
Quando em 8 de janeiro, exatamente uma semana ap�s Luiz In�cio Lula da Silva (PT) tomar posse como presidente da Rep�blica pela terceira vez, manifestantes golpistas fizeram da capital federal um cen�rio de destrui��o e vandalismo, o esfor�o de contar a hist�ria do Brasil viu-se presenteado com eventos marcantes e suficientemente interligados para que a d�cada que separa 2013 e 2023 se tornasse um recorte preciso para entender a din�mica pol�tica e social do pa�s.
Em “Uma crise chamada Brasil: a quebra da nova rep�blica e a erup��o da extrema direita”(F�sforo Editora, 2023), o jornalista Conrado Corsalette se debru�a sobre os conturbados dez anos em que o pa�s experimentou de tudo um pouco: a subleva��o das ruas; quatro presidentes; um impeachment; transi��es da esquerda � direita, � extrema-direita e o retorno � esquerda; tentativas de golpe; crise econ�mica; e at� mesmo uma remilitariza��o do poder.
Montado a partir de uma miniss�rie do ‘Politiqu�s’, podcast do jornal Nexo, o livro ainda carrega em suas 340 p�ginas bastante de seu formato original, com muitas entrevistas e abertura para aspas longas de estudiosos, pesquisadores, jornalistas e atores pol�ticos que participaram ativamente da vida p�blica da �ltima d�cada no pa�s. Corsalette divide a an�lise e rememora��o deste per�odo contempor�neo de nossa hist�ria em dez cap�tulos, que s�o tamb�m dez temas e prismas diferentes para tentar entender o que se passou na d�cada.
O livro come�a com uma contextualiza��o do cen�rio econ�mico e pol�tico internacional e como a crise de 2008, a primavera �rabe e ascens�o de movimentos conservadores em pot�ncias ocidentais (como o Brexit no Reino Unido e a elei��o de Trump nos Estados Unidos) impactaram o cen�rio brasileiro. A partir do segundo cap�tulo a obra entra de vez na hist�ria dos �ltimos dez anos no Brasil e esse trajeto se inicia a partir das manifesta��es populares. O perfil dos manifestantes e as pautas das ruas s�o esmiu�adas desde as jornadas de junho de 2013, passando pelos atos pr� e contra a queda de Dilma Rousseff (PT) at� a chegada de Jair Bolsonaro (PL) ao poder.
Essa obedi�ncia � cronologia dos fatos segue ao longo do livro, que, a cada novo cap�tulo, volta � 2013 para contar os fatos a partir de uma lente diferente. O resultado � uma obra bem-organizada e que permite ao leitor revisitar os momentos escolhendo a abordagem tem�tica. Ela pode ser econ�mica, tratando sobre a crise no governo Dilma, o teto de gastos de Temer, o liberalismo feroz sob Paulo Guedes e o retorno do pa�s ao mapa da fome; jur�dica, com uma rememora��o da ascens�o e queda da Opera��o Lava-Jato e a pris�o de Lula; pol�tica, com a crise da classe e as articula��es que derrubaram Dilma e permitiram que Bolsonaro cumprisse seu mandato com apoio do Congresso; militar, com o retorno dos generais aos altos postos de Bras�lia; ideol�gica, com a erup��o do conservadorismo e extrema-direita no pa�s; ou at� mesmo religiosa, com os altares se tornando palanques poderosos nas �ltimas elei��es.
Em entrevista ao Pensar, Corsalette fala sobre o processo de transforma��o do podcast em livro f�sico, como foi feita a escolha pela organiza��o dos fatos e como a explos�o da extrema direita tornou-se fator marcante na hist�ria recente do Brasil. O jornalista tamb�m fala sobre como espera que o livro ‘envelhe�a’ nas pr�ximas d�cadas.
"O importante � lidar com a complexidade do que aconteceu com o Brasil"
CONRADO CORSALETTE
O livro nasce a partir da produ��o de uma s�rie do podcast Politiqu�s, do jornal Nexo. O texto � marcado por muitas inser��es de falas de entrevistados que aparecem repetidas vezes comentando sobre assuntos diversos, o que remete ao formato original do conte�do. Como foi o processo de transformar o conte�do em �udio em um livro escrito?
