
No pecado original da modernidade, os seres humanos se dissociaram dos demais seres vivos e da natureza, prenunciando a cat�strofe de uma modalidade de apropria��o predat�ria da propriedade privada: separado e crendo-se superior � natureza, legitimou-se o projeto de domina��o e explora��o absoluta. Longe de habitar - uma rela��o de inclus�o e reciprocidade com o entorno e os povos que ali est�o, em que aquele que habita, � tamb�m habitado -, a terra passou a ser ocupada, gerida, fatiada em busca de produtividade e lucros.
Tal forma de apropria��o violenta, abusiva, n�o se restringe � ideologia da posse absoluta sobre o ambiente, mas, sobretudo contamina todas as dimens�es e intera��es da vida humana em seu relacionamento com o mundo: justifica a coloniza��o e espolia��o de povos que det�m mais poder sobre outros povos; a apropria��o cultural perversa para beneficiar quem toma para si o que � de outro; segue legitimando a viol�ncia do homem em sua ideia de “propriedade” sobre a mulher; autoriza o massacre dos mais fortes sobre a alteridade do outro; permite abusos como a explora��o do trabalho escravo, que se desdobram da ideia de que o empregador seria tamb�m dono do empregado. � uma longa lista de preda��es associadas � modalidade da apropria��o, que det�m a posse absoluta, inclusive para aniquilar.
“Todo pensamento ecol�gico � baseado sobre um s� enunciado, uma s� verdade, o homem e a natureza n�o devem ser separados; o homem n�o deve ser dissociado dos outros animais; da natureza”, afirma o fil�sofo franc�s Fr�d�ric Gros, pesquisador e professor de teoria pol�tica no Institut d’�tudes Politiques de Paris (SciencesPo). Publicou, entre outros, os livros “Le Principe s�curit�” (2012) e “Poss�d�es” (romance hist�rico, 2016), organizou “As confiss�es da carne” (2018), quarto volume da s�rie “Hist�ria da Sexualidade”, de Foucault. � autor de “Desobedecer” (2018) e “Caminhar, uma filosofia” (2021), ambos em portugu�s, lan�ados pela Editora Ubu. Fr�d�ric Gros esteve em Belo Horizonte na �ltima segunda-feira, 17 de julho, para participar do ciclo de debates “Muta��es”, no Sempre Um Papo, com o tema “Apropria��o predat�ria e apropria��o ecol�gica”.
Em entrevista ao Pensar do Estado de Minas, Fr�d�ric Gros afirma que o modo de apropria��o predat�ria da propriedade privada est� no centro das grandes crises da atualidade, sejam elas clim�ticas, sanit�rias, relacionais ou geopol�ticas. “N�o sabemos mais viver, aprender e acolher. Ao contr�rio, ocupamos, consumimos, assimilamos, praticamos a viol�ncia de reduzir o entorno e o outro � posse absoluta e buscamos apenas o gozo ego�sta de nos sentirmos sozinhos possuindo, o gozo cruel de privar o outro, o gozo atroz de abusar e destruir”, pontua Gros. O fil�sofo sustenta a mudan�a radical na forma de relacionamento com o mundo, com o pr�prio corpo, com os outros. E � na intera��o dos ind�genas com a natureza que as sociedades ditas modernas devem mirar: “O modo de apropria��o dos ind�genas constitui hoje nossa sobreviv�ncia e o nosso futuro. N�s devemos aprender com eles como ter um outro relacionamento com a natureza, que � de intera��o, de unidade, de entrela�amento, de reciprocidade”. A seguir, outros trechos da entrevista de Fr�d�ric Gros ao Pensar:
Qual � o conceito de propriedade, de apropria��o, com o qual trabalha?
