
Essa declara��o pode parecer estranha para um autor que conquistou reconhecimento e fama com a literatura e o realismo m�gico, que arrebataram leitores mundo afora a partir do lan�amento, em 1967, de Cem anos de solid�o, a saga de v�rias gera��es da fam�lia do coronel Aureliano Buend�a.
E, principalmente, depois de ser agraciado pela academia sueca, em 1982, com o pr�mio m�ximo de literatura. Mas um olhar um pouco mais atento em suas obras e uma simples consulta nas entrevistas do autor colombiano confirmam que o jornalismo e a literatura andaram de m�os dadas na vida do escritor. E, talvez, se n�o tivesse sido rep�rter, Garc�a M�rquez tamb�m n�o se tornasse escritor, como ele mesmo admitiu. O jornalismo � “o melhor of�cio do mundo”, afirmou.
E � exatamente o trabalho de rep�rter de Gabo, apelido que ganhou de colegas jornalistas, que acaba de chegar compilado ao mercado brasileiro. Catorze anos depois do lan�amento de sua extensa obra jornal�stica em cinco volumes com quase 3.000 p�ginas, a editora Record lan�a Gabriel Garc�a M�rquez – O esc�ndalo do s�culo, antologia com 50 reportagens e cr�nicas publicados em jornais e revistas entre 1950 e 1984, todos pin�ados das edi��es de 2006 da editora. S�o exemplos de como o of�cio de jornalista inspirou a obra ficcional do escritor.
Mas antes de entrar no jornalismo, � preciso falar do dom criativo de Garc�a M�rquez, um mestre do encantamento liter�rio. Al�m do fasc�nio de Cem anos de solid�o, seus leitores jamais esquecem a duradoura paix�o de Fermina Daza e Florentino Ariza em O amor nos tempos do c�lera, que atravessou cinco d�cadas para se consumar.
A doen�a � um fator determinante no livro, porque Fermina, com suspeita de estar contaminada, � assistida pelo m�dico Juvenal Urbino, que acaba roubando de Florentino o cora��o de sua amada.
A doen�a � um fator determinante no livro, porque Fermina, com suspeita de estar contaminada, � assistida pelo m�dico Juvenal Urbino, que acaba roubando de Florentino o cora��o de sua amada.
A ousadia do escritor ao contar logo na primeira linha o fim do livro, como em Cr�nica de uma morte anunciada (“No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou �s 5 e meia da manh� para esperar o navio em que chegava o bispo...”) tamb�m � not�vel. N�o � para qualquer autor revelar o desfecho no in�cio da narrativa e conseguir segurar o leitor.
H� tamb�m O outono do patriarca, o livro que mais deu trabalho a Gabo – como ele mesmo revela em sua autobiografia Viver para contar (2003), reminisc�ncias de sua inf�ncia e juventude – porque levou quase dez anos pesquisando a trajet�ria de ditadores latino-americanos para criar o autocrata fict�cio de sua obra, que aponta para um triste passado pol�tico do continente.
H� tamb�m O outono do patriarca, o livro que mais deu trabalho a Gabo – como ele mesmo revela em sua autobiografia Viver para contar (2003), reminisc�ncias de sua inf�ncia e juventude – porque levou quase dez anos pesquisando a trajet�ria de ditadores latino-americanos para criar o autocrata fict�cio de sua obra, que aponta para um triste passado pol�tico do continente.
Outra hist�ria marcante � A incr�vel e triste hist�ria de C�ndida Er�ndira e sua av� desalmada, sobre a sina cruel da adolescente prostitu�da pela pr�pria av�, acusada injustamente de ter incendiado a casa. Hist�rias fant�sticas n�o faltam no mundo de Gabo. “Mestre Zabala (que o iniciou no jornalismo no jornal El Universal) me deixou alvoro�ado com o enigma de uma menina de doze anos enterrada no Convento de Santa Clara e cujo cabelo, depois de morta, cresceu vinte e dois cent�metros em dois s�culos. Nunca imaginei que voltaria a esse tema quarenta anos depois para contar essa hist�ria num romance com implica��es sinistras”, conta ele na autobiografia.
Esse caso fant�stico ganhou forma no livro De amor e outros dem�nios, que constr�i narrativa sobre a descoberta numa cripta de um esqueleto de uma menina com extensa cabeleira ruiva que morreu abandonada num convento, contaminada por raiva canina. No romance, o cabelo tamb�m continuou crescendo mesmo ap�s a morte. “Todo bom romance devia ser uma transposi��o po�tica da realidade”, afirmou Gabo em longa entrevista ao escritor Plinio Apuleyo Mendoza, transformada no livro Cheiro de goiaba (3ª edi��o/editora Record/1982).
Esse caso fant�stico ganhou forma no livro De amor e outros dem�nios, que constr�i narrativa sobre a descoberta numa cripta de um esqueleto de uma menina com extensa cabeleira ruiva que morreu abandonada num convento, contaminada por raiva canina. No romance, o cabelo tamb�m continuou crescendo mesmo ap�s a morte. “Todo bom romance devia ser uma transposi��o po�tica da realidade”, afirmou Gabo em longa entrevista ao escritor Plinio Apuleyo Mendoza, transformada no livro Cheiro de goiaba (3ª edi��o/editora Record/1982).
