(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas POESIA

Reverbera��es: Carlos �vila revisita grandes obras da literatura brasileira

Poeta e jornalista faz uma releitura de obras singulares de nomes importantes da literatura brasileira do s�culo 20


12/03/2021 04:00 - atualizado 12/03/2021 14:29

A poesia brasileira do s�culo 20 inclui dois mineiros na sua linha de frente: Drummond e Murilo Mendes – muito estudados e j� traduzidos em v�rios idiomas. S�o poetas incontorn�veis, de leitura fundamental para o conhecimento da melhor poesia produzida entre n�s. 

Numa faixa intermedi�ria – marcos de refer�ncia – situam-se os tamb�m mineiros Em�lio Moura e Henriqueta Lisboa; e poetas de menor destaque, mas com dic��o e personalidade pr�prias, como Abgar Renault, Dantas Mota e Bueno de Rivera. Todos eles surgem num espa�o demarcado, que vai do modernismo � chamada Gera��o de 45 (ou seja, antes do per�odo aberto pelas vanguardas dos anos 1950/1960). 

Seguem aqui algumas notas sobre Em�lio, Henriqueta, Abgar, Dantas e Bueno – mais especificamente, sobre certos livros deles que chamam a aten��o pela singularidade e criatividade. Uma forma de relembr�-los e, talvez, despertar nos poss�veis leitores o interesse em conhecer suas obras, um tanto esquecidas hoje.

Poesia secreta

Descobri, em meio a volumes empoeirados, um velho e belo livro, quase um livro-objeto, de apar�ncia pr�xima a uma plaquete, folhas soltas em papel ingres – abrigadas, delicamente, entre capas cinza claro, cartonadas, com o nome do autor e o t�tulo impresso em tinta verde: Em�lio Moura – “O instante e o eterno”. Na margem de baixo, a pequena imagem de um hipocampo (um cavalo-marinho). Logo depois, a editora e a data: Edi��es Hipocampo, 1953.

Segue o texto do colof�o: “Composto a m�o, este � o d�cimo nono livro das “Edi��es Hipocampo” e acabou de imprimir-se a 1 de novembro de 1953, em Niter�i. Tiraram-se cento e dezesseis exemplares em papel ingres, autenticados pelo autor: de 1 a 100 para os subscritores, de I a X para o poeta, de A a F para os editores Geir Campos e Thiago de Mello. A ilustra��o (fora do texto) � de Farnese”.

A rara edi��o permite o reencontro com a poesia do l�rico modernista (quase um tardo-simbolista), de voz solit�ria e verbo sutil; interroga��es e sensa��es po�ticas evanescentes. Poesia l�mpida de Em�lio (1902-1971); tamb�m substancial e abstrata – bem definida nas palavras certeiras de Drummond: “Em Em�lio Moura, profissional da interroga��o, a poesia se elabora no eterno debru�ar-se sobre as alheias e pr�prias superf�cies. Ele nada sabe de sua condi��o, nem de onde vem, nem para onde vai”.

“O instante e o eterno” nos apresenta uma poesia quase secreta que, embora n�o fosse anacr�nica e passadista, situava-se, de alguma maneira “fora de seu tempo”. Em�lio usou formas fixas e tamb�m o verso livre, mas n�o se voltou para o humor nem praticou o chamado poema-piada; a ironia (ou autoironia) cr�tica e o mero coloquial – marcas do modernismo. Antes, seu tom � elevado e “grave”; uma po�tica metaf�sica. Como no soneto de t�tulo shakespeariano “To be or not to be”, com resson�ncias de Fernando Pessoa: 

“Desejo de sentir que ora n�o penso,
ou que penso e o que penso � n�o vivido.
A alma retrai-se; o esp�rito, suspenso,
det�m-se: � fio irreal interrompido”. 

Em�lio Moura: um poeta �nico; nem grande, nem pequeno – com sua medida e peso pr�prio. Indiferente a modas e movimentos, construiu uma obra s�bria e sombria (veja-se o seu “Itiner�rio po�tico”, da Ed. UFMG, lan�ado em 2002).