Procuro, em meu trabalho, encontrar um significado esquecido de apropria��o, e para isso retomo dois usos lingu�sticos do termo apropria��o: o uso atual e o uso filos�fico, j� que em nossas l�nguas latinas, emergiram do mesmo adjetivo ‘proprius’ duas linhas principais de apropria��o, a primeira que significou um arranjo �ntimo e rec�proco dos seres, que eu chamo de apropria��o ecol�gica. E a segunda, um tipo de apropria��o violenta, unilateral, que eu chamo de preda��o. Historicamente, a apropria��o significou, de modo geral, antes de tudo uma certa rela��o da mente ou do corpo com o mundo, uma rela��o pela qual se trata de arranjar, de certa forma tanto f�sica quanto espiritualmente - corpo e esp�rito -, o lugar do homem na natureza e no mundo, mas tamb�m de fazer um lugar para o mundo e a natureza no corpo e no pensamento do homem. � a ideia de uma apropria��o rec�proca, interativa, j� que apropriar-se abriria espa�o para que o outro se alimente de sua diferen�a e se acomode na alteridade para adquirir mais autenticidade pessoal. A parte luminosa da propriedade foi definida pelo pensamento liberal, e n�o � completamente contest�vel: a propriedade empodera, responsabiliza, libera e a propriedade traz seguran�a. A propriedade tamb�m o torna livre de depend�ncias que s�o insepar�veis da pobreza extrema. Finalmente, a propriedade deixa-o confiante quanto �s conting�ncias do futuro. Mas essa legitima��o �tica da propriedade privada esconde uma parte muito mais sombria de um movimento que seria algo como a valsa maldita, a dan�a infernal da propriedade privada: o problema � t�-la t�o santificada, que n�o mais podemos pensar em nos apropriar de algo, sem nos fazermos donos exclusivos; o problema � quando a modalidade de apropria��o que caracteriza a propriedade privada deixa de ser limitada, regulada, enquadrada por outros modos simb�licos e ecol�gicos de apropria��o. Porque � a� que ela revela seu lado amaldi�oado, a apropria��o se torna predat�ria.
Quais s�o as modalidades de apropria��o ecol�gica?
A primeira, viver. Os grandes pensadores da ecologia, quando repetem que o homem habita a Terra, enfatizam as rela��es de coapropria��o. O homem n�o sofre o seu ambiente: ele o transforma. Habitar um lugar � sempre ao mesmo tempo ser habitado por ele, � uma rela��o de inclus�o rec�proca, como vivem os ind�genas. Essa � uma modalidade de apropria��o ecol�gica. A segunda grande modalidade de apropria��o ecol�gica � a aprendizagem: aprender n�o � receber passivamente informa��es, mas � apropriar-se da informa��o, integr�-la em uma reflex�o pessoal e dobr�-la para um uso adequado. Trata-se de formar h�bitos, no sentido que Hegel usa para este termo em sua “Filosofia da mente”, que expressa e resume uma apropria��o que exigiu repeti��o e esfor�o. Formar h�bitos �, portanto, construir de si para si uma rela��o de apropria��o. Estamos assim caracterizando a apropria��o ecol�gica pela rela��o com o mundo e a rela��o com o corpo ou com a exist�ncia. Mas ainda h� tamb�m a rela��o com os outros, e para isso, evoco o verbo acolher. Diferentemente da nega��o da alteridade, apropriar-se � tamb�m deixar o lugar do outro para o outro, pois � justamente como ele permanece diferente que contribui para me nutrir. � o que chamo o modelo da hospitalidade. Isso significa, por exemplo, que a �ltima descoberta m�dica, de h� 10 ou 15 anos, sobre a flora microbi�tica, mostra que a nossa sa�de n�o � a afirma��o da plenitude do organismo, mas vem da simbiose entre nossos corpos, nossas c�lulas e as popula��es de bact�rias. Ent�o significa que sempre necessitamos uns dos outros. Viver, aprender, acolher. Rela��o com o mundo, rela��o com o corpo e consigo mesmo, rela��o com os outros. S�o estes os tr�s registros principais de apropria��o ecol�gica, uma apropria��o m�tua, rec�proca, positiva. O que se chama de grande crise de nossa civiliza��o se deve, acredito, ao fato de que n�o sabemos mais viver, aprender e acolher. Ao contr�rio, ocupamos, consumimos, assimilamos, praticamos a viol�ncia de reduzir o entorno e o outro � posse absoluta e buscamos apenas o gozo ego�sta de nos sentirmos sozinhos possuindo, o gozo cruel de privar o outro, o gozo atroz de abusar e destruir.
Em que momento passamos da apropria��o rec�proca, ecol�gica, � explora��o predat�ria da propriedade?
Contemporaneamente, o modo de apropria��o predat�ria da propriedade privada est� no centro das grandes crises sejam elas clim�ticas, sanit�rias, relacionais ou geopol�ticas. Isso porque, apropriar-se �, na maioria das vezes, tornar-se, ilegitimamente ou mesmo violentamente, o dono daquilo que pertence primeiro a outro. E ela se tornou predat�ria primeiro, dentro da ideia de que “o que � meu � meu e s� meu”: h� a recusa da partilha, a nega��o da comunidade. Segundo, porque “o que � meu � s� meu”, direta ou indiretamente tem necessidade de privar os outros. Por muito tempo acreditamos que a riqueza criava riqueza e que todos poderiam desfrutar dela. Hoje, infelizmente, percebemos que a apropria��o predat�ria cria uma massa de pessoas que s�o desapropriadas, despossu�das de tudo. O fato � que o enriquecimento dos mais ricos leva mecanicamente ao empobrecimento dos mais pobres. Aqueles que chamamos de pobres, miser�veis, s�o o dejeto de nossa apropria��o. E por fim, em terceiro lugar, chegamos ao n�cleo mais sombrio dessa parte amaldi�oada da apropria��o: a propriedade � a possibilidade, a autoriza��o, a legitima��o do abuso, o fato de que eu posso destrui-la impunemente. Na corrida pelo lucro, cada propriet�rio explora os recursos de seu dom�nio at� a exaust�o, exaust�o do solo, extra��o m�xima de toda riqueza.
