
Uma longa viagem em todos (e por todos) os sentidos, com mergulho nas �guas profundas das palavras e voo �s constela��es de arte, hist�ria, conv�vio social e outros temas que seduzem o leitor da primeira � �ltima linha. Quem l� “Em busca do tempo perdido” (“� la recherche du temps perdu”), do escritor franc�s Marcel Proust (1871-1922), tem tudo isso permeado de emo��o, ironia, imagina��o e muito mais a descobrir. Afinal, a obra monumental, escrita entre 1909 e 1922, se divide em sete livros. Esta sexta-feira, 18 de novembro, quando s�o lembrados os 100 anos da morte do autor, nascido em Paris, pode ser um bom dia para come�ar a ler, planejar a leitura ou entender um pouco sobre a vida e a obra de Proust.
Para in�cio de conversa, uma boa not�cia sobre a obra, ambientada no final do s�culo 19 e in�cio do 20. A Companhia das Letras manda para as livrarias em dezembro e j� tem pr�-venda dos dois livros iniciais, ambos com novas tradu��es: o primeiro, “Para o lado de Swann”, por Mario Sergio Conti, e o segundo, “� sombra das mo�as em flor”, a cargo de Rosa Freire d’Aguiar. Nessa editora, o t�tulo geral � “� procura do tempo perdido”.
Como os sete volumes j� tiveram outras tradu��es e edi��es, o leitor pode encontr�-los tamb�m com os t�tulos “No caminho de Swann”, “� sombra das raparigas em flor”, “O caminho de Guermantes”, “Sodoma e Gomorra”, “A prisioneira”, “A fugitiva” e “O tempo recuperado”.
Para Mario Sergio Conti, o maior desafio ao traduzir a obra de Proust est� em preservar “o estilo fluido e sincopado” do romance, mantendo a pontua��o e a espiral da prosa. “E fazer com que o livro continue novo como quando foi lan�ado, mas sem recorrer a constru��es demasiado artificiais.” No trabalho de tradu��o, Conti usou a �ltima edi��o da Pl�iade, “que � a mais fiel aos cadernos manuscritos de Proust”.
Marcas humanas
Por que ler a grande obra de Proust em 2022? Segundo Conti, por se tratar de um cl�ssico da literatura que diz muito sobre a atualidade. “Fala de uma sociedade em transforma��o. De amor, ci�me, sexo, preconceito, arrivismo, da passagem do tempo e das marcas que ele deixa nas pessoas.”
Quem l� da primeira � �ltima frase entra, sem d�vida, num universo de encantamento – e cada um tem uma lembran�a. “� inesquec�vel o epis�dio em que o narrador recupera o tempo perdido numa noite de inverno, em Paris, ao tomar ch� com madalenas. Ele revive a inf�ncia e a cidadezinha onde passava f�rias”, afirma Conti. Pode ser que o leitor mergulhe de tal forma na narrativa que acredite piamente na exist�ncia dos personagens, mas o tradutor explica que todos foram inventados. “Mas algumas das suas caracter�sticas foram tiradas de pessoas reais que Proust conheceu.”
Para quem vai abrir o primeiro livro, vai a dica do tradutor. “Por servirem como uma esp�cie de protofonia dos sete volumes, as primeiras p�ginas s�o as mais estranhas, porque o narrador est� em v�rios tempos. Mas n�o desista: depois de acostumar-se, a leitura � tranquila e enriquecedora.”
Novas palavras
Muito j� se publicou sobre a vida e a obra de Marcel Proust, e as leituras complementares, vale destacar, s�o fundamentais para se compreender melhor o que ele escreveu. Ao chegar ao ponto final, o leitor, com certeza, vai querer saber mais sobre a �poca vivida pelo narrador da hist�ria (seria ele o pr�prio Proust?), Albertine, Gilberte, Saint-Loup, sr. de Charlus, tia L�onie, Odette e dezenas de outros personagens que, sozinhos ou juntos e misturados, comp�em a obra, traduzem seu tempo, apresentam as cidades da inf�ncia e da maturidade, falam de pol�tica, m�sica, arte, literatura, comida e lugares, sexo. Traem, colecionam amantes, fogem e desaparecem, calam-se e vociferam, enfim, preenchem seus dias e noites. L� pelas tantas, para surpresa do leitor, surge at� a men��o a um m�dico brasileiro: “Subitamente lembrei-me: aquele mesmo olhar eu j� vira nos olhos de um m�dico brasileiro que pretendeu curar minhas crises de asma com inala��es, absurdas, de ess�ncia de plantas”.
