Sinos, mesmo os que ressoam discretos, deveriam ecoar em uníssono na próxima semana em Minas para celebrar os oitenta e sete anos de Francisco Alvim. Tanta badalação, contudo, não aguçaria o cintilar da criação. O poeta precisa do silêncio para escutar prosas alheias, escavar as próprias lembranças, enxergar os versos antes de escrever. “A poesia é uma rede que pega o que está em volta. Por isso a palavra ressoa tanto. Ela é um sino. Um sino sem badalo. E a poesia é escrita, escuta e visão. Os três e o tempo”, afirma, em entrevista ao Estado de Minas, em sua casa no Lago Norte, em Brasília, onde vive desde os anos 1970. 

Admirado pelos colegas de diversas gerações e reconhecido pela crítica literária como o nome que conseguiu unir a verve modernista com a irreverência desconcertante da chamada poesia marginal, Francisco Soares Alvim Neto tem trajetória singular na vida e na obra. Nascido em Araxá em nove de outubro de 1938, viveu apenas até os dois anos na cidade onde o pai, Fausto Alvim, foi prefeito. A família mudou-se para o Rio de Janeiro, onde ele passou parte da infância antes de nova mudança, desta vez para um casarão na Rua dos Goitacazes, centro de Belo Horizonte. “Cheguei criança e saí homem formado, com 86 anos”, brinca. 

Leia: Francisco Alvim: ‘O coador da poesia é o tempo’

Voltou ao Rio nos anos 1960 e lá viveu intensamente a efervescência trazida pelo cinema novo e pela música popular. “Nessa época, linguagem era tudo: o cinema marginal, sobretudo, trouxe um elemento vibrante. As crônicas do Nelson (Rodrigues), os livros do Dalton (Trevisan), todos eles têm um pouco da parte rítmica que estava solta ali, inclusive o vocábulo avacalhado, rebaixado”, contextualiza. Aprovado em concurso do Itamaraty, residiu em Paris, Barcelona e Roterdã antes de pousar em Brasília com a mulher, Clara Alvim (professora aposentada da UnB e filha de Rodrigo Franco Melo de Andrade, criador do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que deu origem ao Iphan) e os filhos, Pedro e Joana. Perto do lago da capital e longe das montanhas, Chico carrega o estado natal nas lembranças: “Família da mata mineira é o que sou.” 

Leia: Os poemas de Francisco Alvim

Na mente do poeta, Minas vive na oralidade do povo (“a poesia está na fala do mineiro, só saber escutar”), nas histórias do pai, nas andanças no campo e na cidade com as irmãs Maria Ângela e Maria Lúcia (também poetas), nos versos com sinos e serras, no coração alvinegro forjado na infância. “Como morei muito tempo no Rio, cheguei a achar que meu clube de coração era o Botafogo. Mas o Atlético é o meu verdadeiro time e me satisfaz. Tem o gosto das derrotas, mas também a fibra da vitória. É um clube transcendente: de uma angústia permanente, mas heroico, como diz o hino: ‘Lutar, lutar, lutar’. É o Galo vingador, uma violência mansa”, afirma. 

O sentimento do mundo mineiro aparece ainda na estante abarrotada de edições de Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e outros autores de versos “formidáveis”, como se refere aos poemas de predileção, que recita sem consulta. “Minas está no coração e na alma”, afirma Alvim.  

 – Chico ou Francisco?

– Quando eu tenho cerimônia comigo mesmo, eu me chamo de Francisco. Mas, como falta constantemente a cerimônia... Não que eu me chame de Chico. Mas Chico é a voz geral, voz do mundo. 

– O poeta é mais Chico ou Francisco?

– Acho que Francisco é mais literário. Tem uma respeitabilidade que eu gostaria de ter e não tenho. 

Primeiro “memorialista minimalista” da literatura brasileira, na definição do crítico Augusto Massi, Francisco Alvim deve ter sua obra reunida pela Editora 34, em volume ainda sem previsão de lançamento. Enquanto isso não acontece, um livro novo “dança” na cabeça do poeta. “Ainda não se fixou, mas estou cogitando: vamos ver se pode ser publicado e se terei tempo e condições”, especula. São catorze anos sem publicar. “O metro nenhum”, o mais recente, saiu pela Companhia das Letras em 2011. Mas, leitores, não nos apressemos: a publicação, com poemas inéditos em livros, é tratada apenas como uma possibilidade. E, se sair, terá de ser no ritmo vagaroso imposto ao autor depois “que entrou na década dos 80” e passou a conviver com tremores nas mãos. Recorre à bengala para firmar o passo. “Assim, meio dançado, você vai perdendo o contato com o chão, que vai te dando um ritmo de dança em vez dos passos corretos e certos”, reconhece.

Leia: As muitas vozes sobre Francisco Alvim, o poeta que ensinou a ouvir

Leia: Francisco Alvim: a paisagem política, pictórica e amorosa do poeta

Em maio último, ele decidiu desafiar as limitações do corpo e, “de súbito”, aceitou o convite para participar da abertura do festival Poesia no Centro, em São Paulo. Também gravou uma entrevista para o podcast “451MHz”, da revista Quatro Cinco Um, com a poeta Bruna Beber e o jornalista Paulo Werneck. “A poesia de Chico está mais viva do que nunca, principalmente entre a nova geração de poetas brasileiros”, atestou Werneck. No festival, Alvim reencontrou o crítico Roberto Schwarz, um dos primeiros a apontar a excelência da poesia de Alvim. 

