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Estado de Minas REALIDADE

Escritora mineira Clara Arreguy narra a dura realidade de uma professora

Clara ainda exalta a import�ncia da educa��o e da leitura


19/03/2021 04:00 - atualizado 19/03/2021 08:16

(foto: Paulo de Araujo/DIVULGA��o)
“Ta� um tema que trato sempre com meus alunos, lembrando as aulas inesquec�veis do professor Jo�ozinho: ‘– Leiam, leiam, leiam. Quem l� aprende sem fazer esfor�o, exercita a mem�ria e o racioc�nio, desenvolve a imagina��o, viaja para outros mundos, viaja no tempo, pro passado e pro futuro, e no espa�o, pra todos os pa�ses e planetas que talvez nem existam. Quem l� consegue pensar melhor, entender melhor as coisas, dar solu��o pros problemas, colocar-se no lugar do outro.

Isso tem um nome: empatia. Sentir o que outro sente, entender por que ele age de determinada maneira. A leitura � t�o boa que � boa at� pra paquerar. Quem voc�s acham que faz mais sucesso: o bonitinho sem papo ou o mais ou menos, que tem um papo bom, sabe contar hist�rias, tem assunto, conhece ou j� ouviu falar de v�rios assuntos?. O bonitinho pode at� chegar primeiro, mas quem fica, permanece, � o bom de papo.

Ah, e quem l� escreve melhor, porque tem familiaridade com o texto, a mat�ria-prima. Quem l� tem mais vocabul�rio e sabe mais portugu�s.’ O professor Jo�ozinho falava isso tanto que eu decorei. Virou meu mantra, que repito por onde passo, seja pra crian�as, jovens ou adultos.”

A lembran�a acima � da professora Fabr�cia, a Fabi, a protagonista de “O quarto canal”, novo livro da escritora mineira Clara Arreguy, uma pancada sociol�gica no retrocesso vigente. Fabi � v�tima de ass�dio na faculdade e de persegui��o por lecionar conte�dos “ideol�gicos”, sofre com o sucateamento da profiss�o, com a pouca remunera��o e a desvaloriza��o profissional. Clara tempera a dura sina de Fabr�cia na capital federal com humor e ironia, sem desmerecer a gravidade do drama. Fabr�cia � sincera, abre seu cora��o para o leitor e escracha o ambiente hostil que tolhe sua profiss�o, seus afetos e seus sonhos.

Em seu mundo, um retrato visceral do Brasil atual, o que j� era dif�cil, por causa dos sal�rios baixos, excesso de carga de trabalho, falta de estrutura das escolas, por incr�vel que pare�a, piorou. Os professores perderam o respeito dos alunos e a escola passou a ser acusada de doutrina��o. Paralelamente, o analfabetismo pol�tico, express�o apresentada pelo escritor, poeta e dramaturgo alem�o Bertolt Brecht, avan�a a passos largos, engole o cidad�o comum que se diz “apol�tico”, mas, na pr�tica, � omisso, se cala diante das barbaridades perpetradas por governos antidemocr�ticos.

“E que profiss�o? Nobre? Mission�ria? Mais do que isso: essencial. Por�m, n�o no mundo que Fabr�cia e tantos e tantos outros professores brasileiros habitam. Um mundo de desvaloriza��o da ci�ncia, do conhecimento e do saber. Um mundo que tem cheiro e sabor �cido. Aquele que os dentes colocam nos dentes”, ressalta a professora Luc�lia Neves de Almeida Delgado no pref�cio do livro.

“IMP�RIO DA MEDIOCRIDADE”

Mas a grande surpresa do livro come�a pelo curioso t�tulo e pelo tema inusitado que faz arrepiar 10 entre 10 leitores: um tratamento dent�rio. Que leitor se interessaria em ler um livro que j� come�a com o drama de um tratamento de canal de dente enfrentado pela protagonista? Mas o que parece repulsivo � um dos maiores atrativos da obra. � sabido que um dente pode ter at� quatro canais. E � este �ltimo que atormenta a vida de Fabr�cia na cadeira do dentista, uma dor que se estende como met�fora para a sua vida e a do pa�s.

Enquanto se enreda no tratamento odontol�gico com a dentista Mariluz, Fabr�cia vai contando sua dif�cil rotina como professora. A narrativa envolvente de Clara Arreguy n�o deixa o leitor ficar passivo, porque esse drama tem tamb�m paix�es conturbadas, machismo e ass�dio. H� esperan�a para uma professora num pa�s que precarizou a educa��o, as leis trabalhistas, os sindicatos, os movimentos sociais, as greves? Em que manifestantes fascistoides atacam a escola e h� fuga de c�rebros para o exterior, deixando aqui um “imp�rio da mediocridade”? Essa � a grande li��o do livro  “O quarto canal”: fazer com que o poder transformador da literatura propicie ao leitor reflex�es sobre que pa�s � este. E tamb�m mostrar como a educa��o e a leitura s�o rem�dios poderosos para as dores causadas pela ignor�ncia, pela estupidez, pela indiferen�a, pela opress�o....