Percorrer as p�ginas soltas desse livro de Em�lio – que merece ser reeditado em fac-s�mile – � redescobrir uma voz e uma dic��o refinadas: um poeta do instante e do eterno.


Reverbera��es

Em 1976, Henriqueta Lisboa (1901-1985) lan�ou um pequeno livro, em edi��o bastante simples (na certa, custeada pela pr�pria autora e impressa na Gr�fica da Editora S�o Vicente, em Belo Horizonte). Trata-se de “Reverbera��es”, uma s�rie de pequenos poemas, de apenas quatro versos (ou linhas), que difere em muito do restante de sua obra. 

Henriqueta (que tamb�m foi ensa�sta e tradutora de Dante, Gabriela Mistral, Ungaretti e Jorge Guill�n, entre outros poetas) criou um padr�o formal nesse livro: c�lulas po�ticas desenvolvidas a partir de substantivos escolhidos e colhidos no dicion�rio, seguindo a ordem linear das letras do mesmo, indo do A at� o Z. Dessa maneira ela comp�e breves conjuntos de poemas – reverbera��es sonoro-sem�nticas.

E o que s�o reverbera��es? A pr�pria poeta inscreveu no p�rtico de seu livro os significados dos voc�bulos reverbera��o, reverberar e rev�rbero, segundo o “Novo dicion�rio Aur�lio”. Logo abaixo, h� uma ep�grafe do poeta futurista russo Khl�bnikov (1885-1922) com considera��es sobre a palavra – que para ele possu�a “uma vida dupla”: ora estava em fun��o po�tica (cristal sonoro), ora em mera fun��o comunicativa, a servi�o da raz�o.  

Reverbera��es s�o reflexos (de som, luz ou calor), propaga��es e incid�ncias; no caso desse livro de Henriqueta, reverbera��es de palavras umas nas outras, resultando em imagens po�ticas. Um exemplo:


FULGOR

Olhos cintilantes
                               de alerta 
ao fasc�nio
                      da descoberta

Henriqueta cria poemas brev�ssimos, brilhos verbais sobre a p�gina que v�o compondo uma sequ�ncia po�tica; uma cadeia ou entrela�amento de imagens que, afinal, resultam num quase poema longo composto de fragmentos luminosos. A leitura pode ser feita de maneira convencional ou linear, ou mesmo ao sabor do acaso, com o leitor pulando as p�ginas inteiramente � vontade, indo adiante e voltando, ali�s, como muita gente gosta de ler livros de poesia. Cada fragmento � uma surpresa, um flash po�tico.

“Reverbera��es” merecia uma reedi��o em separado (embora integre a edi��o das poesias completas de Henriqueta, editada pela Livraria Duas Cidades, em 1985, e, mais recentemente, tenha sido inclu�do no primeiro volume das “Obras completas”, lan�ada pela editora Peir�polis). Trata-se de um livro diferente na trajet�ria dessa poeta moderna, mas que manteve sempre em sua obra um acento neossimbolista – tanto no conte�do, quanto na forma. Esse livro � um diamante raro, ainda a ser devidamente lapidado pelos estudiosos e cr�ticos. Traz uma poesia transl�cida e minimalista. Versos (ou linhas) que levitam: “voar de leves/neblinas claras/nas vac�ncias/da madrugada”.


Sofotulafai 

O leitor deve estar se perguntando o que quer dizer essa palavra a� no intert�tulo. Com toda raz�o. Ela � estranha e longa. “Sofotulafai” � o t�tulo de um livro-poema do poeta e tradutor Abgar Renault (1901-1995) – trata-se do nome de uma cidade da �sia. Ou seja, desde o t�tulo o volume j� se coloca sob o signo do estranhamento.

Segundo o colof�o, o livro foi escrito em 17, 18, 26 e 27 de agosto de 1951, mas s� foi publicado em 1972, numa edi��o da Imprensa da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Dessa edi��o foram tirados, em papel Chambril, 40kg, 400 exemplares, fora do com�rcio, assinados pelo autor. A bonita e elegante publica��o (hoje, uma raridade bibliogr�fica) � toda ilustrada por criativos desenhos/grafismos concebidos pelo artista pl�stico M�rcio Sampaio.

