contribuiu muito, atrav�s da Sudene, para melhorar as condi��es de vida no Nordeste. Celso, al�m de tudo, tinha uma grande caracter�stica pessoal: embora soubesse o valor que tinha, era modesto, era uma pessoa agrad�vel de conversa e de conhecimento. O Celso � um dos grandes brasileiros, sempre foi uma pessoa de pensamento social aberto, progressista
Hoje temos bons economistas, mas s�o economistas, entendem do mercado, n�o entendem do povo. O Celso sempre teve a capacidade de entender do mercado e do povo. Conheci o Celso quando ele era diretor da Sudene. Ele contribuiu muito, atrav�s da Sudene, para melhorar as condi��es de vida no Nordeste. Celso, al�m de tudo, tinha uma grande caracter�stica pessoal: embora soubesse o valor que tinha, era modesto, era uma pessoa agrad�vel de conversa e de conhecimento. O Celso � um dos grandes brasileiros, sempre foi uma pessoa de pensamento social aberto, progressista
Sob a perspectiva da teoria da depend�ncia que o senhor elaborou, como situa o Brasil hoje no contexto internacional?
A chamada teoria da depend�ncia na verdade � uma teoria sobre o desenvolvimento. O Brasil cresceu, mas na verdade n�o houve o conjunto de transforma��es necess�rias para o dar o salto do tipo que deu os Estados Unidos. Pode dar, tem condi��es econ�micas e naturais. � �poca do Celso, num pa�s como o Brasil, o investimento p�blico era essencial, porque sen�o n�o havia crescimento. Agora � menos essencial, mas continua sendo importante: � preciso ter investimento p�blico e investimento privado. E tem de ter esse olhar para a distribui��o de renda, no que for poss�vel.
O atual presidente da Rep�blica costuma pressionar as institui��es democr�ticas. Esse tipo de constrangimento atrapalha o desenvolvimento econ�mico?
Acho que sim. O grande desenvolvimento que se deu no mundo ocidental foi quando houve tamb�m a liberdade concreta. Nos Estados Unidos, nunca se imp�s nada, a pr�pria sociedade foi evoluindo e se transformando, a mesma coisa vale para a maioria dos pa�ses ocidentais. A n�o ser os pa�ses que tiveram uma revolu��o social, tiveram um momento em que n�o tiveram liberdade, ou ent�o aqueles que foram tomados por ditaduras tipo a nazista. Mas n�o � o caso atual: no mundo em geral, o sentimento de que as pessoas t�m import�ncia conta, o que n�o quer dizer que o coletivo n�o pese, mas dentro do coletivo � preciso entender a fun��o da pessoa e da liberdade. Infelizmente, o nosso governo, na ret�rica, fala de uma maneira, o modo de falar � mais para provocar constrangimento.

ENTREVISTA/Rosa Freire D´Aguiar /Organizadora
“Ele se considerava mais um
te�rico do subdesenvolvimento’’
Como situa a import�ncia intelectual da obra de Celso Furtado no pensamento brasileiro?
Celso mant�m uma atualidade em rela��o a v�rios eixos da produ��o dele. Produziu muito, escreveu uns 30 livros, muitos s�o mais datados. Mas ele tem uma perman�ncia nas obras dele. Primeiro, o esfor�o que ele fez de entender o pa�s historicamente, economicamente, que � o grande livro dele, “A forma��o econ�mica do Brasil”, e entender tamb�m, depois quando foi ministro da Cultura, a forma��o cultural do Brasil. Quando voc� tem autores que tentaram entender o pa�s, refletir sobre as nossas origens, nossa forma��o, s�o cl�ssicos.
Esses nomes, n�o s� Celso, evidentemente, mas Caio Prado, S�rgio Buarque, v�rios outros, s�o cl�ssicos, voc� tem de se referir a eles e l�-los. No caso de Celso, tem algo mais, a meu ver, porque ele foi o grande te�rico do desenvolvimento e do subdesenvolvimento. At� preferia dizer que ele se considerava um te�rico mais do subdesenvolvimento do que do desenvolvimento. Infelizmente, � um problema que ainda n�o est� resolvido no pa�s, que continua a ter algumas ca racter�sticas do pa�s subdesenvolvido. Ent�o acho que ele mant�m uma atua- lidade, que faz com que deva ser lido por toda pessoa que se interesse pelo pensamento social brasileiro e por outras quest�es, pelo lado da cultura, ci�ncias humanas, sociais em geral.
