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Estado de Minas LITERATURA

As mem�rias e os novos ensaios do escritor mineiro Silviano Santiago

Silviano lan�a 'Menino sem passado', sobre a inf�ncia em Formiga, e 'Fisiologia da composi��o', com an�lises de Machado de Assis e Graciliano Ramos


19/03/2021 04:00 - atualizado 19/03/2021 08:20

Mineiro de Formiga, Silviano Santiago escava as memórias familiares em
Mineiro de Formiga, Silviano Santiago escava as mem�rias familiares em "Menino sem passado" (foto: DIVULGA��O)
“Menino sem passado” (Companhia das Letras) e “Fisiologia da composi��o” (Cepe), de Silviano Santiago, devem ser encontrados em diferentes se��es nas livrarias. O primeiro, nas prateleiras de literatura brasileira; o segundo, nas de cr�tica liter�ria. Entretanto, s�o em alguma medida livros geminados. Ambos tratam da tarefa de escrever sobre si mesmo alargado pela experi�ncia alheia e sobre os outros ao lhes emprestar o pr�prio corpo e pensamentos.

A aus�ncia da m�e, que morre de parto quando Silviano tem apenas um ano e meio, em abril de 1938, e a presen�a do pai s�o marcas imperiosas de “Menino sem passado”. “Vejo os olhos que veem minha m�e viva”, escreve o autor ao observar uma foto em que foi clicado aos quatro meses de vida. Plagiada de Roland Barthes, a frase torna-se pela forma e contexto indiscutivelmente do escritor brasileiro. E tanto quanto poderosa.

Sobre o t�tulo “Menino sem passado”, afirma em suas p�ginas t�-lo “roubado” de Murilo Mendes, autor de “A idade do serrote” (1968). Esse tipo de apropria��o, denominada “hospedagem”, est� na base das an�lises de “Fisiologia da composi��o”, que re�ne ensaios dedicados a Graciliano Ramos e Machado de Assis. Vale lembrar que Silviano hospedou sua pr�pria produ��o ficcional nas obras dos dois can�nicos, caso do romance de estreia “Em liberdade” (1981) e “Machado” (2016), o que merece destaque tamb�m nas mem�rias.

Al�m dos pr�prios pais, outro casal decisivo na educa��o sentimental que se confessa em “Menino sem passado” � o formado pela av� paterna, Maria Thomasia, e seu companheiro, Juca Amarante. Uma afronta para o ambiente pequeno-burgu�s provinciano onde cresce o menino. Italiana casada com o patr�cio Giuseppe Santiago, ela se torna amasiada do coronel descendente de velha cepa portuguesa.

O av� posti�o do menino � enterrado como solteiro na cr�nica de Formiga, cidade que ele ajudou a alicer�ar quando prefeito. E seus filhos com Maricota, tidos como bastardos pelos concidad�os. Silviano, por sua vez, reconhece nessa transgress�o ao consangu�neo movida pela paix�o e o esp�rito aventureiro, a tecer enredos em seu imagin�rio, um motivo forte de identifica��o.

A professora Jurandy, a segunda esposa do pai, tamb�m lega ao menino um outro av� n�o biol�gico. Erasmo Cabral � o nome pr�prio a despertar o interesse nas conversas dos mais velhos e a suscitar no adulto a dedica��o � extensa pesquisa. Nas mem�rias, o bar�o do caf� falido se torna �cone fundamental do aprendizado da transitoriedade do status econ�mico e social, da ru�na n�o s� em termos financeiros como a de um corpo atravessado por dias de abund�ncia ou de priva��o, pela sa�de ou a falta dela.

Tais arranjos e desarranjos da corporeidade, n�o como met�fora, mas como fatores determinantes da cria��o liter�ria, interessam sobremaneira ao cr�tico em “Fisiologia da composi��o” ao esmiu�ar as condi��es materiais e f�sicas dos autores ao escreverem, por exemplo, “Mem�rias do c�rcere” (1953) e “Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas” (1881).

