(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas APAGANDO MULHERES

Mineira Nara Vidal explora universo feminino atacado por homens t�xicos

Em novo livro de contos, escritora explora esse campo interdependente entre fato e fic��o


11/12/2020 04:00 - atualizado 11/12/2020 10:17

Nara Vidal, mineira radicada em Londres: inspiração em Sylvia Plath para as narrativas breves de Mapas para desaparecer(foto: divulgação)
Nara Vidal, mineira radicada em Londres: inspira��o em Sylvia Plath para as narrativas breves de Mapas para desaparecer (foto: divulga��o)
Em 11 de fevereiro de 1963, a escritora Sylvia Plath tomou uma sobredose de narc�ticos e enfiou a cabe�a num forno a g�s, enquanto seus dois filhos dormiam no quarto ao lado. Horas antes, ela havia selado a porta, de modo que o vazamento n�o chegasse �s crian�as, e ainda deixou p�o e leite, para quando acordassem.

Selado ao p�blico tamb�m ficou, por muitos anos, a vida �ntima de Plath com o poeta Ted Hughes, de quem a autora se separou meses antes de se suicidar. Somente com a publica��o de Ariel, em 1982, certas suspeitas vieram a lume. Extra�da dos di�rios deixados por Plath, a antologia po�tica traz uma introdu��o escrita por Hughes, que alega conter, naqueles textos exumados, a “verdadeira identidade de uma mulher que antes parecia muda”, e que existiam outros volumes que simplesmente desapareceram ou que ele havia destru�do “porque n�o queria que os filhos dela fossem obrigados a l�-los”.

A atitude refor�ou a desconfian�a de que Plath vivia um relacionamento abusivo, que s� viria a se provar recentemente atrav�s de um acervo de cartas, que estava em posse de uma m�dica, as quais trazem o relato de uma agress�o f�sica dias antes de a autora sofrer um aborto, e a declara��o de que Hughes a queria morta.

No livro A mulher calada, uma investiga��o acerca de biografias e de documentos que se debru�aram sobre o casamento de Plath e Hughes, a jornalista estadunidense Janet Malcolm aborda uma s�rie de entrevistas que fez com Jacqueline Rose, autora do estudo liter�rio O ass�dio a Sylvia Plath. A obra, editada bem antes de virem a p�blico as novas cartas, partia do ato de censura dos di�rios de Plath para indicar a presen�a destrutiva de Hughes. Em dado momento, perguntada sobre o uso de termos evasivos em seu texto, Rose declara que foi um conselho de seu advogado de modo a evitar ser processada pelo poeta.

“Eu n�o deduzo que, em momento algum, alguma viol�ncia tenha ocorrido entre eles. Faz�-lo teria sido legalmente difamat�rio e o livro poderia n�o ter sido publicado. O mais importante, de todo modo, � que eu jamais quis fazer essa sugest�o, pois me parece que n�o tenho como sab�-lo e estou convencida de que a literatura � um campo para explorar tanto o que de fato ocorreu quanto o que n�o nos aconteceu, mas — digamos — tememos ou desejamos”, diz.

Radicada em Londres, a mineira Nara Vidal vem caracterizando sua literatura exatamente por explorar esse campo interdependente entre fato e fic��o, de modo a extrair mat�ria para construir enredos e personagens filiados ao universo feminino. Sorte, romance vencedor do Pr�mio Oceanos 2019, utiliza do fundo hist�rico da imigra��o nos anos 1800 para tratar do ciclo de viol�ncia contra a mulher, que ressoa nos casos atuais de feminic�dio. Anterior a este, A loucura dos outros re�ne 21 contos intitulados com nomes pr�prios, retratando experi�ncias do vivido de mulheres assaltadas por fraturas morais, sociais e psicol�gicas. Os textos s�o precedidos por um incandescente poema de Plath, cujos versos, mais que divisar a tem�tica ou situar o procedimento estil�stico, fornecem o senso e a for�a que ir�o pontuar todo o volume.

Desaparecimentos


Agora, este robusto e representativo projeto liter�rio ganha uma nova extens�o com o lan�amento de Mapas para desaparecer, reuni�o de narrativas breves que se interligam pela forma com que os conflitos internos das personagens se desgarram de uma realidade muito presente para conduzir tramas assombradas por um elemento dram�tico: o apagamento. Em 12 textos, ora narrados em primeira, ora em terceira pessoa, mulheres desaparecem fisicamente, fazem ou fazem-se sumir, s�o anuladas em estados sociais e em circunst�ncias de natureza emocional, na maioria das vezes suprimidas por modelos da toxidez masculina, em diferentes aspectos de pessoalidade.

O livro se inicia com o excelente Castanheira, sobre uma m�e que revive o desaparecimento da filha de 9 anos enquanto prepara a festa de anivers�rio de outra filha, que completa agora a mesma idade. Num procedimento de escrita que transita por in�meras linhas de pensamento, a personagem reflete sobre o luto insond�vel da aus�ncia ao mesmo tempo em que descreve a pr�pria anula��o, encerrada num casamento que respira apenas para manter um m�nimo de estrutura familiar.