Para Proust, arte era fundamental para viver, respirar e entender o mundo, e, bebendo nessa fonte inesgot�vel de sabedoria, o professor de filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro Roberto Machado (1942-2021), que estudou na Fran�a e dedicou uma d�cada a estudar a obra do franc�s, escreveu no rec�m-lan�ado “Proust e as artes” (Todavia). Vejamos sua interpreta��o sobre “Recherche”, como trata intimamente essa refer�ncia da literatura mundial:
“‘Em busca do tempo perdido’ tem como objetivo principal apresentar a descoberta da voca��o liter�ria de seu protagonista. E uma das provas da genialidade de seu autor � baseando sua constru��o num paradoxo: o romance est� quase todo terminado, quando, tendo descoberto sua voca��o liter�ria e exposto sua teoria da arte, o narrador anuncia que ele vai ser come�ado”.
E mais: “Meu objetivo principal � mostrar que h� na ‘Recherche’ uma est�tica, no sentido de uma reflex�o sobre a contempla��o e a cria��o art�stica, que faz parte da pr�pria cria��o liter�ria de Proust. Al�m disso, tamb�m pretendo mostrar que essa est�tica est� intrinsecamente ligada a uma metaf�sica, ou a uma ontologia, pois considera que a verdadeira arte deve dar conta da ess�ncia da realidade. Valorizo, a esse respeito, a afirma��o de Proust de que ‘o ponto de vista metaf�sico predomina em toda a obra’”.
Bateu no paladar
No meio desse turbilh�o de pensamentos, palavras e obras, imposs�vel n�o falar da madeleine (madalena), o biscoito oferecido pela m�e ao narrador, com um pouco de ch�. � uma passagem que entrou para a hist�ria como “mem�ria involunt�ria”, trazendo lembran�as da inf�ncia.
Eis o texto: “Ela ent�o mandou buscar um desses biscoitos curtos e rechonchudos chamados madeleines, que parecem ter sido moldados na valva estriada de uma concha de S�o Tiago. E logo, maquinalmente, acabrunhado pelo dia tristonho e a perspectiva de um dia seguinte igualmente sombrio, levei � boca uma colherada de ch� onde deixara amolecer um peda�o de madeleine. Mas no mesmo instante em que esse gole, misturado com os farelos do biscoito, tocou meu paladar, estremeci atento ao que se passava de extraordin�rio em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem a no��o de sua causa.”
Biografia
Os dados biogr�ficos a seguir est�o na edi��o com o t�tulo de “Em busca do tempo perdido” (Nova Fronteira, 2016) e s�o de autoria do tradutor Fernando Py. Marcel Proust, filho do m�dico Adrian Proust e da sua esposa, Jeanne Weil, de origem judia, nasceu em Paris, em 10 de julho de 1871. De complei��o fr�gil, asm�tico desde os 9 anos, a m�e o cercou de cuidados excessivos na inf�ncia. Fez seus estudos no Liceu Condorcet, entre 1882 e 1889, e depois estudou direito e ci�ncias pol�ticas. Colaborou no jornal do liceu, La Revue Lilas, e passou a frequentar os sal�es da senhora �mile Straus e da senhora Madeleine Lemaire, � mesma �poca.
Publicou seus primeiros trabalhos liter�rios nas revistas Le Banquet, de que foi um os fundadores, e Litt�rature et Critique, em 1892. Estreou em livro em 1896 com “Les plaisirs et les jours” (“Os prazeres e os dias”). O volume foi prefaciado pelo escritor Anatole France. Era uma miscel�nea de cr�nicas, contos, poemas em verso e prosa; embora as pe�as j� mostrassem algo do futuro escritor de “Em busca de tempo perdido”, revelavam sobretudo a influ�ncia de Anatole France e um certo simbolismo decadentista, pr�prio da �poca.
De qualquer modo, a quest�o do tempo e das invers�es sexuais j� se tornam suas principais preocupa��es. Entre 1895 e 1899, Proust escreveu um longo romance, “Jean Santeuil”, que deixou inacabado e s� foi publicado em 1952. Nesse esbo�o de “Em busca do tempo perdido”, j� est�o delineados n�o s� aspectos de sua obra-prima como at� cenas inteiras retomadas posteriormente. Mas Proust ainda n�o � analista profundo que se revelar� depois. Est� apenas tratando o assunto e a linguagem. O descobrimento da obra do ensa�sta e esteta ingl�s John Ruskin (1819-1900) foi fundamental: Proust traduziu a “B�blia de Amiens” desse, e assumiu o gosto de Ruskin pelas catedrais g�ticas – cuja arquitetura basicamente sim�trica lhe dar� a estrutura de sua obra-prima.