Como a religi�o se associa � apropria��o predat�ria?
Efetivamente, a raiz do mal da modernidade � a separa��o total do homem e da natureza. O grande erro foi pensar na separa��o, na dissocia��o entre o homem e os animais ou os seres vivos em geral. Este seria o pecado original da modernidade, a causa original da cat�strofe. Dizer do homem que ele est� separado da natureza � afirmar imediatamente que ele � superior a ela, que ele a domina, que ela est� a seu servi�o. � somente a partir do momento em que pensamos na natureza e no homem como separados, que o projeto de domina��o total e explora��o absoluta se torna leg�timo. Ent�o n�o se trata mais de habitar a terra, mas de ocup�-la, isto �, de racionaliz�-la, administr�-la, cort�-la em fatias de lucro, otimizar seu rendimento, aumentar sua produtividade. Essa separa��o autoriza um modo predat�rio, privado e abusivo de apropria��o. Muitos pensadores ligaram essa separa��o entre homem e natureza ao monote�smo, j� que na religi�o polite�sta, os deuses eram plurais e estavam presentes na natureza. Ao passo que no monote�smo, h� um deus e o homem � feito � imagem e � semelhan�a de deus. E h� um terceiro aspecto, que torna mais complexa a resposta, � que o cristianismo � uma religi�o que continua sendo de encarna��o e da apropria��o rec�proca, de entrela�amento da intera��o. Pensadores ecol�gicos, como Bruno Latour, v�o dizer que o cristianismo � uma religi�o profundamente ecol�gica, porque � da encarna��o: deus est� em n�s, n�s estamos em deus e � uma religi�o da apropria��o rec�proca. Agora o cristianismo � um continente, h� muitas correntes, inclusive aquelas que se sustentam no Antigo Testamento, que legitimam a apropria��o predat�ria. Exatamente por isso � necess�rio dizer que, diferentemente da perspectiva dessas correntes, h�, tamb�m muitos religiosos que defendem a perspectiva da apropria��o ecol�gica, rec�proca.
A impossibilidade de as democracias neoliberais darem respostas �s demandas sociais mais profundas tende a conduzir o mundo � extrema direita, ao fascismo?
As democracias est�o desafiadas porque h� democracias que foram corrompidas, que s�o muito formais - n�o se trata apenas do direito de voto. A crise das democracias � tamb�m uma crise de uma certa forma do neoliberalismo, em que, precisamente, santificou a apropria��o predat�ria. Existe dentro da sociedade moderna uma grande massa de exclu�dos da democracia, que n�o se reconhecem mais dentro da democracia, porque n�o veem o que ela lhes proporciona. Fala-se de direitos, de liberdade, mas eles est�o completamente despossu�dos desses conceitos. Como est�o exclu�dos da democracia, lhes resta efetivamente, numa ilus�o terr�vel, apostar em regimes autorit�rios. � o risco que estamos pagando hoje. Historicamente a ideia de dois modos de apropria��o foi pela primeira vez expressa por Karl Marx, que disse que o capitalismo constitui certa forma de associa��o que instala a predomin�ncia da apropria��o predat�ria. E que o problema n�o � a propriedade privada em si, mas o problema � a predomin�ncia absoluta da propriedade privada como modelo �nico de relacionamento com a natureza, com as pessoas, consigo mesmo, com o pr�prio corpo, etc. Ou seja, tudo � considerado sob o modo da propriedade privada.
Para ver e ouvir
“Apropria��o Predat�ria e Apropria��o Ecol�gica”,
Palestra no ciclo de debates “Muta��es”, do projeto Sempre um papo. Dispon�vel a partir desta segunda-feira, 24 de julho, no Youtube. Endere�o: https://www.youtube.com/@SempreUmPapo
Para ler
Livros lan�ados no Brasil pela Ubu Editora
“Desobedecer”
224 p�ginas
R$ 64,00
“Caminhar, uma filosofia”
224 p�ginas
R$ 69,90
“A vergonha � um sentimento revolucion�rio”
192 p�ginas
R$ 59,90