O trabalho de amarrar as entrevistas numa narrativa clara — para que as vozes dos entrevistados fossem elementos complementares de an�lise — foi todo feito quando escrevi os roteiros da miniss�rie. Foram tr�s meses para escrever os dez epis�dios. Quando veio a ideia do livro, de cara j� sabia que n�o seria necess�rio mexer na estrutura. O que fiz foi gastar mais tr�s meses para atualizar os fatos, explicar melhor alguns conceitos mais complicados — algo que a palavra escrita permite — e me colocar mais no texto, avan�ando em algumas conclus�es que n�o existem no podcast.
Ainda sobre a quest�o do formato, voc� acredita que a transforma��o de um podcast em um livro f�sico de mais de 340 p�ginas pode ser uma forma de materializar e apresentar ao p�blico a extens�o do trabalho de pesquisa e jornalismo envolvido na produ��o em �udio?
Sim. Quando o podcast foi ao ar, muitos amigos diziam que sentiam vontade de ler os roteiros. Afinal, aconteceu tanta coisa, de forma t�o acelerada, em processos t�o complexos e extremamente novos por causa das redes sociais, que oferecer isso ao p�blico em forma de palavra escrita d� uma dimens�o bem acabada do que foi todo esse intenso trabalho, que s� foi poss�vel, ali�s, por causa de duas outras jornalistas, Malu Delgado e Beatriz Gatti, que me ajudaram a entrevistar as 53 fontes que aparecem no podcast e no livro.
O livro segue uma sequ�ncia cronol�gica para contar os acontecimentos da �ltima d�cada, mas retoma o in�cio do recorte de 2013 a 2023 a cada mudan�a de cap�tulo, que altera tamb�m o tema central. Como foi feita a escolha de discutir os acontecimentos do per�odo nesses moldes?
Eu sabia desde o come�o que seria imposs�vel contar a hist�ria de forma totalmente cronol�gica. Isso porque foram tantos plot twists na pol�tica que, se eu fosse fazer isso numa sequ�ncia linear, o ouvinte (e depois o leitor) ficaria maluco. N�o daria, por exemplo, para juntar num mesmo cap�tulo a an�lise sobre a Lava Jato e o resgate do hist�rico da interfer�ncia dos militares na disputa de poder brasileira. N�o ia fazer bem nem uma coisa, nem outra. Por isso resolvi separar e construir uma narrativa conduzida por temas, em que cada aspecto dessa “crise chamada Brasil” � tratado em toda sua complexidade. Os avan�os e recuos no tempo permitem que o leitor reconstrua aquela d�cada aos poucos, cap�tulo por cap�tulo, colocando devagar as pe�as no quebra-cabe�a, at� chegar ao quadro final, em que trago reflex�es sobre o futuro da Nova Rep�blica.
O livro come�a com uma an�lise econ�mica, passa pelos movimentos de rua e discute as movimenta��es pol�ticas que marcaram as jornadas de junho de 2013, a reelei��o e queda de Dilma Rousseff, a ascens�o de Bolsonaro e o militarismo at� a volta do PT ao poder. H� tr�s cap�tulos que tratam sobre a extrema-direita, a invas�o militar no alto escal�o da pol�tica e a interfer�ncia religiosa neste cen�rio. Voc� acredita que, se fosse necess�rio resumir a �ltima d�cada no Brasil, o crescimento da direta sobre as bases da religi�o e das for�as armadas seria o ponto principal?