Mas ainda est� experimentando: 1905-1907, escreveu outro livro, mais fragment�rio e igualmente inacabado, “Contre Saint-Beuve” (publicado apenas em 1954). Esse j� � um esbo�o mais parecido com a futura obra. A an�lise se aprofunda, embora muitas vezes s� indicada, sem desenvolvimento. Proust j� adquiriu um sentido maior de sua obra, faltando-lhe um todo coeso e que desse um tom de linguagem pr�pria ao conjunto. Em 1907, iniciou enfim a feitura da obra m�xima, “Em busca do tempo perdido”. Deve ter trabalhado no romance de forma bem exaustiva at� 1911, quando possivelmente deu por definitivo o primeiro da s�rie, “No caminho de Swann”. Nesse meio tempo, publicou na imprensa uma s�rie de pastiches, e, a partir de 1900, cessou toda a vida social para se consagrar exclusivamente � sua obra-prima.
“No caminho de Swann” foi publicado em 1913, ap�s ter sido recusado por quatro editoras. O �xito intelectual foi grande. Por�m, a irrup��o da Primeira Guerra Mundial, em 1914, interrompeu a possibilidade de novas edi��es. Durante a guerra, Proust remanejou a obra e lhe fez acr�scimos consider�veis. Nesse ano de 1914, morre seu secret�rio, Alfred Agostinelli, por quem Proust era apaixonado. A morte de Agostinelli lhe serviu de modelo para a morte da personagem Albertine, em “A fugitiva”.
Finda a guerra, publica-se “� sombra das mo�as em flor” (1918). O romance obteve o Pr�mio Goncourt de 1919, �nica l�urea conseguida pelo romancista em vida. Em 1920, � publicado “O caminho de Germantes-I” e, no ano seguinte, saem “O caminho de Germantes-II” e “Sodoma e Gomorra-I” em um volume. Recluso em casa, quase n�o deixando seu quarto forrado de corti�a para abafar os ru�dos da rua, Proust adoece, mal tendo for�as, no �ltimo ano de sua vida, para continuar a escrever e corrigir as provas de seus livros. Em abril de 1922, publica-se “Sodoma e Gomorra-II” em tr�s volumes. Proust rel� as provas de “A prisioneira” e sua sa�de se complica com uma bronquite seguida de pneumonia.
Poucos dias antes de morrer, aos 51 anos, termina-se a impress�o de “Sodoma e Gomorra-III” – “A prisioneira”. “A fugitiva”, com o t�tulo de “Albertine desaparecida”, foi publicado em 1925, e “O tempo recuperado”, em 1927.
Livro aberto
J� se passaram 100 anos da morte de Marcel Proust e tudo indica que sua exist�ncia continua como um livro aberto, com “p�ginas” mundo afora, incluindo Recife (PE). Em 9 de junho deste ano, em livro lan�ado na Fran�a, foi divulgado que o escritor teria mantido uma complicada rela��o amorosa com um su��o, Henri Rochat, e, para se livrar desse homem, teria recorrido a amigos poderosos a fim de despach�-lo para o Brasil.
Tudo come�a assim: convite feito, convite aceito, e Henri, que era gar�om em um hotel de Paris, foi viver na casa do escritor, em 1918. Em carta a um amigo, o banqueiro Horace Finaly, Proust confessa acreditar que o jovem su��o “ficaria apenas algumas semanas” e que “poderia ser seu secret�rio”. Conforme noticiou recentemente a imprensa, as cartas de Proust a Finaly fazem parte da rica heran�a liter�ria e epistolar que continua a aparecer regularmente na Fran�a em torno do autor.
As “Lettres a Horace Finaly” (“Cartas a Horace Finaly”) mostram que o escritor se arrependeu de seu convite ao su��o. "Como fica entediado em casa, 'fugiu' duas ou tr�s vezes e, infelizmente, n�o apenas perdeu peso, como tamb�m todo dinheiro que dei a ele", escreveu o autor na carta ao amigo banqueiro.