Fora do retrato

Se Silviano atualiza com o seu pr�prio passado a no��o de retrato de fam�lia comum nos nossos dias, tamb�m traz � tona os espa�os mais rec�nditos e silenciados historicamente em uma sociedade patriarcal e de base escra- vocrata. Bem ali onde a clientela do pai dentista n�o tem olhos nem ouvidos, ao contr�rio do que se d� em todo o restante da cidade interiorana, sempre a sussurrar.

O primeiro desses lugares � o quarto da Sofia, para onde os dois �rf�os mais novos s�o deslocados, deixando o quarto dos pais ap�s a morte da m�e. A bela italiana se torna a guardi� dos dois e motivo de especula��es e desaparece com a chegada da madrasta. Essas duas figuras femininas, al�m da irm� mais velha, ocupam e logo desocupam o lugar deixado pela m�e, que resta sempre vazio.

Na primeira parte do livro, a empregada Etelvina se recusa a se colocar nesse lugar de maternagem e marcado pela preposi��o a indicar a posse, ao repetir v�rias vezes: “Voc� � da Sofia. N�o � meu”. Enquanto, na segunda parte, a busca empreendida em favor de uma genealogia at� certo ponto liberta do tradicional leve aquele que narra – que � ao mesmo tempo Eu-Ele ao longo do livro – a enfim afirmar: “Passo a pertencer s� a mim e a mais ningu�m. J� afrouxados, desatam-se ainda mais os la�os fami- liares. Tanto mais velho, tanto menos experiente na mat�ria da vida.”

Do quarto de Sofia passamos ao territ�rio da cozinha, onde trabalha Etelvina. O escritor j� havia mencionado o nome dela em “Uma hist�ria de fam�lia”, aproximando seus afazeres. “Quero escrever, gosto de escrever como Etelvina cata feij�o e cozinha angu.” Mas desta vez vai mais fundo no embate com as lembran�as da negra e confessa-se um “observador de merda. Ou do umbigo”. Constata que dentro da casa ela “� a �nica pe�a desarm�nica” e sem voz. “Fale, por favor. Fale, Etelvina.”

Do mesmo modo, o irm�o da m�e que enlouquece em idade madura, e que inspirou esse mesmo pequeno livro publicado em 1992, no qual Etelvina � mencionada, ganha um cap�tulo em “Menino sem passado”: “O tio M�rio”. Com ele, estamos em quintal da cidade de Pains, onde a av� materna tem uma pens�o e o filho enlouquecido passa o dia acorrentado a um abacateiro. “O menino son�mbulo � reflexo do tio.” S�o um em um anseio de liberdade de movimento. “Ao me dar a primeira li��o sobre a arte de viver em dor/alegria, seus l�bios entreabertos aliviam o sonambulismo em que vivo.”

Em todos esses personagens e esfor�os de composi��o de si, reconhecemos os que um sentido de pertencimento que vive a lhe escapar e, por isso mesmo, a fixar no provis�rio, no estrangeiro e na falta as possibilidades de expans�o de quem se sabe desde cedo marcado pela diferen�a.

As idades do homem

Por vezes, Silviano faz quest�o de ressaltar a perspectiva do velho em “Menino sem passado”, n�o se limitando � dupla crian�a-personagem e adulto-autor. Sem homogeneizar as idades do homem, pesa a import�ncia de cada uma das etapas da vida para a apreens�o daquele que foi. Assim, no��es e conceitos que n�o figuravam no vocabul�rio infantil, como “inibi��o” ou “simpatia f�sica”, esse �ltimo retirado da obra de Andr� Gide, passam a ser alicerce de sua subjetiva��o. O jovem Silviano se doutorou pela Sorbonne na d�cada de 1960, ao defender uma tese sobre o Nobel franc�s. Per�odo que figura nessas mem�rias.

No que toca � interioridade a se revelar em constru��o constante em “Menino sem passado” e nas an�lises do cr�tico em “Fisiologia da composi��o”, reconhecemos o tempo todo o m�todo da enxertia utilizado pelo pai para diversificar as roseiras cultivadas na primeira morada. Espa�o de experimenta��o bot�nica que mais tarde ser� destru�do por uma obra de alargamento da rua onde se localiza o primeiro endere�o, em Formiga.

