
Isso faz com que o autor escreva sobre a tem�tica �tnico-racial, mas a partir do fazer liter�rio consciente de que a forma tamb�m � cara � literatura. “Do ponto vista est�tico, eu classifico como literatura. Sem adjetivos. Do ponto de vista pol�tico e de reivindica��o de um determinado espa�o, talvez seja importante acrescentar o adjetivo ‘negra’”, diz.
Jeferson Ten�rio nasceu no Rio de Janeiro, em 1977, e mora em Porto Alegre. Estreou na literatura com o romance O beijo na parede (Sulina, 2013), eleito o Livro do Ano pela Associa��o Ga�cha de Escritores. � autor tamb�m do romance Estela sem Deus (Zouk, 2018). O avesso da pele � sua estreia na editora Companhia das Letras, que destaca o lan�amento como uma das grandes apostas do ano: os direitos de adapta��o audiovisual j� foram vendidos para a RT Features, a mesma produtora de Me chame pelo seu nome, e h� negocia��es em andamento para tradu��o em diversos pa�ses. A capa, de alto impacto, reproduz a obra Trampolim (2019), que integra a s�rie Ba- nhistas, do artista pl�stico brasiliense Antonio Ob�.
“Poucos s�o os escritores brasileiros da atualidade t�o seguros e originais na abordagem narrativa e na constru��o da linguagem — � �nica a voz do narrador em primeira pessoa que assume uma roupagem de segunda pessoa. Com inquestion�vel talento para criar verdades — aquelas que s� podem e s� conseguem surgir com vigor na literatura —, Jeferson Ten�rio se coloca como autor que nos ajuda a compreender nossa identidade, brasileira, negra, humana, nosso drama”, destaca Paulo Scott, autor de outro romance vigoroso sobre o racismo no Brasil, Marrom e amarelo. Doutorando em teoria liter�ria pela PUC-RS, professor de literatura e pesquisador, Jeferson concedeu a seguinte entrevista ao Pensar do Estado de Minas:
Em O avesso da pele, voc� experimenta diferentes vozes narrativas. O que o levou a optar pela voz em segunda pessoa? O que essa estrat�gia traz � narrativa?
Penso que cada projeto liter�rio tem seu modo de ser contado. O avesso da pele tinha de ser assim. Do ponto de vista t�cnico, creio que a escolha da segunda pessoa convoca o leitor a participar da hist�ria. Embora o romance tenha Pedro como �nico narrador, eu quis construir uma narra��o que, de certo modo, transitasse entre a 1ª, a 2ª e a 3ª pessoas. Isso porque quando se narra em 2ª corre-se o risco de cair em certos v�cios e repeti��es e que podem cansar o leitor.

H� elementos comuns entre voc� e Pedro? Ou seria mais pontos comuns entre voc� e o professor Henrique? Voc�, como ele, � professor de literatura. Tamb�m d� aula em escolas p�blicas?
Bem, n�o sou professor de escola p�blica h� pelo menos 10 anos. No entanto, a experi�ncia que tive no in�cio de minha doc�ncia certamente me deu um bom material para transformar em li- teratura. Assim, tanto Pedro como Henrique formam um duplo que s�o e n�o s�o, ao mesmo tempo, peda�os de mim.
Ao construir os personagens, voc� n�o os apresenta de imediato como negros. Essa caracter�stica aparece, na rela��o do personagem com o outro, principalmente a partir de posicionamentos do interlocutor que evidenciam a cor da pele. Embora o Brasil por muito tempo tenha usado o argumento da miscigena��o para dizer que n�o era um pa�s racista, esse � um problema nosso, talvez o maior. A racializa��o marca todas as rela��es, de amizade, amo- rosas, profissionais?
Creio que esse seja um ponto delicado da narrativa. A preocupa��o em n�o racializar meus personagens de imediato parte justamente do desejo de contar uma hist�ria que n�o se constitui apenas pelo discurso racial, mas por uma busca subjetiva do narrador, pois � o avesso de Henrique que frustra o sistema racista, n�o a cor de sua pele. A reivindica��o aqui est� para al�m de uma den�ncia de um estado racista. O avesso da pele �, antes de tudo, uma reivindica��o do afeto. Uma reivindica��o de uma vida interrompida pela m�quina policial. Nesse sentido e levando em considera��o o racismo estrutural que se organizou no Brasil, creio que todas as rela��es acabam, de algum modo, sendo marcadas pelo racismo. O avesso... talvez seja, nesse sentido, a representa��o de um Brasil que n�o resolveu a quest�o racial e que talvez esteja longe disso.
Voc� aborda, ao construir a narrativa, temas que atravessam a vida de negros no Brasil, como a rela��o amorosa inter-racial, o preconceito sob a m�scara da brincadeira, a viol�ncia policial tendo o jovem negro como principal alvo. S�o expe- ri�ncias muito dif�ceis para quem � negro. Como � para voc� escrever sobre esses temas? Em que medida eles o atravessam?