A vinda de Henri Rochat ao Brasil � tamb�m o ponto de partida para “O �ltimo romance de Proust” (Editora Ibis Libris), do escritor pernambucano Cl�udio Aguiar. No carnaval de 1972, em Olinda, portanto, 50 anos ap�s a morte de Proust, um trio se une para encontrar os “desaparecidos” manuscritos do franc�s e comercializ�-los na Europa, o que renderia uma boa fortuna por serem considerados um tesouro. Nesse roteiro, h� contrabandista de obras de arte, ex-combatente das Brigadas Internacionais na Guerra Civil espanhola, bailarina do famoso cabar� Moulin Rouge e um professor de latim.
“Para o lado de Swann” (primeiro volume da obra “� procura do tempo perdido”)
• Marcel Proust
• Tradu��o de Mario Sergio Conti
• Companhia das Letras
• 448 p�ginas
• R$ 144,90 e R$ 44,90 (e-book)
• Lan�amento em 7 de dezembro
“� sombra das mo�as em flor” (segundo volume da obra “� procura do tempo perdido”)
• Marcel Proust
• Tradu��o de Rosa Freire d’Aguiar
• Companhia das Letras
• 528 p�ginas
• R$ 124,90 (edi��o impressa) e R$ 44,90 (e-book)
• Lan�amento em 7 de dezembro
“Proust e as artes”
• Roberto Machado
• Tradu��o de Mario Sergio Conti
• Todavia Editora
• 236 p�ginas
• R$ 74,90 e R$ 49,90 (e-book)
“O �ltimo romance de Proust”
• Cl�udio Aguiar
• Editora Ibis Libris
• 274 p�ginas
• R$ 50
• Lan�amento em 1º de dezembro
“Em busca do tempo perdido (box)”
• Marcel Proust
• Editora Nova Fronteira
• Tradu��o de Fernando Py
• 2.472 p�ginas
• R$ 329,90
O prazer de ler em estado absoluto
A primeira vez em que ouvi falar sobre Marcel Proust, tinha l� pelos meus 11, 12 anos. Foi na aula do professor Davis Viana, at� um pouco parecido com o escritor franc�s, e, muito culto, formado em pedagogia, falava sobre m�sica, literatura, hist�ria, m�todos de estudo e por a� vai. Portanto, n�o me recordo exatamente de qual era a mat�ria lecionada, s� sei que aprendi muito – e alguns temas permanecem na nebulosa da mem�ria.
O professor caprichava na pron�ncia de “Proust”. Muitos anos mais tarde, numa mesa de bar, escutei Davis (sim, era nessa intimidade que j� o tratava) se esmerando no franc�s para citar “� la recherche du temps perdu” (“Em busca do tempo perdido”). E dizia palavras que, sinceramente, nem sabia da exist�ncia. Uma delas, alhures, povoa os nove volumes da obra monumental do autor, nascido em Paris.
Ir�nico e meio debochado, ainda mais depois de umas doses de “cacha-cola”, uma mistura de cacha�a com Coca-Cola, bem apreciada nos anos 1970, Davis contava partes dos primeiros dos sete livros, “No ca- minho de Swann” e “� sombra das raparigas em flor” (hoje mudado de raparigas para mo�as), com divaga��es sobre os extensos par�grafos, o ponto final sempre distante, a profus�o de personagens. Depois contava uma piada: um homem havia morrido sufocado, ao final da primeira p�gina, pela falta de v�rgulas. Pilh�rias.
Tudo isso me vem agora � cabe�a, me faz sorrir, e vejo na lembran�a do professor, falecido jovem, a “madeleine” necess�ria para eu redigir este texto. Explicando melhor: “madeleine” � um biscoito, que, ap�s mergulhado no ch�, toca o paladar do narrador da hist�ria e desperta as recorda��es da inf�ncia. “Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem a no��o de sua causa (...) J� n�o me sentia med�ocre, contingente, mortal. De onde poderia ter vindo essa alegria poderosa? Sentia que estava ligada ao gosto do ch� e do biscoito, mas ultrapassava-o infinitivamente, n�o deveria ser da mesma esp�cie. De onde vinha? Que significaria? Onde apreend�-la?”, escreveu Proust.
O tempo passou, como tinha de ser, e eu continuava sem ter lido Proust... Mas isso at� o final de julho, ao ter em m�os a cole��o em tr�s volumes, contendo os sete volumes, da Editora Nova Fronteira, com tradu��o de Fernando Py. Primeiro fiquei olhando, depois deslizei os dedos sobre os desenhos da capa antes de mergulhar de cabe�a e n�o soltar mais. Li de enfiada, como se diz, �s vezes indo e voltando, recorrendo ao dicion�rio f�sico, ao Google e a obras complementares, comentando com amigos – e para quem tem medo de muitas p�ginas, tenho a resposta: mais vale o prazer da leitura.