Como o jardim, as outras casas que abrigam essa inf�ncia, quando a fam�lia se muda para Belo Horizonte, s�o uma a uma colocadas abaixo com o passar dos anos e reerguidas nessas mem�rias arquitetadas como romance. Trama crivada de momentos ensa�sticos e mesmo de an�lises liter�rias, como a de poema de outro mineiro, o de Itabira, a preencher as lacunas pr�prias das mem�rias – dado fundamental de uma vida vivida entre livros, filmes, gibis, sem nunca deixar de localizar-se em um entrelugar e entretempos.

As mem�rias do menino nascido no Oeste de Minas Gerais, ainda que assinaladas pelo subt�tulo (1936-1948), n�o se at�m a esse intervalo, tampouco � ordem cronol�gica. Pode-se passar da Segunda Guerra Mundial aos anos de chumbo no Brasil, da crise de 1929 ao per�odo das guerras coloniais.

O mesmo pode ser dito em rela��o aos espa�os que habitam uma vida marcada pelo nomadismo. De cidade do interior ou na capital mineiras parte-se para o Rio de Janeiro, Nova York, Paris, para sempre retornar � paisagem natal.

Ali onde a porta do quarto de Sofia permanece entreaberta, o menino son�mbulo caminha diante de um horizonte de luto, sem grade de prote��o. �s vezes, cai machucado, noutras desperta-nos em um tempo pr�prio, como s� s�o capazes os mais generosos hospedeiros de nossas leituras.

* Luciana Araujo Marques � jornalista, mestre em teoria liter�ria (USP) e doutoranda em teoria e hist�ria liter�ria (Unicamp)

Trecho

“Menino sem passado”

“Escrevo o amor de Juca e de Maria no sil�ncio aberto pelo que desconhe�o.
E conhe�o pelo lado de dentro da comunidade formiguense o que o sil�ncio encobre e protege, a fim de s� se abrir em fala com meu pr�prio e fal�vel corpo apaixonado. N�o minto. N�o invento. Tergiverso talvez. Talvez minta. Talvez minta para alguns que apenas acreditam no p�o, p�o, queijo, queijo da realidade bruta e falastrona. Sou mais eu na imagem do espelho que me reflete. Sou mera c�pia da c�pia avoenga. N�o sou uma mentira.

Digo a verdade cabeluda, que fere os olhos do tabu, e esguicha sangue e dor – tristeza e alegria. O profano � o sagrado. Digo a verdade porque o sabor da vida vivida por Juca e Maria – sabor semelhante ao do leite de cabra que me alimenta desde sempre, sem que o soubesse – atesta que a sa�de aventureira do casal os transformava nos meus verdadeiros antepassados sangu�neos.
Os mais desencontrados e extremados la�os de sangue s�o enxertados no meu corpo ao escrever no sil�ncio aberto pelo que desconhe�o.”

Menino sem passado
Silviano Santiago
Companhia das Letras
464 p�ginas
R$ 72 - R$ 39,90 (e-book)

Trecho

“Fisiologia da composi��o”

“O recurso � hospedagem n�o comporta a reversibilidade dos acontecimentos, que o uso da mem�ria historicizante requer do romancista que se vale da hist�ria do passado para compreender o presente, e vice-versa. Em palavras mais simples: a trama romanesca do presente n�o reproduz – em avan�o cronol�gico, em ritmo de progresso e em tom otimista – a trama do passado. No recurso � hospedagem, importa menos a a��o que se desenrola na obra/hospedeira que certa li��o (sobre cronologia, progresso e otimismo, no caso) que dela se tira pela leitura pessoal e cr�tica do artista. [Em “Esa� e Jac�”], Machado n�o convida o leitor a compreender a reversibilidade do Tempo, como se programa historiogr�fico de car�ter pedag�gico, mas a amparar o pr�prio corpo e sua imagina��o nas repeti��es que se d�o e se dar�o sempre em diferen�a.”

“Fisiologia da composi��o” 
Silviano Santiago
Cepe Editora
236 p�ginas
R$ 60 -  R$ 18 (e-book)


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