Edu Sim�es fotografou jovens negros em favelas e bairros perif�ricos de Norte a Sul do Brasil (foto: Edu Sim�es/Divulga��o)
Em agosto de 2014, o fot�grafo Edu Sim�es passava pelo Centro de S�o Paulo quando trombou, por acaso, com um protesto contra o genoc�dio de negros no Brasil. Mais tarde, nas redes sociais, descobriu que a marcha ocorreu de forma simult�nea em outros 18 estados brasileiros. Foi o primeiro contato dele, um fotojornalista experiente, com o tema. O alvo da manifesta��o eram os dados assustadores do Mapa da viol�ncia, levantamento divulgado pelo governo federal, que mostravam que 59 jovens negros eram assassinados todos os dias no Brasil.
Homem branco, morador de um bairro de classe m�dia alta em S�o Paulo, ele recebeu um choque de realidade.“Me assustei. Como assim? 59 jovens hoje, 59 amanh� e depois de amanh�, e assim todos os dias”, relembra Sim�es, acrescentando que, se fossem jovens brancos, vizinhos dele, n�o precisariam morrer 59 por dia para comover o pa�s ou derrubar qualquer governo.
Dessa experi�ncia nasceu o projeto de um ensaio fotogr�fico com 59 jovens de periferias de norte a sul do Brasil, mesmo n�mero da estat�stica de mortes di�rias em 2014. Uma forma que Edu encontrou para ampliar o pedido de socorro e externar sua indigna��o social. Na �ltima semana de novembro de 2020, Edu Sim�es lan�ou o livro 59 – Retratos da juventude negra brasileira, com texto da pesquisadora e escritora Juliana Borges e curadoria fotogr�fica de Cristianne Rodrigues.
Edu Sim�es: ideia surgiu em 2014 e imagens foram realizadas em Porto Alegre, S�o Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Bras�lia e Bel�m (foto: Edu Sim�es/Divulga��o)
Mas o livro n�o � sobre mortes. � sobre vidas. Cada retrato � carregado de identidade e tem como pano de fundo elementos que comp�em n�o s� a realidade do retratado, mas conta tamb�m um pouquinho da hist�ria de tantos jovens negros, pobres e moradores de periferia que compartilham sonhos. “O jornalismo, que � de onde eu venho, a fotografia e todo esse sistema de comunica��o na sociedade invisibilizam esse jovem. E quando n�o inviabiliza, associa a imagem de viol�ncia, de morte, de crime, tr�fico de drogas, etc. A maneira de tratar esse assunto, pra mim, seria uma invers�o desse processo de invisibiliza��o e de criminaliza��o”, diz Edu.
O trabalho envolveu empatia e respeito com a hist�ria de cada personagem, al�m de seguir a rigor o script de fotografia t�cnica de artistas e pessoas famosas. “Fui editor da revista Bravo por muito tempo, ent�o, fotografei quase todos os artistas importantes da �poca. Fiz quest�o de fotografar esses jovens com as mesmas t�cnicas, com o mesmo cuidado, com o mesmo approach”, explica Sim�es. A viagem por capitais passou por Porto Alegre, S�o Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Bras�lia e Bel�m.
Valnnei Succo, um dos fotografados no livro, n�o s� participou do trabalho, mas tamb�m ajudou Edu a percorrer 17 favelas do Rio de Janeiro e convencer outros jovens negros a participar do projeto. “Infelizmente, a morte dos jovens negros � uma quest�o minimizada pela sociedade. A gente para sempre numa hist�ria que � muito irritante, que se chama 'mimimi’. � mimimi ver o colega morrendo, � mimimi ver o parente morrendo, � mimimi ver vidas se perdendo por conta de pol�ticas n�o aplicadas ou pol�ticas aplicadas para que essas pessoas morram?”, desabafa Succo, hoje com 31 anos.