Di�logo
Amor, sexo, pol�tica, obsess�o, costumes, fofocas de sal�o, intrigas, moda, arte, epis�dios hist�ricos, culin�ria e toda sorte de assuntos cotidianos e passados comp�em a obra, parecendo, muitas vezes, uma grande cr�nica sobre o final do s�culo 19 e in�cio do 20. Proust vasculha escurid�es da alma humana, mostra o fausto dos nobres, exp�e conflitos de ho- mens e mulheres, jovens e velhos, ricos e pobres, e, claro, n�o � comedido ao revelar hist�rias de alcova ou da vida em sociedade, envolvendo heterossexuais convictos (as), alguns e algumas de vida dupla, e os “invertidos”, como eram chamados, naquela �poca, os homossexuais. Tudo tratado com a eleg�ncia que � peculiar ao escritor nascido em Paris e cuja morte completa 100 anos hoje.
Na leitura, algo me ocorreu: muitas vezes, me peguei em conversas com o narrador, batendo boca com os personagens e surpreso com as revela��es de alguns deles. Mas a� me lembrava da frase do dramaturgo e poeta romano Ter�ncio (“Nada do que � humano me � estranho”) e gostava ainda mais do que lia. Afinal, percorria linhas do tempo, conhecia “novas” palavras antigas e me abria a pensamentos para caminhar “em busca do tempo perdido”. Seguindo as pistas, como um p�ssaro a bicar os pedacinhos de “madeleine” espalhados pelas p�ginas.
Ponta do l�pis
Foi a� que veio a urg�ncia de criar uma “entrevista imagin�ria” com Proust, mesclando fic��o e a realidade atual. N�o poderia sair da obra como se apenas virasse uma p�gina ou fechasse uma porta. Li o livro com um l�pis bem afiado, tipo um detector de metais preciosos, e fui marcando o que julgava inte- ressante. Fiz anota��es, aplaudi trechos, coloquei interroga��es, sublinhei par�grafos inteiros.
Num belo dia, estava j� na �ltima p�gina me perguntando como algu�m tinha tanta disposi��o, f�lego e “coragem” – essa �ltima acrescentada por um amigo – para produzir uma narrativa longa e com tanta imagina��o.
A resposta veio r�pida, na “voz” do pr�prio autor: “Sabia muito bem que meu c�rebro era uma rica �rea de minera��o, onde havia diversas extensas jazidas preciosas”. Foi bom, refleti, ter usado um detector de metais preciosos.
Assim, vi que o trabalho do autor foi explorar as cavernas da mem�ria, trazer � luz as pedras garimpadas e lapid�-la com a arte das palavras. E a palavra Fim era s� uma volta ao come�o – pois basta recontar a hist�ria para que o ciclo da vida volte a girar. (Depoimento/Gustavo Werneck)
ENTREVISTA IMAGIN�RIA COM MARCEL PROUST
“Somente pela arte podemos sair de n�s mesmos”
O que Marcel Proust tem a nos dizer em 2022? Mesmo que a grande obra dele seja ambientada no final do s�culo 19 e in�cio do 20, soa bem atual em muitos aspectos. Ent�o, marcando aqui e ali as p�ginas dos sete livros, h� respostas, nas “falas” e reflex�es do narrador e de personagens, para algumas quest�es contempor�neas. E assim nasceu, para esta edi��o do Pensar, uma “entrevista imagin�ria” com o autor franc�s.
Para entender aquela �poca, � bom lembrar que Marcel Proust nasceu seis meses ap�s o t�rmino da Guerra Franco-Prussiana ou Guerra Franco-Germ�nica (1870-1871), conflito entre o Imp�rio Franc�s e o Reino da Pr�ssia. J� aos 43 anos, viu eclodir a Grande Guerra (1914-1918), que entrou para a hist�ria como a Primeira Guerra Mundial. No seu tempo, acompanhou o caso Dreyfus, sobre o capit�o do ex�rcito franc�s Alfred Dreyfus, judeu de origem alsaciana acusado de entregar documentos secretos aos alem�es, e registrou amplamente, no livro, o fato de grande repercuss�o.
