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Estado de Minas IMPACTO

Santa Tereza e o isolamento: o impacto da pandemia no hist�rico bairro

O que representa o coronav�rus no bairro de BH que tem seu imagin�rio calcado na prosa entre moradores nas cal�adas e no burburinho de bares hist�ricos


31/07/2020 04:00 - atualizado 31/07/2020 07:29

Hospital do Isolamento, em Santa Tereza, salvou vidas de mineiros durante a Gripe Espanhola de 1918
Hospital do Isolamento, em Santa Tereza, salvou vidas de mineiros durante a Gripe Espanhola de 1918 (foto: livro bello horizonte: bilhete postal (cole��o centen�rio da funda��o jo�o pinheiro) - 2010)
Praticamente sozinhos na imensa pra�a, a m�e e o filho pequeno, ambos de m�scara, ouvem com sobriedade a Ave Maria de Gounod que ecoa diariamente da igreja de Santa Tereza, �s 18h, hor�rio de �ngelus. Desta vez, no entanto, por quarteir�es desertos. Ao menos naquele m�s de abril, o clima era de consterna��o, de olhares desconfiados entre frestas de janelas e com�rcio de portas cerradas, sem o tradicional burburinho das crian�as saindo do Col�gio Tiradentes.

Num compasso de apreens�o, mais do que se precaver, as ruas pareciam antecipar o luto. Curiosamente, a pandemia e a necessidade de distanciamento social talharam no espa�o p�blico ares de maquete de projetistas, nas quais reinam as edifica��es e as pessoas s�o meros tra�os isolados.

Algo instigante para a observa��o de quem cotidianamente pesquisa a din�mica urbana na regi�o. Por�m, n�o menos atordoante, tendo em vista um bairro que tem seu imagin�rio calcado na prosa entre moradores nas cal�adas, no burburinho de bares hist�ricos, na ocupa��o transgressora dos carnavais, no acolhimento de esquinas po�ticas e musicais. Mas nem sempre foi assim.

Nas primeiras d�cadas do s�culo 20 pairava sobre a “regi�o do Isolado” um forte estigma, chegando ao ponto de comerciantes serem aconselhados a evitarem investimentos ali. Tudo em fun��o do Hospital do Isolamento, especializado em doen�as psiqui�tricas e infecto-contagiosas, dentre elas as temidas var�ola e tuberculose.

Durante a Gripe Espanhola de 1918, suas duas enfermarias e 23 leitos foram essenciais para salvar vidas de in�meros mineiros, internados na imponente constru��o cercada por mangueiras, goiabeiras e jamel�es. Posteriormente, recebendo o nome de C�cero Ferreira, o hospital funcionou por 55 anos, at� 1965.

J� na d�cada de 1970, a �rea de 10 mil m² deu lugar ao Mercado Distrital. Hoje desativado, o local � tensionado, de um lado, por press�es pol�ticas e econ�micas, e, de outro outro, pelo desejo da comunidade de implementar uma ocupa��o sustent�vel e cooperativa, reescrevendo a �ntima rela��o entre mem�ria e pertencimento social no bairro.
Desfile do bloco Queimando o Filme pelas ruas do Bairro Santa Tereza, em fevereiro
Desfile do bloco Queimando o Filme pelas ruas do Bairro Santa Tereza, em fevereiro (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press - 8/2/20)

Voltando � regi�o do Isolado, at� o in�cio da d�cada de 1930, a �rea da antiga fazenda Boa Vista e da ex-col�nia agr�cola Werneck (indicada na planta de Aar�o Reis) padecia n�o apenas do estigma sanit�rio, mas de infraestrutura prec�ria, segundo tese do ge�grafo Ulysses Baggio.

A pol�tica de imigra��o, com a presen�a de muitos italianos, e principalmente a destina��o de terrenos a militares do quartel da For�a P�blica instalado na pra�a principal aos poucos pesou para melhorias, como a expans�o da linha de bonde em 1928. At� ent�o, sem o nome definitivo, buscou-se inspira��o no Rio Janeiro, ent�o capital da Rep�blica, num bairro que igualmente tinha o bonde como (charmoso) acesso � regi�o no alto da cidade: Santa Teresa.

Apesar desta refer�ncia e de a matriz mineira (que esperou 31 anos de obras at� ser inaugurada em 1962) homenagear Santa Teresa e Santa Teresinha, passou a ser predominante a grafia com Z por aqui.