Celso tinha essa cabe�a muito interdisciplinar. Navegou pelas fronteiras das v�rias disciplinas com muita compet�ncia. A obra dele ent�o tem muito abrang�ncia, que a torna muito atual. Sempre teve uma vis�o global dos problemas, uma caracter�stica dele como pensador. O pensamento dele � focado na economia, mas muito interdisciplinar, a vertente hist�rica para entender a economia brasileira, o aspecto cultural, ambiental, ele navegou por essas �guas, com muita compet�ncia e atualidade. � um homem marcante do pensamento social brasileiro.
Esses nomes, n�o s� Celso, evidentemente, mas Caio Prado, S�rgio Buarque, v�rios outros, s�o cl�ssicos, voc� tem de se referir a eles e l�-los. No caso de Celso, tem algo mais, a meu ver, porque ele foi o grande te�rico do desenvolvimento e do subdesenvolvimento. At� preferia dizer que ele se considerava um te�rico mais do subdesenvolvimento do que do desenvolvimento. Infelizmente, � um problema que ainda n�o est� resolvido no pa�s, que continua a ter algumas ca racter�sticas do pa�s subdesenvolvido. Ent�o acho que ele mant�m uma atua- lidade, que faz com que deva ser lido por toda pessoa que se interesse pelo pensamento social brasileiro e por outras quest�es, pelo lado da cultura, ci�ncias humanas, sociais em geral.
Celso tinha essa cabe�a muito interdisciplinar. Navegou pelas fronteiras das v�rias disciplinas com muita compet�ncia. A obra dele ent�o tem muito abrang�ncia, que a torna muito atual. Sempre teve uma vis�o global dos problemas, uma caracter�stica dele como pensador. O pensamento dele � focado na economia, mas muito interdisciplinar, a vertente hist�rica para entender a economia brasileira, o aspecto cultural, ambiental, ele navegou por essas �guas, com muita compet�ncia e atualidade. � um homem marcante do pensamento social brasileiro.
A obra organiza a correspond�ncia de v�rios momentos da vida de Celso Furtado, entre 1949, ap�s a defesa de doutorado na Sorbonne, at� 2004, ano de sua morte. Qual foi o per�odo em que Celso Furtado mais se correspondeu?
Celso ficou exilado por 21 anos e foi quando ele mais se correspondeu. A grande produ��o de cartas dele foi nesses anos em que estava fora do Brasil. Comecei a ler sistematicamente, esta- vam bem organizadas por ano, e fui ficando muito bem impressionada com a riqueza do material. Falei com a Companhia das Letras, fechamos o projeto e eu mergulhei nesse mar de cartas. At� que resolvi fazer uma esp�cie de contagem, e cheguei a essas 15 mil cartas, baseadas nas cartas do ex�lio. Ele recebia cerca de 400 cartas por ano. A imensa maioria s�o cartas que n�o me interessaram, como convites; � �poca, por qualquer coisa se mandava carta.
Qual foi o crit�rio empregado para a sele��o das cartas que integram a obra?
As cartas em que h� di�logo intelectual foram as que me interessaram. � muito dif�cil fazer uma sele��o, pois tinha provavelmente mais de um bom ter�o de volume de cartas que gostaria de ter publicado. Ent�o, a minha ideia foi pegar cartas em que realmente houve um vaiv�m. Ele escreve para Fernando Henrique Cardoso, que escreve para ele. Ele fala com Darcy Ribeiro, que responde. Ele fala com Francisco Iglesias, essas s�o fant�sticas.
A ideia foi essa. � um livro que considerei um trabalho bastante �nico, porque a correspond�ncias de modo geral no Brasil e na Fran�a s�o entre duas pessoas. Neste livro, eu ponho para conversar muita gente. H� um di�logo entre eles, intelectuais, pol�ticos, observadores, alguns foram atores da hist�ria brasileira, da sua gera��o, debatendo. Celso era muito bom datil�grafo e ele escrevia a m�quina. Cansei de v�-lo escrevendo cartas. �s vezes, comentava: “O Oct�vio Ianni me escreveu, estou respondendo”. Ent�o mais ou menos eu sabia que tipo de di�- logo ele tinha com os amigos intelectuais. Mas foi uma surpresa a quantidade de temas.
Tem umas cartas explicando o golpe de 64, depois o de 68, depois o do Chile. Tem cartas trocadas com Luciano Martins que s�o um ensaio sociol�gico. Porque quando Celso sai do Brasil, v�rios amigos deles que continuaram l� come�am a explicar como estava se desenrolando o golpe militar. E � muito boa a an�lise que os amigos deles fazem e fazem-no num n�vel muito franco, de muita sinceridade, escrevendo para um amigo. Isso tudo foi uma surpresa, pois eu n�o conhecia esses detalhes das cartas mais antigas.