A “erup��o da extrema direita”— para citar o subt�tulo do livro — s� � explic�vel se levarmos em conta a soma dos cap�tulos do livro. � preciso entender a crise do capitalismo a partir do crash financeiro de 2008. � preciso entender a frustra��o de uma gera��o que viu quebrada a promessa de prosperidade cont�nua. � preciso entender como as redes sociais mudaram totalmente a din�mica de organiza��o pol�tica e social, das pot�ncias do Ocidente aos pa�ses da Primavera �rabe. Sendo mais espec�fico em rela��o ao Brasil: � preciso entender que os valores da Nova Rep�blica — que se propunha a sanar d�vidas hist�ricas do pa�s e afastar os militares da disputa de poder — foram sendo solapados. N�o � que os protestos de rua contra o aumento de vinte centavos na passagem do �nibus em S�o Paulo em 2013 levaram � invas�o dos pr�dios dos Tr�s Poderes em Bras�lia em 2023. Longe disso. A todo tempo havia uma contenda, e o pa�s poderia seguir para um lado ou para o outro. O problema � que a popula��o — estimulada por uma leitura rasa (e muitas vezes politicamente interessada) da imprensa — aceitou a resposta simplista da Lava Jato, como se tudo fosse culpa da corrup��o. Os pol�ticos, perdidos, estavam dispostos a atropelos — como o PSDB pedindo auditoria das urnas em 2014. E estavam tamb�m apavorados com a Lava Jato. Da� tentaram estancar a sangria com um impeachment tirado da cartola em 2016. Os movimentos da nova direita, alinhados � direita tradicional, ca�ram no v�rtex bolsonarista em 2018. Afinal, era Bolsonaro quem estava preparado para fazer pol�tica no mundo digital; era Bolsonaro que tinha um discurso que ca�a como uma luva nos algoritmos radicalizantes; era Bolsonaro que representava o sentimento antissistema espalhado n�o s� pelo Brasil, mas pelo mundo inteiro. A ajuda direta dos militares, que viram ali uma oportunidade de voltar a comandar o Brasil, e o apoio de boa parte dos evang�licos — que n�o s�o un�ssonos, vale lembrar — vieram ent�o dar mais estrutura, operacional e popular, � explos�o extremista no pa�s.
Imagino que o livro j� era uma ideia em gesta��o no in�cio deste ano. Como os atos golpistas de 8 de janeiro alteraram a produ��o do livro? De certa forma, como eles tamb�m ajudam a justificar a relev�ncia deste recorte 2013 - 2023 como uma d�cada crucial e �nica na hist�ria brasileira?
Na verdade n�o alteraram muita coisa. Foi preciso apenas atualizar os fatos. O �ltimo epis�dio da miniss�rie foi ao ar no fim de setembro de 2022 — antes da elei��o de Luiz In�cio Lula da Silva para o terceiro mandato. J� a narrativa do livro vai at� fevereiro de 2023, ou seja, depois da invas�o dos pr�dios dos Tr�s Poderes. Tudo o que aconteceu nesses cinco meses simplesmente confirmou e at� arrematou o sentido excepcional dessa d�cada. A Rep�blica j� estava quebrada. A erup��o j� tinha acontecido. Os extremistas, � claro, deram um passo ousado e perigoso com o quebra-quebra em Bras�lia. S� que tamb�m n�o d� para tirar da conta uma sensa��o anterior de que algo assim poderia de fato acontecer no Brasil. Afinal, tinha acontecido dois anos antes nos Estados Unidos com os trumpistas. E a extrema direita brasileira, �s vezes, � pouco original quando se trata de estrat�gias para desestabilizar a democracia.
O livro aborda bem como a percep��o sobre alguns epis�dios se alterou ao longo do tempo, como a ades�o popular � Opera��o Lava-Jato e ao impeachment de Dilma Rousseff. Voc� avalia que foi se tornando mais delicado tratar de forma anal�tica sobre os temas � medida em que eles se aproximavam do per�odo atual? Como espera que se d� o envelhecimento de “Uma crise chamada Brasil: A quebra da nova rep�blica e a erup��o da extrema direita”?
� meio inevit�vel que, quanto mais a quente os fatos s�o analisados, mais chances existem de voc� perder alguma nuance. Mas o importante, a meu ver, � lidar com a complexidade do que aconteceu com o Brasil. Acredito ter escolhido bem os eixos tem�ticos que d�o conta dessa complexidade. Eu n�o sou um historiador, n�o quero ocupar esse lugar. Eu sou um jornalista que viveu todos esses momentos dentro e fora das reda��es, seja como rep�rter, seja como editor. E como � um assunto que me interessa, minha cabe�a nunca deixou de elaborar cada passo da crise. Com o acr�scimo das perspectivas dos 53 entrevistados — entre ju�zes, ministros, parlamentares e especialistas de �reas diversas —, acredito que o livro acaba por ser um documento honesto e original a respeito desses tempos loucos.

“UMA CRISE CHAMADA BRASIL: A QUEBRA DA NOVA REP�BLICA E A ERUP��O DA EXTREMA DIREITA”
Conrado Corsalette
F�sforo Editora
368 p�ginas
R$ 79,90