Identificado como um autor da gera��o modernista, Abgar Renault nunca se encaixou de fato nela. Foi um poeta que sempre manteve uma individualidade marcante e uma originalidade peculiar. Profundo conhecedor do idioma e da arte po�tica, Abgar foi um ex�mio sonetista, um raro artes�o do verso e das formas fixas (sua obra po�tica foi editada pela Record, em 1990). 

Em “Sofotulafai” surpreendeu todos ao conceber um poema longo que consegue unir tradi��o e experimentalismo a um s� tempo. Segundo Drummond, “Sofotulafai” � um “estranho, extraordin�rio poema de sabor cl�ssico/vanguardista”. Abgar utiliza uma grafia antiga com letras dobradas e palavras sem acento (mysteriosas; nocturnas; colloquios etc.), mas incorpora elementos sonoros e visuais (chega at� o caligrama, � maneira de Apollinaire), mistura o portugu�s com outras l�nguas (o franc�s e o ingl�s), funde e inventa voc�bulos – enfim, torce e contorce as palavras. Ali�s, estas s�o o leitmotiv do longo texto po�tico de Abgar. 

Seu tema � a pr�pria palavra, a vida e o mundo refletidos no objeto livro. Inclusive, h� at� um di�logo entre livros, em meio a outros objetos, numa biblioteca-escrit�rio. Leia-se, por exemplo, este trecho (com a sua peculiar e anacr�nica grafia, aus�ncia de certos acentos e letras dobradas):

Conversam livros fr�volos e sabios,
jorram senten�as de invis�veis labios: 
- “H� quatros annos cheguei e adormeci;
n�o me tocou, jamais me tocar�.
Para que fui comprado ainda n�o sei...”
- “Pois eu j� fui aberto muitas vezes,
lido e relido, e sei que sou amado”.

Substantivos e verbos volteiam nas p�ginas, vogais e consoantes unem-se e separam-se no espa�o branco, dando forma a um poema bab�lico, uma “instala��o” verbal entre capas onde “os homens vivem, morrem por signais;/tudo tem seu signal, ou raso ou fundo”.  At� que o mundo acabe e silencie, como proclamam os versos finais de Abgar neste provocante e criativo “Sofotulafai” – digno de ser reeditado, � claro, em fac-s�mile, com os tipos e imagens originais que o caracterizam como um livro �nico, extraordin�rio como observou Drummond.


O poeta de Aiuruoca 

“Este � o Pa�s das Gerais./N�o veio das estradas do Sul,/Nem se formou no Setentri�o./Quando Ma�aranduva se engravidou,/Entre rosas e flores nas rochas,/O peito da terra empolou,/E rios subiram e n�o desceram./Desde ent�o, o Pa�s das Gerais,/Que era manso e tranquilo/Como um leito, se tornou severo/E duro como um cepo” – verbo & voz de Dantas Mota (1913-1974), o poeta de Aiuruoca, pequena cidade do sul de Minas: o nome � de origem tupi – Ajuruoka: ajuru (papagaio), oka (casa); ou seja, “casa de papagaio”.

Desconhecido e esquecido, Dantas � autor, entre outros, dos livros “Elegias do Pa�s das Gerais” (de onde foram retirados os versos acima) e “Primeira Ep�stola de Jm. Jz� da Sva. Xer., o Tiradentes – aos ladr�es ricos”. O poeta foi advogado muito atuante em todo o Sul de Minas e no Vale do Para�ba; viveu sempre em Aiuruoca, mas mantinha contato com escritores no Rio, em S�o Paulo e Belo Horizonte – sua obra completa saiu pela Ed. Jos� Olympio, em 1988.

Dantas criou um estilo �nico: versos longos e derramados – influenciados pelos vers�culos b�blicos, com um “ritmo lento e severo”, segundo Drummond –, que escorrem como as �guas barrentas do Rio S�o Francisco, forte presen�a na sua obra. Trata-se de uma poesia irregular, com seus altos e baixos; um tanto estranha, r�stica e tel�rica, com conte�do social (n�o meramente ideol�gico).

