(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas SAGA DOS JUDEUS

Lira Neto: 'O conhecimento � feito de pontos de interroga��o'

Bi�grafo Lira Neto detalha o processo de trabalho de 'Arrancados da terra', com a reconstitui��o da saga dos judeus perseguidos pela Inquisi��o


19/03/2021 04:00 - atualizado 19/03/2021 08:25

Lira Neto(foto: Daryan Dornelles_TR)
Lira Neto (foto: Daryan Dornelles_TR)
A cidade de Nova York, nos Estados Unidos, � considerada uma das mais cosmopolitas do mundo. Ela � formada por cinco distritos situados no encontro entre o Rio Hudson e o Oceano Atl�ntico. S�o eles Manhattan, Staten Island, Queens, Brooklyn e Bronx. Historicamente reconhecida como um reduto do partido Democrata e de perfil progressista, Nova York � tecnol�gica, moderna e agitada.

Dita tend�ncias da moda, da arte e da educa��o, al�m de oferecer entretenimento para todas as idades. E, claro, tem seus problemas, como toda megal�pole. Mas ser� que sempre foi assim? Como foi que tudo come�ou? Quem estava entre os primeiros habitantes da regi�o?

Nova York teve entre seus primeiros moradores, que desembarcaram na cidade ainda no s�culo 17, um grupo de judeus refugiados, primeiramente da Inquisi��o imposta pela Igreja Cat�lica em Portugal e, depois, da guerra entre luso-brasileiros e holandeses na Regi�o Nordeste do Brasil, mais precisamente em Pernambuco. Hoje conhecida como Capital do Mundo, a Big Apple, ent�o, serviu de abrigo para homens, mulheres e crian�as, alguns doentes, muitos com fome e desesperados, que fugiam da viol�ncia e da intoler�ncia, assim como seus antepassados fizeram durante toda a sua exist�ncia.

� a hist�ria dessas pessoas, que passaram a vida sendo perseguidas por causa da pr�pria religi�o e que chegaram a Nova Amsterd�, col�nia holandesa na costa oriental da Am�rica do Norte, em 1654, que inspirou o escritor e jornalista Lira Neto, um dos mais importantes bi�grafos brasileiros da atualidade, a publicar o livro “Arrancados da terra”, que chegou �s livrarias em fevereiro deste ano. O autor de “Padre C�cero” (2009) e da trilogia “Get�lio” (2012-2014), entre outros, conta que, inicialmente, queria fazer a biografia do holand�s de origem alem� Maur�cio de Nassau, mas que, ao aprofundar sua pesquisa, se encantou pela hist�ria paralela dos sefarditas que chegaram ao Recife via Amsterd�.

Lira Neto, ent�o, mergulha de cabe�a na saga dos judeus que lutavam pela sobreviv�ncia em Portugal, onde j� se ‘matava em nome de Deus’, e descobre-se, ele mesmo, um descendente dos crist�os-novos (nome dado aos judeus convertidos for�adamente ao cristianismo), e que eram perseguidos pela Inquisi��o ib�rica. O autor conta no livro que, durante uma viagem de trabalho a Nova York, em 2013, visitou o hist�rico cemit�rio da St. James Place e a sinagoga Shearith Israel – nome da congrega��o mais antiga de Manhattan – e se convenceu de uma vez por todas a mudar o foco do seu projeto.

“Arrancados da terra”, como o nome sugere, � uma homenagem aos ‘desterrados, retirantes, refugiados, ap�tridas, proscritos, exilados, imigrantes, degredados, foragidos, expatriados, fugitivos e desenraizados do mundo’. O motivo? Garimpa pe�as de um quebra-cabe�a dif�cil de ser montado devido ao longo tempo em que os fatos ocorreram. Afinal, s�o hist�rias de sangue, viol�ncia, escravid�o, f�, esperan�a, antissemitismo e morte, entre 1492 e 1664, dif�ceis de ser reconstitu�das e, tamb�m por isso, ainda instigantes.