Vestindo uma camisa da Sele��o Brasileira de Futebol, ele foi fotografado na laje de casa, no bairro Rocha Miranda, com a cidade ao fundo. Na live de lan�amento do livro, Succo explicou o motivo para a escolha da roupa e do cen�rio. “Que Brasil que a gente vive? O Brasil que usa camisa da Nike amarela, que diz que � patriota, mas com o pano de fundo de favela, de viol�ncia e de sofrimento, ou o Brasil que se encontra em quatro bairros do Rio de Janeiro? Ent�o, o questionamento era esse quando vesti aquela camisa”, comenta.
A camisa, inclusive, nem era dele. Ela seria usada para fazer um outro tipo de protesto. “O trabalho que eu iria fazer naquela camisa era colocar na frente menos 1 e, atr�s dela, o nome da camisa seria Amarildo”, explica, referindo-se ao desaparecimento, em 2013, de Amarildo de Oliveira, morador da Rocinha, durante ocorr�ncia policial.
Succo acredita que trabalhos como o ensaio fotogr�fico feito por Edu t�m ajudado na luta contra viol�ncias sofridas pela popula��o jovem, negra e pobre no Brasil. “N�o � s� o Rio de Janeiro, n�o � s� S�o Paulo, n�o � s� Alagoas, n�o � s� a Bahia. � o Brasil inteiro dentro dessa mesma l�gica, colocando sempre essa juventude num mesmo saco, como o marginal, aquele que deve ser detido, aquele que deve ser parado, aquele que n�o deve ser ouvido”, protesta.
Bruno Cap�o, na �poca com 27 anos, hoje 31, escolheu um esgoto a c�u aberto, coberto de lixo, como local para ser fotografado no Jardim L�dia, comunidade em S�o Paulo onde atua com projetos sociais. “Escolhi porque realmente queria falar desse lugar, n�o s� do lixo, mas tamb�m do esgoto. Isso � S�o Paulo: � a maior cidade do pa�s, � o lugar mais rico”, comenta. Al�m do contraste social e econ�mico, Bruno tem outras refer�ncias do lixo ao longo de sua trajet�ria.
Nascido e criado no Cap�o Redondo, bairro considerado em 1996 pela Organiza��o das Na��es Unidas (ONU) como o mais violento do mundo, ele teve o lix�o como local de sustento por muito tempo. “Venho dessa realidade do lixo de sobreviver, de t� no meio do lixo, de crescer enquanto crian�a, adolescente, jovem e n�o se tornar um lixo, mesmo estando no meio dele”, explica Bruno, o primeiro da fam�lia a chegar � universidade. Ele continua morando no mesmo bairro e resolveu dedicar sua vida a cuidar das pessoas que moram na regi�o por meio de projetos sociais.
Acostumado a se despedir de familiares, amigos e vizinhos que perderam a vida por causa da viol�ncia, ele sabe que a escolha de quem vai ser o pr�ximo tem a cor como denominador comum. “� muito louco porque como � isso? Voc� � sobrevivente de uma estat�stica de um pa�s em que voc� mora, na cidade em que voc� mora, no local onde voc� habita, sabe? Cada dia que voc� vive � um dia a mais, porque l� no IBGE est� falando que voc� � um cara morto, que voc� � uma mulher morta”, questiona.
Sobre a import�ncia de 59 – Retratos da juventude negra brasileira, ele � enf�tico. “� um livro em que a gente � mais que personagem, a gente � uma realidade retratada. Porque daqui a 30 anos, isso n�o vai ser um livro, vai ser um legado”, afirma.
A cor da viol�ncia no Brasil
A viol�ncia contra negros no Brasil �, segundo a pesquisadora, escritora e ativista Juliana Borges, uma heran�a pol�tica de apagamento social. Autora dos livros Encarceramento em massa (2019) e Pris�es, espelhos de n�s (2020), ela assina o texto de 59, que contextualiza historicamente o fen�meno. “A ‘funda��o’ de nosso pa�s ocorre tendo a escravid�o baseada na hierarquiza��o racial como pilar. O racismo e o etnoc�dio s�o fundamentos – expressos pela viol�ncia – das desigualdades”, escreve a pesquisadora. Ela afirma que os n�meros escancaram o racismo estrutural do pa�s.