Portanto, em tempos de guerra da Europa neste ano de 2022, vale ouvir a voz da experi�ncia, mesmo que venha do passado para exprimir o horror diante de uma “rea- lidade monstruosa”. E qual a sa�da? Proust orienta nas respostas a seguir.
Hoje, h� muita polariza��o no mundo, especialmente no Brasil. Uma briga pol�tica acirrada, que deixa as pessoas com os nervos � flor da pele...
“Veja, s� h� duas classes de pessoas: os magn�nimos e os outros; e cheguei a uma idade em que � preciso tomar partido, decidir de uma vez por todas a quem amar, e a quem desdenhar; juntar-se �queles a quem amamos e, para recuperar o tempo perdido com os outros, n�o mais deix�-los at� a morte.”
A Europa est� em conflito, assunto que o senhor conhece bem, pois viveu em tempos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Como o senhor v� tais situa��es?
“Aqueles que viveram durante a guerra de 1870, por exemplo, dizem que ideia da guerra acabara por lhes parecer natural, n�o porque n�o pensassem muito nela, mas porque pensavam nela sempre. E, para compreender o quanto a guerra � um fato estranho e consider�- vel, era necess�rio que, arrancadas � sua obsess�o permanente, esquecessem por um instante que a guerra imperava, e voltassem a sentir-se como eram em tempos de paz, at� que, de repente, nesse branco moment�neo, se destacasse, afinal distinta, a realidade monstruosa que desde h� muito eles tinham deixado de ver, por n�o ver outra coisa sen�o ela.”
O senhor aponta algum caminho para a humanidade?
“Somente pela arte podemos sair de n�s mesmos, saber o que enxerga outra pessoa desse universo que n�o � igual ao nosso, e cujas paisagens permaneceriam t�o ignoradas de n�s como as por acaso existentes na Lua. Gra�as � arte, em ver um mundo, o nosso, n�s o vemos multiplicar-se, e dispomos de tantos mundos quantos forem os artistas originais, mais diferentes uns dos ou- tros do que aqueles que rolam pelo infinito e que, muitos s�culos depois de se haver extinto o n�cleo de onde prov�m, chame este Rembrandt ou Vermeer, ainda nos enviam seus raios especiais.”
O que representa a literatura na sua vida?
“A vida verdadeira, a vida afinal descoberta e tornada clara, por conseguinte, a �nica vida plenamente vivida, � a literatura. Essa vida que, em certo sentido, habita cada instante em todos os homens tanto quanto no artista. Mas eles n�o veem, pois n�o procuram des- vend�-la. E assim o seu passado fica encoberto por in�meros clich�s que permanecem in�teis, visto que a intelig�ncia n�o os “desenvolveu”. Nossa vida; e tamb�m a vida alheia; pois o estilo, para o escritor, tanto a cor para quem pinta, � uma quest�o n�o de t�cnica, mas de vis�o.”
Escrever �, assim, t�o fundamental?
“Escrever �, para o escritor, uma fun��o sadia e ne- cess�ria, cuja realiza��o o torna feliz, assim como para os homens esportivos o exerc�cio, o suor, os banhos.”
Na sua obra monumental, com sete volumes, o senhor fala do tempo perdido e do tempo recuperado. O que �, afinal, o tempo?
“Cada dia antigo permanece depositado em n�s como, numa imensa biblioteca, onde existem livros mais antigos, um exemplar que, sem d�vida, ningu�m nunca ir� consultar. No entanto, basta que esse dia antigo, atra- vessando a transpar�ncia das �pocas seguintes, remonte � superf�cie e se estenda sobre n�s, cobrindo-nos inteiramente, para que, durante um momento, os nomes recuperem o seu antigo significado, as criaturas, o seu rosto antigo, n�s, a nossa alma dessa �poca, e sintamos, como sofrimento vago, por�m suport�vel e de pouca dura��o, os problemas de h� muito tornados insol�veis, que tanto nos angustiavam ent�o. Nosso eu � formado pela superposi��o de nossos estados sucessivos.”
O que o senhor tem a dizer a quem vive em 2022? H� muitas fake news...
“Os nossos advers�rios mais cru�is n�o s�o os que nos contradizem e procuram nos convencer, mas aqueles que exageram ou inventam not�cias que podem nos afligir, evitando dar-lhes uma apar�ncia de justifica��o que diminua a nossa m�goa e nos inspire talvez uma leve estima por um partido que eles timbram em nos mostrar, para nossa tortura completa, a um tempo atroz e triunfante.” (Gustavo Werneck)