“Os poemas de Francisco Alvim têm uma evidência especial, muito deles, em que o autor praticamente desaparece, cumprindo um dos votos radicais do artista de vanguarda. Contribuem para isso o material expressivo pré-moldado no cotidiano, a técnica de sua exposição inquisitiva e enxuta, aprendida em Oswald, além da atitude geral, que infunde acerto e alcance ao conjunto”, afirmou Schwarz, já em 2002, ao resenhar o então recém-lançado “Elefante”. “Roberto é um grande amigo e grande crítico. Tenho essa dívida enorme com ele, do apreço que sempre teve pelo meu trabalho”, conta o poeta.

Outro amigo de décadas, moradores da mesma região de Brasília, o poeta Nicolas Behr lembra que Chico “fez a ponte entre os modernistas e nós, os chamados poetas marginais, da geração mimeógrafo”. “Tem mais: ele nos ensinou a ouvir”, destaca o autor de “Iogurte com farinha”, chamado pelo amigo de “ímpeto de foguete”. 

O escritor Francisco Alvim Carlos Marcelo
O escritor Francisco Alvim Carlos Marcelo
O escritor Francisco Alvim Carlos Marcelo
O escritor Francisco Alvim Carlos Marcelo
O escritor Francisco Alvim Carlos Marcelo
O escritor Francisco Alvim Carlos Marcelo
O escritor Francisco Alvim Carlos Marcelo
O escritor Francisco Alvim Carlos Marcelo
O escritor Chico Alvim em sua casa, em Brasília: "poesia é escrita, escuta e visão. os três e o tempo Carlos Marcelo
Vídeo | Especial Pensar | Francisco Alvim lê o poema "Revolução" | A convite do Estado de Minas, o poeta mineiro Francisco Alvim leu para o suplemento literário Pensar quatro de seus poemas: "Aniversários", "Revolução", "Salva de silvos" e "Pato sonso". Carlos Marcelo

E quem fez a ponte entre Chico Alvim e a poesia?

A descoberta da escrita poética veio em casa. Ao ler numa agenda os versos da irmã mais velha, Maria Ângela Alvim (1926-1959), que posteriormente os publicaria no livro “Superfície”, Chico se encantou. “Comecei a fazer uns poemas curtinhos imitando os dela”, lembra, como se narrasse uma travessura: “Ângela foi a matriz, a pessoa que me puxou para a poesia.”

Leia: Para Francisco Alvim, livro de Maria Lúcia Alvim foi uma revelação

Também foi por meio dela o encontro com o primeiro poeta que o ‘sequestrou’: Jorge de Lima, de “Invenção de Orfeu”. “Depois veio o Drummond que, de uma certa maneira, deu uma rasteira no Jorge de Lima. Drummond trouxe a capacidade de olhar para fora, do contato com a vida. Isso me seduziu muito”, diz. Ele reconhece ainda a influência de um colega de Itamaraty, João Cabral de Melo Neto, no primeiro livro, “Sol dos cegos” (1968): “Tem poemas meus que têm o ritmo do Cabral, aquela cadência toda.” 

Duas vezes vencedor do Prêmio Jabuti com as coletâneas “Passatempo e outros poemas” (Brasiliense) e “Poesia reunida 1968-1988” (Duas Cidades), o poeta mineiro ganhou maior projeção ao participar da antologia “26 poetas hoje”, organizada em 1976 por Heloisa Buarque de Hollanda. Seu lançamento mais recente é “Francisco Alvim - Oitenta anos”, plaquete produzida em 2018 pela Quelônio com poemas de todos os livros, selecionados pelo poeta Heitor Ferraz Mello. A segunda edição da antologia, lançada no primeiro semestre deste ano, está disponível no site da editora. 

“Tomei o caminho mais prazeroso: reler toda a poesia de Chico, desde ‘Sol dos cegos’ de 1968 até aos poemas inéditos publicados em jornais, revistas e outras publicações (material que comecei a colecionar quando fiz meu mestrado sobre sua obra)”, lembra Heitor Ferraz. “Para essa pequena amostra, tentei escolher poemas significativos daqueles dois registros típicos de sua poesia: o dos poemas mais notadamente líricos, e o das falas, com aqueles entrechos que ele desentranha da vida cotidiana e trabalha com precisão de ourives”, complementa. 

No final da plaquete, Heitor incluiu dois poemas inéditos em livro: “Peço tempo” (“uns dez minutinhos/ uma meia-horinha”) e outro com trecho de entrevista concedida pelo escritor à amiga, também escritora, Vilma Arêas. “Soube depois que ele não apenas gostou daquele “poema desentranhado” como o incorporou em suas leituras. Foi assim que, sem querer (ou quem sabe malandramente?), me tornei parceiro deste poeta que tanto admiro”, conta Heitor.

Eis a parte da entrevista de 2018 que foi desentranhada por Heitor Ferraz: 

Como você se sente, à beira dos oitenta?

Como aos nove, mal pacas.

Refiz a pergunta em 2025. A resposta mudou um pouco. Ou “um pouquinho”, no diminutivo que marca a obra do contista Dalton Trevisan (“Aprendi mais com ele do que com muitos poetas”) e tantas vezes aparece nos versos de Alvim. 

Como você se sente, à beira dos noventa? 

Melhor? Um nadinha de nada. 

compartilhe