Penso que a literatura � um modo de lidar com nossos fantasmas e pesadelos. Ningu�m � negro impunemente. N�o se sai ileso de uma sociedade racista que, mesmo diante de uma pandemia, n�o d� tr�gua. O estado e a persegui��o policial s�o nossos pesadelos e fantasmas desde muito tempo.
A sua estreia como romancista foi com O beijo na parede (2013), premiado pela Associa��o Ga�cha de Escritores. Em uma entrevista, voc� externou certo estranhamento por seu romance ser um dos poucos, na literatura brasileira contempor�nea, com um protagonista negro. A escrita desse personagem partiu do desejo de suprir essa lacuna ou decorre de sua viv�ncia no Brasil?
Cada livro tem um processo diferente. No caso de O beijo na parede, eu n�o tinha muita consci�ncia do que estava produzindo em termos de representatividade, digo, para mim na �poca isso n�o era uma quest�o a ser discutida. Escrevi porque tinha de escrev�-lo. Jo�o, meu personagem, era, em primeiro lugar, um acerto de contas com minha inf�ncia e com meus escritos guardados. S� me dei conta da singularidade de haver constru�do um personagem negro protagonista quando terminei o livro. Certamente, esse processo � oriundo de minhas viv�ncias, mas n�o s�. � a fabula��o que o torna veross�mil na minha vis�o.
Em Estela sem Deus (2018), o seu segundo romance, voc� mostra como o racismo e suas implica��es econ�micas provocam o amadurecimento precoce de jovens ne- gros. De certa forma, em O avesso da pele essa den�ncia � retomada na apresenta��o da realidade dos alunos do professor Henrique?
Talvez a palavra exata n�o seja “den�ncia”, mas uma certa “conscientiza��o” dos meus narradores frente ao sistema racista. A quest�o que se coloca em meus projetos liter�rios passa pelo entendimento de que negros n�o s�o pobres, n�o sofrem viol�ncias e n�o s�o mortos por meras circunst�ncias da vida. Isso acontece porque eles s�o negros. Essa � a quest�o. Portanto, a consci�ncia precoce desta condi��o � que nos garante estrat�gias de sobreviv�ncia. Uma dessas estrat�gias � a maturidade precoce. O que quero dizer � que n�o h� tempo para ingenuidade quando se � negro. N�o h� tempo para se ter inf�ncia quando a persegui��o racista est� instalada na sociedade. Os alunos do professor Henrique representam essa perda da ingenuidade diante da viol�ncia e do descaso.
Em O avesso da pele, voc� apresenta Porto Alegre como pano de fundo. Em Marrom e amarelo, de Paulo Scott, a cidade tamb�m aparece. Voc� identifica peculiaridades do racismo em Porto Alegre em compara��o com outras cidades brasileiras?
Marrom e amarelo, do Scott, � um livro essencial para compreendermos a complexidade do racismo estrutural no Brasil. Certamente, o sul do pa�s apresenta algumas especificidades no que diz respeito ao racismo. Sou carioca, vim para Porto Alegre aos 13 anos e lembro-me de sentir rapidamente os efeitos de ser negro aqui. Tenho a impress�o de que o racismo � mais escancarado no Sul.
A professora Regina Dalcastagn�, em pesquisa extensa e criteriosa sobre o romance brasileiro no s�culo 20, mostra quem � e sobre o que escreve o autor brasileiro. Ela constata que a maioria � formada por homens brancos, de classe m�dia, que escrevem sobre o universo onde se inserem. Como voc� v� a inser��o de diferentes vozes e corpos na literatura brasileira?
A pesquisa da professora Regina confirma aquilo de que j� desconfi�vamos: a literatura brasileira sempre teve cor, classe e g�nero. Acho que as vozes oriundas de outras experi�ncias podem ajudar a contar uma hist�ria sobre o Brasil por meio da literatura e que precisa ser contada. Reconhecer essas vozes � um modo de ampliar nossa capacidade de compreender por que o Brasil se tornou um pa�s como o que vemos hoje.
Em dado momento, a literatura de autoria negra recebia a defini��o de literatura negra. No entanto, ao mesmo tempo em que evidencia a produ��o de um segmento com pouca visibilidade e oportunidade no mercado editorial, essa adjetiva��o pode circunscrever a escrita a um nicho. Como voc� classifica a literatura feita por voc�?
Do ponto vista est�tico, classifico como literatura. Sem adjetivos. Do ponto de vista pol�tico e de reivindica��o de um determinado espa�o, talvez seja importante acrescentar o adjetivo “negra” em algum momento, desde que isso n�o sirva para encerrar a literatura produzida por pessoas negras num gueto. � importante que o mercado editorial entenda que existe uma demanda por hist�rias que cont�m parte de um Brasil silenciado.
O avesso da pele
.De Jeferson Ten�rio
.Companhia das Letras
.265 p�ginas
.R$ 59,90.
.E-book: R$ 29,90