Para resgatar uma hist�ria de s�culos atr�s, Lira Neto precisava encontrar informa��es de pessoas que passaram a vida se escondendo e tentando apagar vest�gios. Desse modo, fez pesquisas na biblioteca de Nova York, visitou os arquivos da Torre do Tombo, em Lisboa, consultou acervos na Holanda, e foi, assim, ligando alguns pontos, encontrando v�nculos, para que o leitor pudesse se situar no tempo. At� que, enfim, definiu o primeiro fio condutor da narrativa: o judeu Gaspar Rodrigues Nunes, que posteriormente passaria a ser identificado como Joseph ben Israel.

Esse homem foi um dos condenados, torturados e presos pela pr�tica do juda�smo em Portugal. Em determinado momento, ele consegue fugir para Amsterd�, cidade com grande toler�ncia religiosa para os padr�es da �poca, considerada, ent�o, o ‘centro econ�mico do mundo’, onde a saga do �xodo sefardita tem sequ�ncia com outros personagens, at� a chegada dos crist�os-novos a Pernambuco. Ou seja, o livro acaba sendo uma esp�cie de ‘biografia coletiva’ ao retratar s�culos de luta do povo judeu por sobreviv�ncia. Um exerc�cio minucioso de investiga��o, atento aos detalhes e mist�rios que ficaram sem resposta durante muito tempo.

A narrativa tem prosseguimento em Recife, a Jerusal�m dos Tr�picos, invadida pelos holandeses em 1630. Muitos judeus migraram da Holanda para o Nordeste brasileiro com a inten��o de produzir a��car, importante artigo que movimentava as redes de com�rcio transatl�ntico da �poca. Mas, para isso, os sefarditas tamb�m sequestravam negros africanos para o trabalho escravo durante o per�odo colonial no Brasil. Com o passar do tempo, os refugiados da Pen�nsula Ib�rica come�am a sofrer discrimina��o por parte da maioria cat�lica da regi�o e dos sacerdotes calvinistas holandeses que vinham ao pa�s, o que os obriga a fugir novamente.

Interessante destacar que, em seu p�s-escrito, o bi�grafo cearense Lira Neto afirma que a chegada dos judeus a Manhattan, em setembro de 1654, � referendada pela maioria dos historiadores brasileiros e estadunidenses. Por�m, do ponto de vista documental, reconhece que o epis�dio ‘se sustenta mais em infer�ncias circunstanciais do que em evid�ncias hist�ricas’. E conclui: ‘Estabeleceu-se, assim, o que hoje pode ser considerado um dos principais mitos de origem da funda��o de Nova York’. O escritor n�o escolhe o lado dos que consideram o evento uma ‘mera contrafa��o hist�rica’ nem dos que o assumem como ‘verdade irrefut�vel’. Desse modo, ati�a a curiosidade dos que gostam de uma boa hist�ria. Confira, a seguir, uma entrevista com o autor.

''Ao biografar algu�m, biografa-se toda uma �poca''

Lira Neto, autor dos livros ''Get�lio'' e ''Padre C�cero''



Qual foi a parte mais dif�cil da pesquisa?
Alguns personagens do livro s�o pessoas que, devido � condi��o de fugitivos, levaram a vida tentando apagar e silenciar os vest�gios da pr�pria exist�ncia. Isso � um elemento complicador do ponto de vista documental. Muito do que sabe desses indiv�duos deve-se ao que consta em inqu�ritos eclesi�sticos e judiciais movidos contra eles.

O que tornou necess�rio seguir a li��o de Walter Benjamin, de ‘escovar a hist�ria a contrapelo’, ou como disse Carlo Ginzburg, de ‘fazer surgir vozes incontroladas’, ou seja, ler os documentos contra a inten��o com os quais eles foram produzidos. Al�m disso, as fontes prim�rias eram velhos manuscritos do s�culo 17, o que imp�s desafios de leitura paleogr�fica e a consulta a dicion�rios de �poca, pois os sentidos das palavras nem sempre permaneceram os mesmos de l� at� aqui.

Quais as descobertas que mais o deixaram realizado durante este trabalho?
Outro desafio foi identificar personagens arquet�picos, cujas trajet�rias individuais servissem para iluminar aspectos mais gerais e coletivos. � o caso do portugu�s Gaspar Rodrigues, o crist�o-novo apresentado ao leitor nos primeiros cap�tulos do livro. O processo religioso movido contra ele e a esposa, Filipa, � bastante significativo dos m�todos utilizados pelos inquisidores, o que inclu�a dela��es premiadas, tormentos psicol�gicos e tortura f�sica.