Como surgiu o rep�rter
Mas como come�ou a vida do rep�rter Garc�a M�rquez, o garoto nascido no pequeno povoado de Aracataca (vila nos arredores de Barranquilla que inspirou a imagin�ria Macondo de Cem anos de solid�o), na costa caribenha da Col�mbia? Antes de escrever seus mais de 30 livros, Gabo, no fim dos anos 1940, ent�o com 19 anos, era estudante de direito na Universidade Nacional de Bogot� e tinha publicado os primeiros contos (A terceira ren�ncia e Eva est� dentro do gato – este uma curiosa narrativa sobre a ditadura da beleza – que integram o livro Olhos de c�o azul), no jornal El Espectador.
A guinada veio em 9 de abril de 1948, quando uma trag�dia que jogou a Col�mbia numa guerra civil de uma d�cada e matou cerca de 200 mil pessoas, mudou radicalmente sua vida. O assassinato a tiros do l�der liberal populista Jorge Eli�cer Gait�n, pr�-candidato � presid�ncia da Rep�blica, causou confronto entre liberais e conservadores e revolta popular, epis�dio conhecido como Bogotazo. A resid�ncia estudantil de Garc�a M�rquez foi incendiada e a universidade fechada por tempo indeterminado.
Para continuar seus estudos, ele se mudou para Barranquilla, no norte do pa�s, mas a universidade local tamb�m foi fechada. Ele, ent�o, seguiu para a vizinha Cartagena das �ndias. Em maio de 1948, o jornalismo tomou o lugar do direito, que el abandonou, e entrou de vez em sua vida quando ele se encontrou na rua com o m�dico e escritor Manuel Zapatta Olivella, que j� o conhecia de Bogot� e o levou para a reda��o do El Universal com a proposta de trabalhar como rep�rter.
Recebido como escritor promissor, Gabo iniciou ali sua trajet�ria escrevendo textos que mesclavam jornalismo e cr�nicas sobre temas do cotidiano. Mas viveu de quarto em quarto alugado nos anos seguintes, n�o ganhava o suficiente para se sustentar e recebia ajuda financeira do pai, al�m de passar por momento sem inspira��o liter�ria.
Entre idas e vindas e muitas dificuldades, entretanto, a fama acabou chegando quando ele voltou para Bogot�. Escreveu em 1955 a dram�tica s�rie Relato de um n�ufrago, depois transformada em livro, baseada em entrevista com Luis Alejandro Velasco, �nico sobrevivente do navio da Marinha colombiana ARC Caldas, que naufragou durante tempestade ao voltar do Alabama (EUA).
Entre idas e vindas e muitas dificuldades, entretanto, a fama acabou chegando quando ele voltou para Bogot�. Escreveu em 1955 a dram�tica s�rie Relato de um n�ufrago, depois transformada em livro, baseada em entrevista com Luis Alejandro Velasco, �nico sobrevivente do navio da Marinha colombiana ARC Caldas, que naufragou durante tempestade ao voltar do Alabama (EUA).
O drama do n�ufrago sobrevivente foi publicado em 14 epis�dios e quebrou o recorde de vendas do El Espectador. Os problemas financeiros acabaram, mas houve esc�ndalo porque Gabo denunciou: “A embarca��o afundara por causa da sobrecarga do contrabando feito por oficiais e pela tripula��o”. Por causa da tens�o gerada pelas cr�nicas dram�ticas e para tirar Garc�a M�rquez do olho do furac�o em meio � ditadura colombiana, o editor o mandou para a Europa como correspondente.
Durante quase tr�s anos, ele esteve em Paris, na It�lia, Viena e at� do outro lado da ent�o Cortina de Ferro, o bloco de pa�ses comunistas da Europa Oriental. Tornou-se jornalista profissional. Desde ent�o, jornalismo e literatura caminharam juntos em sua vida. Na Europa, Gabo foi rep�rter e cronista e escreveu curiosas hist�rias, muitas delas reunidas agora em O esc�ndalo do s�culo.
CEM ANOS DE SOLID�O
“Qual foi o prop�sito quando se sentou para escrever Cem anos de solid�o?
Dar uma sa�da liter�ria, integral, para todas as experi�ncias que de algum modo me tivessem afetado durante a inf�ncia.
Muito cr�ticos veem no livro uma par�bola ou alegoria da hist�ria da humanidade.
N�o, eu s� quis deixar um testemunho po�tico do mundo da minha inf�ncia, que transcorreu numa casa grande, muito triste, com uma irm� que comia terra e uma av� que adivinhava o futuro, e numerosos parentes de nomes iguais que nunca fizeram muita distin��o entre a felicidade e a dem�ncia.
Os cr�ticos sempre encontram para ele inten��es mais complexas.
Se existem, devem ser inconscientes. Mas pode acontecer tamb�m que os cr�ticos, ao contr�rio dos romancistas, n�o encontrem nos livros o que podem, mas sim o que querem.
Voc� sempre fala com muita ironia dos cr�ticos. Por que o desagradam tanto?
Porque, em geral, com uma investidura de pont�fices e sem perceber que um romance como Cem anos de solid�o carece por completo de seriedade e est� cheio de senhas para os amigos mais �ntimos, senhas que s� eles podem descobrir, assumem a responsabilidade de decifrar todas as adivinha��es do livro, correndo o risco de dizer grandes bobagens.”
(Trecho da entrevista concedida por Garc�a M�rquez ao escritor Plinio Apuleyo Mendoza e transformada no livro Cheiro de goiaba, lan�ado em 1982, ano em que ele ganhou o Nobel de Literatura)

GABRIEL GARC�A M�RQUEZ -O ESC�NDALO DO S�CULO
Crist�bal Pera (organiza��o)
Editora Record
348 p�ginas
R$ 59,90