A ideia foi essa. � um livro que considerei um trabalho bastante �nico, porque a correspond�ncias de modo geral no Brasil e na Fran�a s�o entre duas pessoas. Neste livro, eu ponho para conversar muita gente. H� um di�logo entre eles, intelectuais, pol�ticos, observadores, alguns foram atores da hist�ria brasileira, da sua gera��o, debatendo. Celso era muito bom datil�grafo e ele escrevia a m�quina. Cansei de v�-lo escrevendo cartas. �s vezes, comentava: “O Oct�vio Ianni me escreveu, estou respondendo”. Ent�o mais ou menos eu sabia que tipo de di�- logo ele tinha com os amigos intelectuais. Mas foi uma surpresa a quantidade de temas.
Tem umas cartas explicando o golpe de 64, depois o de 68, depois o do Chile. Tem cartas trocadas com Luciano Martins que s�o um ensaio sociol�gico. Porque quando Celso sai do Brasil, v�rios amigos deles que continuaram l� come�am a explicar como estava se desenrolando o golpe militar. E � muito boa a an�lise que os amigos deles fazem e fazem-no num n�vel muito franco, de muita sinceridade, escrevendo para um amigo. Isso tudo foi uma surpresa, pois eu n�o conhecia esses detalhes das cartas mais antigas.
O que Celso Furtado diria, em sua opini�o, do Brasil de hoje?
Acho que ele tentaria passar para as novas gera��es, pois sempre teve um pouco isso, de fazer o diagn�stico da situa��o, depois fazia propostas. Acho que faria diagn�stico e teria as propostas em tom de relativo otimismo, porque n�o d� para desacreditar no pa�s, a luta tem de continuar, talvez de outras formas. Acho que ele tentaria passar mensagem de certo otimismo, porque sen�o a derrota � a derrota final. Outra coisa que ele chamaria a aten��o, � para a import�ncia que nesta pandemia ganha o Estado promotor de certas coisas.
Voc� v� que na Europa hoje, tanto na Fran�a quanto na Alemanha, que n�o s�o go- vernos de esquerda, veja que a presen�a do Estado para enfrentar essa crise sa- nit�ria que estamos vivendo � fundamental. O modelo neoliberal que tenta acabar e liquidar o Estado, est� sendo ele pr�prio enterrado. Conhecendo o que Celso j� escreveu, acho que teria essa vis�o. N�o de passar um otimismo ing�nuo, mas de confiar no tamanho e na capacidade, nas pessoas do pa�s. E ressaltando com certeza a necessidade de se rever o papel do Estado, como indutor, como protetor da popula��o do pa�s.
O curioso � que em pa�ses de centro, centro-direita, se d�o conta diante da crise sanit�ria, que � o Estado que segura no momento da crise. N�o � o Estado planejando necessariamente, mas dando a possibilidade �s pessoas de passarem por um mau momento. Vejo na Fran�a como se segura a popula��o com aux�lios para quem est� desempregado, para os restaurantes fechados, aqui est� tudo fechado.
Isso tudo o Estado tem de segurar por tr�s, sen�o desmonta a sociedade. Acho que essa f� cega no mercado vai sair abalada desta pandemia. Quem diria um presidente norte-americano elogiando sindicatos, em detrimento de Wall Street. Isso � �bvio, no Brasil n�o.
Voc� v� que na Europa hoje, tanto na Fran�a quanto na Alemanha, que n�o s�o go- vernos de esquerda, veja que a presen�a do Estado para enfrentar essa crise sa- nit�ria que estamos vivendo � fundamental. O modelo neoliberal que tenta acabar e liquidar o Estado, est� sendo ele pr�prio enterrado. Conhecendo o que Celso j� escreveu, acho que teria essa vis�o. N�o de passar um otimismo ing�nuo, mas de confiar no tamanho e na capacidade, nas pessoas do pa�s. E ressaltando com certeza a necessidade de se rever o papel do Estado, como indutor, como protetor da popula��o do pa�s.
O curioso � que em pa�ses de centro, centro-direita, se d�o conta diante da crise sanit�ria, que � o Estado que segura no momento da crise. N�o � o Estado planejando necessariamente, mas dando a possibilidade �s pessoas de passarem por um mau momento. Vejo na Fran�a como se segura a popula��o com aux�lios para quem est� desempregado, para os restaurantes fechados, aqui est� tudo fechado.
Isso tudo o Estado tem de segurar por tr�s, sen�o desmonta a sociedade. Acho que essa f� cega no mercado vai sair abalada desta pandemia. Quem diria um presidente norte-americano elogiando sindicatos, em detrimento de Wall Street. Isso � �bvio, no Brasil n�o.