TRECHO

“– Fabr�cia, preciso te agradecer. Claro que a 'culpa' n�o � sua, mas suas aulas est�o sendo fundamentais pra me abrir os olhos. Acabo de me separar do pai dos meus filhos. Voc� n�o calcula com que dor estou descobrindo, n�o apenas o tanto que era infeliz, mas que nunca havia sido. Aquele homem 
nunca me respeitou, sempre me tratou como uma crian�a tola e burra. Nunca me amou como eu queria e merecia. Ele s� me mantinha sob seu cabresto, me usava sem afeto como empregada, como f�mea, e olhe l�... �, meu pai, estive nessa luta a� nas �ltimas semanas, mas agora me libertei e entendi que posso ser feliz. Mesmo j� estando velha e passa do tempo pra essas coisas.

- Que coisas, Nicete? Voc� � bonita, inteligente e dona do seu nariz. Ainda pode, sim, buscar o que quiser, seja profissional, seja afetivamente. N�o permita que os discursos rancorosos de um machista te toquem nem te tolham. V� se ser feliz!

O abra�o apertado e sincero daquela mulher me fez ganhar o dia, o m�s, o ano. Se tenho que passar pelo calv�rio que estou passando diante do avan�o da repress�o e da escurid�o, respostas como a de Nicete iluminam de esperan�a a a��o do professor.”



“O QUARTO CANAL”
.Clara Arreguy
.Outubro Edi��es
.Edi��o bil�ngue
.164 p�ginas
.R$ 45 (impresso)
.R$ 26 (e-book)


Entrevista

CLARA ARREGUY / Escritora

“Tem que malhar o c�rebro tamb�m”

Como surgiu a inusitada ideia de associar as dores de um inc�modo tratamento dent�rio �s dores da dura rotina de uma professora, �s voltas com machismo, negacionismo e preconceitos? 

Assim como o romance trafega entre esses dois trilhos, as ideias tamb�m nasceram em paralelo. Ao constatar como o respeito � educa��o e aos professores ia se esfacelando no Brasil, decidi escrever algo em defesa desse bin�mio. A hist�ria da professora assediada por um aluno com as caracter�sticas que voc� descreve me veio ao conversar com uma mo�a que conheci num caf�, aqui em Bras�lia.

Ela me contou que a cadeira que ministrava, de sociologia, teria que mudar de nome por press�o de alunos. Eles consideravam socialista ou comunista tudo que contivesse “social” no nome. E por fim a parte “odontol�gica” da trama nasceu ali, na cadeira do dentista, onde passei boa parte da vida sofrendo (risos).

Num trecho do livro, Fabr�cia fala que passou a vida sonhando e que acordou desse sonho com professores comprometidos com o aluno, com seres humanos integrais, mentes e almas valorizados inteiramente, includente de pobres e pretos. S� a educa��o salva o Homo sapiens da aniquila��o? 

Com certeza! N�o h� sa�da sem a valoriza��o da pessoa integral, via educa��o, forma��o humana de base, forma��o profissional complementar, conhecimento cient�fico, entendimento do mundo, das coi- sas. A filosofia, a hist�ria, as ci�ncias, a leitura, a literatura, tudo isso faz desenvolver a intelig�ncia, a busca de solu��es para os problemas, alento contra as dores que qualquer ser humano vivencia pela finitude e pela pr�pria fragilidade da vida. E a atual era da pandemia comprova isso com tanta clareza!

Uma das mensagens do seu livro � o est�mulo � leitura. “O quarto canal” tem narrativa engajada. A literatura deve ter esse papel de abrir consci�ncias, al�m do mero entretenimento?

A literatura n�o tem que ser engajada em mensagens. Tem que ser boa literatura. Mas ela pode, sim, falar da amplitude das quest�es huma- nas. Como disse acima, precisamos de filosofia, hist�ria, pensamento cr�tico, mente aberta, e a literatura contribui com isso porque, pra mim, � a “malha��o do c�rebro”. Eu falava isso pros colegas “bombados” quando eu frequentava academia de gin�stica: “Tem que malhar o c�rebro tamb�m, galera”. A leitura de livros leves, de entretenimento, tamb�m cumpre seu papel no fortalecimento da imagina��o, da empatia, da catarse. Adoro romances policiais, cr�nicas, biografias. Nem tudo � alta literatura, nem tudo tem pretens�o de mudar o mundo, mas tudo que emocionar o leitor cumpriu seu papel.


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