
N�o que tenha sido uma d�cada f�cil. Como a produ��o de livros no Brasil � historicamente dependente do governo e suas pol�ticas de incentivo, a literatura n�o escapou das turbul�ncias pol�ticas dos �ltimos 10 anos, que incluem – entre outros impactos – a extin��o do Minist�rio da Cultura. Analisando pelo vi�s do neg�cio do livro, a d�cada tamb�m foi complicada, com queda no n�mero de t�tulos publicados ao longo do per�odo.
Mesmo assim, a produ��o floresceu. A n�o fic��o ganhou proje��o in�dita, mas a fic��o tamb�m marcou espa�o. A poesia, impulsionada por nomes como a mineira Ana Martins Marques, emergiu com for�a. Revistas liter�rias (ou sobre o livro) surgiram tanto em �mbito local, com publica��es como a “Gratuita” e a “Olympio”, quanto nacional, como a edi��o brasileira da “Granta” e a “QuatroCincoUm”. E autores negros, impulsionados por um movimento social que vive seu pr�prio momento de expans�o e celebra��o, s�o, enfim, cada vez mais reconhecidos.
Isso ficou evidente na semana passada, quando o Pensar publicou uma mat�ria especial em que 20 cr�ticos, escritores e gestores culturais apontaram as suas 10 leituras mais marcantes da d�cada. O resultado foi uma sele��o extremamente plural, que prova que a diversidade est� em alta. N�o por acaso, entre os cinco mais lembrados est�o “Torto arado”, de Itamar Vieira Junior, que fala sobre duas irm�s negras em situa��o an�loga � escravid�o; “Olhos d’�gua”, da mineira Concei��o Evaristo, com 15 contos sobre preconceitos e viol�ncias sofridos por negros; e “Marrom e amarelo”, de Paulo Scott, tamb�m sobre dois irm�os, um negro e um de pele clara.
Al�m da sele��o de livros da semana passada, que mostra um retrato da produ��o da �ltima d�cada, o Pensar elencou os 10 fatos liter�rios e editoriais mais relevantes dos �ltimos 10 anos, para ajudar a entender o per�odo. A lista abaixo mostra que, mesmo n�o tendo sido f�cil, a d�cada foi extremamente rica e plural – pelo menos na literatura. Mas a pandemia, que inviabilizou eventos essenciais para a circula��o dos livros, como as feiras liter�rias e as sess�es de aut�grafos, certamente provocar� um impacto profundo n�o apenas na distribui��o, mas no pr�prio impulso da cria��o dos ficcionistas de um dos pa�ses mais devastados pelo v�rus. � o que vamos conferir ao longo dos pr�ximos anos.
1) Feiras, editoras, autores: a for�a do circuito independente
Declarar-se independente � um grito de autonomia e liberdade criativa aliado a um sentimento de oposi��o. No campo editorial, oposi��o �s limitadas oportunidades de publica��o e consagra��o ou � l�gica capitalista de grandes editoras. � um posicionamento que engloba pessoas e grupos de origens, interesses e objetivos absolutamente dife- rentes. Esse grupo, no entanto, se une e ganha for�a na busca pelo acesso ao leitor: a distribui��o. As feiras independentes e as feiras do livro, que se multiplicaram em Belo Horizonte e em todo o estado, s�o organizadas por gestores culturais, sem v�nculo direto com os governos. Em BH, iniciativas como a Fa�sca e a Primavera Liter�ria viraram pontos de encontro e trocas entre autores e editores que criam suas pr�prias vias de entrada para o campo e rearranjam o fazer editorial. Por outro lado, a manuten��o de projetos como o “Sempre um Papo” (mesmo durante a pandemia) garantiu a visibilidade para a propaga��o das opini�es de escritores e intelectuais.