O Atlas da viol�ncia, estudo organizado pelo Instituto de Pesquisa Econ�mica Aplicada (Ipea) e pelo F�rum Brasileiro de Seguran�a P�blica (FBSP), divulgado em agosto de 2020, aponta que 75,5% das v�timas de homic�dios no Brasil s�o negras, a maior propor��o da d�cada. Entre 2008 e 2018, o n�mero de homic�dios de pessoas negras no pa�s aumentou 11,5%. Entre pessoas n�o negras, caiu 12,9%. A cada tr�s assassinados, dois s�o negros.
A viol�ncia, conforme Juliana, est� diretamente ligada � ra�a no Brasil, da� a urg�ncia de falar sobre o problema do racismo. Nessa perspectiva, ela destaca a import�ncia da provoca��o social que 59 apresenta. “� muito importante quando a gente tira da estat�stica, quando a gente corporifica. Mostra que a gente est� falando de pessoas, pessoas que t�m fam�lias, t�m vidas, t�m projetos, t�m sonhos”, afirma.
A escritora acredita que a mudan�a desse cen�rio de viol�ncia contra a popula��o negra passa pela tomada de consci�ncia e ado��o de pol�ticas que reduzam as desigualdades sociais e raciais. “� importante que a gente entenda que as mortes pela viol�ncia s�o mortes evit�veis. A gente n�o estar fazendo nada para evitar essas mortes significa que a gente est� corroborando com essa pol�tica de apagamento de vidas e hist�rias. Estamos perdendo muito como pa�s”.
Matheus Andrade
16 anos, S�o Paulo
(foto: Edu Sim�es/Divulga��o)
“Na semiescurid�o das entranhas do viaduto Bresser estavam dois ringues para a pr�tica de boxe, uma enorme e improvisada biblioteca, dezenas de aparelhos de muscula��o, pranchas para abdominais, grandes pneus e sacos de areia pendurados para ser socados continuamente. Nesse ambiente um tanto surreal, encontrei Matheus Andrade suando e feliz. Foi o primeiro jovem que fotografei.”
Bruno Coelho
19 anos, S�o Paulo
(foto: Edu Sim�es/Divulga��o)
“Encontrei Bruno Coelho na Vila Campestre, bairro no Centro-Sul de S�o Paulo, onde morava com a sua fam�lia. Foi cal�ando um par de sapatos de saltos muito altos e finos que o dan�arino se apresentou para figurar em seu retrato. Bruno pode ser visto hoje brilhando na comiss�o de frente da escola de samba X9 ou apresentando seu mais recente trabalho, Termo de revolta, nos mais interessantes espa�os dedicados � difus�o da cultura negra da capital paulista.”
Paulo Henrique Reis
24 anos, Complexo da Mar�, Rio de Janeiro
(foto: Edu Sim�es/Divulga��o)
“Paulo Henrique eu o fotografei na Avenida Brasil, no Rio de Janeiro, em 2018. Rec�m-formado em economia, experimentava pela primeira vez pertencer a um universo cultural que, por duas centenas de anos, teima em ser exclusividade das elites brancas do pa�s. Dois anos depois, Paulo comemora com muito samba a conclus�o da p�s-gradua��o na Universidade Federal Fluminense (UFF).”
Sandro Sussuarana
27 anos, Sussuarana Velha, Salvador, BA
(foto: Edu Sim�es/Divulga��o)
“Com a frase “Mais dias de luta, menos dias de luto” estampada em sua camiseta, o poeta de rua e agitador cultural Sandro Sussuarana me recebeu em sua casa, localizada na favela Sussuarana Velha, em Salvador. Enquanto n�o est� declamando suas poesias dentro dos �nibus ou nas ruas da capital baiana, � no Sarau da On�a que Sandro apresenta seus versos. O Sarau � um espa�o cultural idealizado e criado por ele e seus amigos na favela cujo nome adotou para si.”