Aqui, ficam evidentes algumas caracter�sticas t�cnicas que ir�o nortear a maneira com a qual Nara engendra e valoriza seus contos. Frases geralmente curtas, com prefer�ncia pela coordena��o; forte incurs�o mental, sem nunca esbarrar no melodrama; retratos complexos de suas personagens, pressentidos de forma clara; e um vocabul�rio f�cil, embora elegante, com palavras escolhidas a dedo. Outro ponto que chama a aten��o � a articula��o dos fios narrativos, natural da efabula��o romanesca, na qual alguns contextos e transi��es temporais s�o correlacionados, mas sem nunca perder a meada ou atrapalhar o entendimento da leitura.

A morte do caixeiro-viajante, conto que vem em seguida, � um exemplo nato desse m�todo. Uma mulher que deixou uma sess�o de teatro e deambula pela madrugada londrina come�a a ser assediada por um voz an�nima ao telefone, perpetrando um artif�cio obscuro onde um (concreto ou conotativo) ato perverso se imp�e sobre a fleuma de um casamento apagado. Cip� mil-homens, por outro lado, n�o abstrai sua inten��o narrativa, versando, com fervura sangu�nea, sobre uma menina que teve a prostitui��o como �nico meio de sobreviv�ncia e, tempos mais tarde, transforma a corrup��o do seu corpo em instrumento de desapari��es.

Nara enreda o leitor no contato com situa��es em que a virul�ncia masculina impregna toda a sociedade, independentemente da estatura econ�mica, intelectual e representativa. Carmen sonda a rotina de uma empregada que anulou a vida em prol das demandas dos patr�es, encontrando num ato moralmente reprov�vel uma chama de gozo. Numa esfera completamente distinta est� a esposa do narrador de O casamento de Let�cia, uma mulher de classe alta que esconde suas reprova��es acerca das amizades do filho em m�scaras de comportamento que suportam o preconceito de diferentes g�neros.

Tais contradi��es e manchas na condi��o humana s�o utilizadas pela autora, outras vezes, para alcan�ar subtextos que coadunam com sua tem�tica, mas que tamb�m produzem todo um efeito corrosivo de coment�rio cr�tico. Luciana Esp�rito Santo e Lucien Roland parecem narrativas irm�s. A primeira fala de uma aspirante a escritora que faz de tudo para ter reconhecimento na combina��o infesta entre meio liter�rio e redes sociais, entrando numa espiral de autoenganos e abusos, ao passo que a segunda, com musculatura para ter se tornado uma novela, � uma contundente e verossimilhante vis�o de como os compadrios, o sistema de vasos comunicantes e influ�ncias, o toma l� d� c�, as press�es de grupos criam certas unanimidades na literatura, anulando talentos de maneira s�rdida, em prol de uma imagem de sucesso que n�o passa da venda de ilus�o.

H� um debate de longa data sobre a obriga��o da arte como fun��o social, que, nos livros de Nara Vidal, parece inerente ao seu conte�do. N�o uma escrita dura, de nota��o panflet�ria, mas um fazer liter�rio que, embora num tom mais delicado, mais cadente em sua linguagem, manifesta toda avers�o a comportamentos destrutivos de viol�ncia, de submiss�o, de cancelamento da mulher. Afinal, n�o � que a literatura tenha de transcender seu valor art�stico e se impregnar de ferramentas pol�ticas. Contudo, composta com qualidade e absorvida com aten��o, pode ser uma sa�da para que casos como o de Sylvia Plath n�o terminem de forma tr�gica, enquanto se passam anos suprimindo a verdadeira identidade, sofrendo de forma calada.

Trechos

A minha filha mais velha n�o est� mais aqui. Ela desapareceu. N�o sei para onde foi. Quem est� aqui � a minha filha mais nova, que tem a idade da mais velha. A mais nova, como a mais velha, tem nove anos. A mais velha ficou com nove anos. Nunca mais fez anivers�rio. Congelou seus nove anos para sempre. S� me lembro dela at� os nove anos. Por isso elas t�m a mesma idade.

***

Penso na humilha��o que � n�o sair da fila, mandar que se foda o Daniel, o museu,  a ponte de cadeados, os tapas na bunda, as puxadas de cabelo, o cheiro dele que detesto, a forma como ele mastiga, as suas meias baratas, o andar desleixado que ele tem, a m�e dele, as gravatas, as metas que ele tem que bater, os livros de esporte que ele  coleciona, os verbos que ele conjuga errado. Penso nisso entre um gole e outro de �gua e, de repente, somos os primeiros da fila. Ser� que a fila andou r�pido para o Daniel tamb�m? Ser� que ele pensou em como eu me humilho n�o largando ele, n�o indo embora do apartamentinho que ainda n�o quitamos, meu fracasso de freelancer, minha arrog�ncia quando rio dele falando errado, logo ele que paga meu almo�o e meu jantar?


Mapas para desaparecer
Nara Vidal
Editora Faria e Silva
136 p�ginas
R$ 48


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)