O filho de Gaspar, Menasseh ben Israel, crescido na Holanda, oferece uma linha de continuidade � narrativa, que se desdobra sobre a quest�o dos refugiados judeus, desenvolvida na segunda parte do livro. Reconstituir hist�rias de vidas t�o paradigm�ticas foi uma tarefa cercada de dificuldades, mist�rios e lacunas documentais, por isso mesmo desafiadora e fascinante.

Onde podemos encontrar no Brasil atual tra�os da cultura e do comportamento dos judeus sefarditas?
Quando Portugal retomou dos holandeses as chamadas ‘capitanias do a��car’, restaram aos judeus que viviam no Brasil duas alternativas. A primeira delas era partir. A outra, refugiar-se sert�o adentro, ocultando os tra�os mais exteriores do juda�smo. Com o passar das gera��es, os usos e costumes judaicos dilu�ram-se na cultura popular nordestina. Incorporaram-se, por exemplo, a certas tradi��es f�nebres, como a lavagem de defuntos, sepultamentos em terra limpa, pedras postas sobre o t�mulo, �guas derramadas do pote de barro no caso de morte de algum morador.

H� resqu�cios tamb�m na pr�tica sertaneja de n�o varrer o lixo em dire��o � porta da rua e no modo rural de abater galinhas, degolando-as ainda vivas, com um �nico golpe, o que talvez guarde rela��o com os princ�pios das leis alimentares prescritas pelos livros sagrados dos judeus. Mas o sentido original de tais reminisc�ncias perdeu-se na noite dos tempos.      

 Quais as diferen�as e os desafios de se fazer uma esp�cie de ‘biografia coletiva’, em que a vida de v�rios personagens ajuda a contar a hist�ria? Foi muito diferente do trabalho que voc� realizou para escrever “Get�lio” ou “Padre C�cero”, por exemplo? Voc� v� semelhan�as com “Uma hist�ria do samba”?
Uma biografia, qualquer que seja ela, nunca � uma narrativa em torno de um �nico protagonista. Ao biografar algu�m, biografa-se toda uma �poca, na medida em que ningu�m existe � parte das circunst�ncias do tempo e do espa�o. Nesse sentido, toda biografia �, de algum modo, coletiva. Mas quando isso � feito de forma mais estrutural, como no caso de “Arrancados da terra”, que envolve diferentes cen�rios geogr�ficos e mesmo marcos temporais distintos, com os mais variados protagonistas, a empreitada se reveste naturalmente de maiores dificuldades. � preciso fazer com que os fios individuais e as v�rias subtramas se entrelacem numa trama maior, de forma coesa e coerente. Nesse aspecto, recupera-se o significado original do termo ‘texto’, entendido como ‘tecido’, ‘tessitura’.      

No livro, voc� afirma que, inicialmente, pensava em fazer a biografia de Maur�cio de Nassau. Como foi mudar o foco do trabalho? O que mais pesou para essa decis�o? Pretende voltar ao ‘projeto Maur�cio’?
Sim, no in�cio do processo de pesquisa, havia a inten��o de escrever uma biografia de Maur�cio de Nassau. Mas o mergulho na vasta bibliografia e no manancial de documentos acabou por revelar-me a minha pr�pria ascend�ncia relacionada aos crist�os-novos que fugiram de Portugal ap�s as persegui��es da Inquisi��o.  Essa descoberta pessoal mudou os rumos do trabalho. Engavetei de vez o ‘projeto Nassau’ — n�o pretendo voltar a ele, uma vez que me vi envolvido por uma hist�ria mais ampla e mais arrebatadora.  