A hist�ria do bairro carioca naturalmente � recoberta por muito mais camadas de tempo numa regi�o ocupada desde o s�culo 18, tendo como marcas deste per�odo os casar�es de influ�ncia francesa e a funda��o do Convento de Santa Teresa.

O clima ameno, que tanto agradou aos europeus, mais � frente foi a raz�o para atrair muitos que fugiam da febre amarela que se alastrava na parte baixa. Uma das vers�es aponta que a doen�a veio de carona num navio negreiro de Nova Orleans, passando por Havana e Salvador at� se espalhar pelas praias dos Mineiros e do Peixe, acometendo um ter�o da popula��o da ent�o capital do imp�rio por volta de 1850.

Enquanto a Santa Teresa carioca foi ref�gio contra a epidemia, cerca de sete d�cadas depois a mineira foi salva��o para os acometidos pela Gripe Espanhola — maculando, no entanto, toda a regi�o. 

Em ambos os bairros, o bonde foi respons�vel at� a primeira metade do s�culo 20 por alavancar o desenvolvimento econ�mico e urbano, com suas sabidas contradi��es. Ainda assim, a metropoliza��o que se dava do centro aos bairros chegou de forma gradual nessas regi�es, sem a voracidade imposta pelo mercado imobili�rio — devido ao distanciamento topogr�fico e por outros fatores que ainda merecem ser mais bem compreendidos.

� assim que transcendendo o vi�s religioso e elitista, no caso fluminense, e militar, no belo-horizontino, Santa Teresa passou a ser sin�nimo l� e c� de um espa�o marcado pela arquitetura antiga, comportando temporalidades diversas e acolhendo outros modos de vivenciar a cidade. 
Praça Duque de Caxias: um século depois, a pandemia do novo coronavírus também faz vítimas
Pra�a Duque de Caxias: um s�culo depois, a pandemia do novo coronav�rus tamb�m faz v�timas (foto: Eliza Peixoto)


Matizes urbanas


Essas sens�veis matizes urbanas tanto foram ber�o de artistas (o carioca Pixinguinha e os mineiros do Clube da Esquina) quanto atra�ram criadores, intelectuais e m�sicos em diferentes momentos. A cativante perman�ncia de parte destas paisagens ainda hoje, no entanto, n�o se d� ao acaso, mas sim como resultado de lutas por legisla��es de prote��o, como a �rea de diretrizes especiais conferida � Santa Tereza, fruto da mobiliza��o de associa��es e moradores para frear a especula��o imobili�ria da d�cada de 80, com recrudescimento e embates em anos recentes.

Hoje, em meio � pandemia de COVID-19, observar Santa Tereza esvaziada � did�tico para compreender que a paisagem n�o se diferencia da experi�ncia social dos sujeitos, como ensinou Milton Santos. Mesmo sem o “bal� das cal�adas” descrito por Jane Jacobs para sua Greenwich Village, cada rua reverbera apropria��es, lutas e desigualdades.

� neste momento que ficam mais evidentes no espa�o os corpos pardos e negros que seguem recolhendo nosso lixo nos caminh�es (mas tamb�m nos trajetos e coletivos de catadores), nos caixas das farm�cias, nas motos e bicicletas que cruzam velozes as esquinas para trazer nossa refei��o deixando ressoar seus aplicativos que lhe rendem algum tost�o: “seu destino est� logo adiante”.

A pandemia deve trazer sequelas para o espa�o p�blico, seja por medidas sanit�rias a longo prazo ou recess�o econ�mica e ado��o de novas pr�ticas. Em �reas de forte apelo de mem�ria e pertencimento como Santa Tereza, o imagin�rio urbano tamb�m pode, lendo a hist�ria a contrapelo, ser sin�nimo de reconhecimento aos que trabalham arduamente no isolamento dos hospitais e de apoio aos que tiram o sustento di�rio nas ruas, aquela que sente nos nervos a mis�ria da cria��o.

O destino de um direito � cidade renovado passa por seguir os trilhos das conting�ncias do presente, onde a sociabilidade pode ser sin�nimo, ao menos por enquanto, de recolhimento aos que podem, para mais � frente retomar sua for�a de irrever�ncia, empatia e maior agrega��o.

Jo�o Marcos Veiga � jornalista e doutorando em Hist�ria Social da Cultura pela Fafich/UFMG, pesquisando o Bairro de Santa Tereza-BH, onde tamb�m reside


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