2) Autopublica��o e financiamento coletivo
Essas s�o duas pr�ticas que parecem novidade, frutos da era digital, mas s�o centen�rias. O que mudou � a facilidade de acesso a elas. Na �ltima d�cada, imprimir com qualidade ficou mais f�cil e barato e, com ferramentas mais acess�veis (como software de edi��o e design, dicion�rios on-line etc.), o pr�prio fazer editorial se popularizou. O resultado � o momento aquecido da autopublica��o no Brasil, que tem como maior exemplo Mailson Furtado, ganhador do Jabuti de Livro do Ano em 2018 com “� cidade”. O mesmo acontece com o financiamento coletivo. Plataformas digitais como o Catarse facilitaram a organiza��o de grandes grupos financiadores, dando origem a grandes projetos, como o primoroso “2001: Uma odisseia no espa�o”, da Aleph. Em edi��o de luxo, foi vendido apenas para 1.465 apoiadores. O resultado � que uma c�pia pode valer at� R$ 1.100 em sebos.
3) Visibilidade de autores negros
Best-seller nos anos 1960 com "Quarto de despejo: Di�rio de uma favelada”, Carolina Maria de Jesus (1914-1977) passou a �ltima d�cada sendo redescoberta. N�o foi por acaso. A soma das pol�ticas de cotas de inclus�o no ensino superior e da Lei 11.645/2008, que tornou obrigat�rio o ensino da hist�ria e da cultura afro-brasileira e ind�gena em todo o sistema educacional do pa�s, fez com que a arte de autores negros ganhasse mais for�a e um just�ssimo reconhecimento. Al�m do resgate de nomes hist�ricos, esse movimento ajudou autores que j� estavam estabelecidos, como a mineira Concei��o Evaristo, que teve seu nome ventilado para uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. O impulso tamb�m foi sentido pela nova gera��o de nomes, como o baiano Itamar Vieira Junior, que viu seu “Torto arado” – sobre duas irm�s negras em situa��o an�loga � escravid�o – se consagrar como um raro best-seller da fic��o contempor�nea nacional, com mais de 100 mil c�pias vendidas.
4) Boom de revistas liter�rias
A tradi��o brasileira de fazer revistas liter�rias tem ra�zes profundas, cheias de hist�rias de publica��es que n�o costumam ter vida longa, mas cuja exist�ncia deixa marcas duradouras. Entre a efemeridade do jornal e a perenidade do livro, elas s�o (ou poderiam ser) territ�rio de experimenta��es, de consagra��o de novos autores e de cria��o de outras l�gicas para o fazer editorial. Em Belo Horizonte, � poss�vel observar um boom de novos t�tulos na �ltima d�cada, impulsionado por um circuito liter�rio efervescente. Entre os lan�amentos, se destacam a “Gratuita” (lan�ada em 2012), da editora Ch�o da Feira; a “�” (2018), ligada ao curso Estrat�gias Narrativas; e a “Olympio” (2018), com a reuni�o de grandes nomes do mundo liter�rio mineiro.
5) Redescoberta do livro como objeto
A forma do livro � instantaneamente reconhec�vel. Ela est� em pinturas antigas, em fotografias e filmes – e est� quase sempre presente no fundo de reuni�es on-line. Mesmo que n�o seja lido, o livro traz consigo uma s�rie de significados e valores. Mas isso n�o � o mesmo que dizer que todo livro tem sua forma interpretada igualmente. Tamanho, capa, uso de cores, tipo de impress�o, material de impress�o, entre outros, mudam como interpretamos uma obra. Artistas, autores e editoras traba- lham o livro como objeto h� d�cadas, mas o mercado editorial como um todo parece ter tido um despertar para a possibilidade com o sucesso estrondoso das sofisticadas (e car�ssimas) edi��es da Cosac Naify. A Cosac encerrou as atividades em 2015, mas o esmero e a inova��o seguem como marcas re- gistradas de outras editoras, como as paulistas Carambaia e Ubu, al�m das mineiras Relic�rio (com as capas marcantes criadas pela designer Ana C. Bahia) e Impress�es de Minas, com suas edi��es artesanais.