Como o Lira Neto, descendente dos crist�os-novos, observa o Brasil atual? � um bom lugar para se refugiar, para escapar da intoler�ncia? Por qu�?
Infelizmente, o Brasil � hoje um dos terrenos menos prop�cios ao exerc�cio da toler�ncia e do respeito �s diferen�as e �s minorias. Em plena propaga��o exponencial da pandemia, assiste-se a uma escalada do preconceito e dos discursos de �dio, fen�meno fomentado e incentivado pela autoridade m�xima da Rep�blica, atualmente exercida por um ser humano abjeto, anti-iluminista, tosco e negacionista, um hom�nculo moral, incapaz de qualquer pensamento complexo, incompetente para o exerc�cio de alteridade, desprovido de compaix�o em rela��o � dor dos outros.  

“Arrancados da terra” nos mostra a persegui��o da Igreja Cat�lica e do calvinismo ao povo sefardita, que, por sua vez, teve sua parcela de contribui��o para a escraviza��o de negros no Brasil. Como voc� analisa essa intoler�ncia religiosa? Qual a sua rela��o com a f�?
N�o sou uma pessoa religiosa, o que n�o me impede de tentar compreender as motiva��es e os sentidos da f� alheia. Do mesmo modo que procurei entender a visceralidade da f� sertaneja ao biografar Padre C�cero, tentei mergulhar no significado hist�rico e filos�fico do juda�smo, at� para poder perceber e interpretar as origens do longo processo de demoniza��o do povo judeu.    

Em seu p�s-escrito, voc� lembra ao leitor que o desembarque de 23 judeus em Manhattan, em 1654, ficou estabelecido como um dos principais mitos de origem da funda��o de Nova York. Existem ‘mitos’ que valem a pena? Por qu�?
Os mitos, ensina Mircea Eliade, n�o s�o apenas fabula��es, inven��es, fic��es, ilus�es, em suma, ‘mentiras’. S�o tamb�m tradi��es, modelos exemplares de interpreta��o, formas de compreens�es da realidade. � preciso n�o descartar o mito pura e simplesmente, mas procurar compreender suas origens, significados, motiva��es. No caso espec�fico, entretanto, vale dizer que os judeus que sa�ram do Recife n�o fundaram ‘Nova York’, pois j� havia um empreendimento colonial em curso na ilha de Manhattan, na ent�o Nova Amsterd�.

H� d�vidas, inclusive, sobre o t�o falado desembarque dos 23 judeus na ilha. Seriam aqueles homens, mulheres e crian�as os mesmos que partiram do Recife, em setembro de 1654? O p�s-escrito recorre � discuss�o historiogr�fica em torno dessa inquietante pergunta. N�o para estabelecer respostas definitivas ou verdades absolutas acerca dela. Mas, ao contr�rio, para suscitar novas quest�es. O conhecimento n�o � feito de certezas pr�vias — e sim de pontos de interroga��o.  


Trechos

“Quanto aos judeus que seguiram viagem — um grupo de 23 pessoas, entre homens, mulheres e crian�as —, os relatos apontam que, em vez de retomarem a trajet�ria original, cruzarem o Atl�ntico e rumarem de novo para a Holanda, eles terminaram por mudar de planos.

Contrataram os servi�os de um capit�o de navio franc�s, Jacques de La Motte, para os levar at� um pequeno entreposto comercial neerland�s situado 2,5 mil quil�metros mais ao norte do continente americano numa ilha chamada de Nova Amsterdam pelos colonos e de Mannahata pelos nativos — e da� Manhattan, na adapta��o adotada logo em seguida pelos neerlandeses.

Por sua posi��o geogr�fica estrat�gica, no estu�rio do rio Hudson — assim batizado em homenagem a Henry Hudson, o explorador ingl�s que o descobriu, em 1609, a servi�o da Companhia das �ndias Ocidentais —, a modesta Nova Amsterdam era a sede administrativa de uma col�nia maior e ainda mais erma, conhecida como Nova Holanda, a exemplo de outras possess�es neerlandesas. Mantida pela Companhia das �ndias Ocidentais, ela ocupava o territ�rio mais tarde compreendido pelos estados norte-americanos de Nova York, Nova Jersey, Connecticut, Pensilv�nia e Delaware”.

Arrancados da Terra
• Lira Neto
• Companhia das Letras
• 424 p�ginas
• R$ 84,90 (livro) e     R$ 39,90 (kindle)


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)