Biografemas: Dantas curtia muito um papo, regado a pinga e acompanhado por cigarros de palha (contava sobre suas andan�as de advogado, a cavalo, no entorno de Aiuruoca). Embora fosse uma figura culta – leitor de autores sofisticados da literatura universal –, tinha o jeito simples do homem da ro�a, inclusive na maneira de falar (era uma esp�cie de “caipira” de sabedoria).

Al�m de Drummond, a poesia de Dantas chamou a aten��o de, entre outros, M�rio de Andrade, S�rgio Milliet e Affonso �vila, que escreveram sobre ela. Sua linguagem impura, que incorpora lodo e limo, pede ainda estudo e avalia��o cr�tica. � desafiante e dif�cil para o leitor – dura como um cepo. 


Pasto de pedra 

Bueno de Rivera (1911-1982) � um poeta pouco falado e lembrado, pouco lido (assim como Abgar Renault e Dantas Mota); sua obra � pequena – publicou apenas tr�s livros. Bueno estreou em 1944 com o volume “Mundo submerso”, integrando a chamada Gera��o de 45, que se contrapunha � modernista, retomando formas mais tradicionais (o soneto e a elegia, por exemplo) e alguns elementos, principalmente no plano sem�ntico, do simbolismo.

Pouco tempo depois da publica��o do seu primeiro livro, Bueno lan�ou “Luz do p�ntano” (1948), mantendo a dic��o e tom po�tico (inclusive, uma tend�ncia surrealista). Ficou em sil�ncio por uns 20 anos e, surpreendentemente, reapareceu em 1971 com o volume “Pasto de pedra”, no qual renovou sua poesia. O poeta deu um salto criativo, atualizou sua produ��o, sob o impacto das vanguardas dos anos 1950/60; tamb�m se voltou referencialmente para Minas Gerais, seguindo a trilha aberta por Drummond e por Guimar�es Rosa (este, na prosa), consolidada por Affonso �vila no seu “C�digo de Minas”, de 1969, do qual sofreu, seguramente, alguma influ�ncia. 

“Pasto de pedra” foi uma boa surpresa; na �poca de seu lan�amento, chamou a aten��o da cr�tica e dos poetas mais jovens. Com forte acento tel�rico (temas e motivos mineiros como o barroco e a Inconfid�ncia – ou ainda, elementos da pecu�ria e da minera��o), o livro deixava transparecer o desejo de renova��o da linguagem buscado por Bueno. 

H� um cuidado evidente com a organiza��o formal dos poemas – a procura de uma arquitetura pr�pria do verso – e a utiliza��o consciente e premeditada de recursos como a alitera��o, a paronom�sia, enfim, o gosto pelos jogos (e mesmo inven��es) de palavra; h� tamb�m a explora��o do ritmo, da musicalidade e at� mesmo da visualidade (por ex., no poema “Felipe e os cavalos”, onde o galope dos cavalos arrastando Felipe dos Santos � traduzido pelas palavras espacializadas na p�gina).

Nesse livro, a poesia de Bueno ganha em s�ntese e objetividade, o verso � descarnado e depurado (muitas vezes � “n�o verso” – a simples palavra isolada com seu potencial sem�ntico-sonoro): “Talha/corta/sulca/vinca/finca/fende/entalha/bate bate/rebate/toc-toc” (no poema “Aleijadinho: mart�rio e solid�o”). Ou ainda: “�rvore/sapo/lobo/grilo/rola/brejo/rio/quem foi Louren�o?” (“O fantasma do Cara�a”).

Publicado em 1971, numa edi��o bastante simples da Imprensa Oficial de Minas Gerais, “Pasto de pedra” merece uma reedi��o cuidada, � altura da poesia que abriga em suas p�ginas. Trata-se de um livro singular na trajet�ria de Bueno de Rivera, poeta que mostrou � �poca capacidade de renova��o e artesania verbal. A poesia de Bueno ainda navega “no mar de Minas/mar sem porto/polimorfo”. As novas gera��es precisam conhec�-la.

*Carlos �vila � poeta e jornalista. Autor de “Bissexto sentido”, “�rea de risco” e “Poesia pensada”, entre outros. Ex-editor do Suplemento Liter�rio de Minas Gerais.    


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)