6) Clubes do livro
Entre as d�cadas de 1970 e 1980, o C�rculo do Livro fez sucesso entre os leitores brasileiros. O servi�o de venda de livros chegou a ter 800 mil s�cios, que recebiam em casa edi��es caprichadas, em capa dura. Ainda que sem essa propor��o, servi�os parecidos voltaram a ganhar f�lego nessa d�cada. Um dos principais � o Tag, que envia mensalmente, al�m de um livro surpresa em edi��o exclusiva, brindes relacionados � obra. Lan�ada em 2014, a ideia j� conquistou 60 mil assinantes – longe dos 800 mil do C�rculo do Livro, mas muito expressivo para a realidade atual. Outros atendem a nichos, como o Leiturinha ou o A Taba, ambos voltados para o p�blico infantil. O movimento n�o passou despercebido pelas editoras, que encontraram no modelo um canal direto com seus leitores. Intr�nseca e Ubu, focada em n�o fic��o, tamb�m lan�aram seus clubes nos �ltimos anos.
7) colapso de grandes redes de livrarias
Duas das principais redes de livrarias do pa�s, Saraiva e Cultura, entraram em colapso em 2018. Naquele ano, as empresas entraram com pedidos de recupera��o judicial, requerendo a revis�o de d�vidas na casa das centenas de milh�es de reais. Na linha de frente das cobran�as, as editoras sentiram o baque. A imensa maioria ainda tem a receber valores de livros que foram vendidos nas lojas, mas n�o foram repassados a elas. Culpa do sistema de consigna��o, em que a editora s� recebe da livraria se o livro for vendido na loja. A not�cia � ruim, mas n�o � de todo tr�gica. A redu��o do modelo megastore acabou por valorizar as livrarias de rua, que costumam ter uma sele��o cuidadosa e atendimento personalizado.
8) Livros nas redes: o boca a boca, agora, � via redes sociais, como o instagram
O n�mero impressiona: mais de 800 mil pessoas assinam o canal no YouTube de Bel Rodrigues, uma das booktubers mais reconhecidas do pa�s. No Instagram, s�o robustos 214 mil seguidores, que acompanham as opini�es e dicas de leitura da mo�a de 27 anos. Assim como ela, diversos outros canais e influenciadores se dedicam a resenhar e recomendar livros. O impacto de uma indica��o � �bvio: livros recomendados por esses canais costumam esgotar nas livrarias e at� nas editoras. � pelas redes desses influenciadores que os leitores passaram a trocar impress�es sobre o que est�o lendo, o que transformou o velho boca a boca em atividade digital: a capa de “Torto arado” foi uma das imagens mais compartilhadas no Instagram nos �ltimos meses.
9) A for�a da poesia
Apesar de uma tradi��o de cria��o de romances, contos e cr�nicas, � na poesia que a literatura brasileira – e, principalmente, mineira – mostrou sua for�a na �ltima d�cada. O movimento � dif�cil de mensurar, mas basta observar o circuito independente e de editoras de pequeno porte para ver que um dos motores tem sido a publica��o de novos nomes da poesia. � o caso de Ana Martins Marques, cuja estreia saiu pela Scriptum, que tamb�m � livraria em BH. Ana teve alguns t�tulos – em especial “O livro das semelhan�as” (Companhia das Letras, 2015) e “Como se fosse a casa: uma correspond�ncia” (Relic�rio, 2017), este com Eduardo Jorge – muito bem recebidos pela cr�tica e pelo p�blico. Outro exemplo � a poesia falada, que j� cativava com os saraus, mas ganhou espa�o e novos p�blicos na d�cada passada com o slam. Atualmente s�o centenas de grupos que se organizam, produzem poesia e competem – inclusive internacionalmente – pela consagra��o como poeta.
10) Libera��o das biografias
Foi uma vit�ria contra a censura. Em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade, liberar a publica��o de biografias n�o autorizadas no pa�s. A briga havia sido puxada pelo cantor Roberto Carlos, apoiado por Chico Buarque e Caetano Veloso, e que havia retirado de circula��o “Roberto Carlos em detalhes”, lan�ado em 2007. Piv� da discuss�o, o livro de Paulo C�sar de Ara�jo ainda n�o voltou � circula��o. Nos sebos, uma c�pia n�o custa menos de R$ 170, e existem exemplares � venda por at� R$ 1.300. Mas a brecha que o livro abriu provocou, indiscutivelmente, um crescimento do g�nero no pa�s, com biografados que v�o do maluco beleza Raul Seixas � assassina condenada Suzane von Richtofen.