Depois de algum tempo sem atividades públicas, você participou, em maio, do festival Poesia no Centro, em São Paulo, em mesa com Alice Sant’Anna e Heitor Ferraz e ainda gravou entrevista para o podcast da revista 451, com Paulo Werneck e Bruna Beber. Como foi?
Eu vinha naquele passo vagaroso que tem sido o meu depois que entrei na década dos 80. Assim, meio dançado, você vai perdendo o contato com o chão, que vai te dando um ritmo de dança em vez de passos corretos e certos. Quando veio esse convite dizendo que iam fazer um festival e estavam prevendo uma mesa para eu participar, eu me senti sacudido. Contrariou um pouco os meus planos de continuar quieto e esperando um sinal qualquer. Estou numa fase de estar sempre escrevendo uma coisinha ou outra, mas muito ruins. Estava esperando um sinal de fora qualquer. Me deu uma vontade súbita e falei: “Eu vou.” Lá fizeram um banzé, foi uma recepção muito boa. Me diverti muito com poetas de grande valor e pessoas queridas e amigas, foi verdadeiramente uma festa. Eu era o mais velho também. Antiguidade também conta. Não sei se ainda conta no Itamaraty...
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Na poesia também conta?
Na poesia também conta. Quer dizer, eu sou o remanescente de uma última estação, o título formidável de um livro que me escapa agora o nome do autor (Jay Parini, sobre os últimos dias de Tolstói) e tem uma apreciação política fantástica.
O que achou do que viu do festival de poesia?
Fiquei muito impressionado com o pouco que vi. Porque eu tô com limitações muito grandes de resistência física e de mobilidade também.
Teve a impressão de que a poesia está muito viva, com pessoas que a vivem com muita intensidade?
Muita, muita intensidade. Agora tem uma coisa: eu acho que a poesia nunca esteve morta. Eu participei de vários festivais, vivi desde os anos 50, 60. Nos anos 60, teve muita inquietação na área da poesia. A coisa começa ali nos anos 60. E vem a expressão justamente nos anos 70, quando ela se individualiza. Então, ela nunca esteve morta. O que a poesia tem é esse esforço permanente de ajustar-se e atingir o seu tamanho. Há épocas que ela diz mais, outras que diz menos. Nós passamos por uma idade de ouro. Os mais velhos somos herdeiros de uma idade de ouro, que é a dos modernistas. O modernismo literário do Brasil teve uma influência colossal nessa minha geração, que se identificou muito com os marginais, não é? E também com outras linhas, as vanguardas…
Antonio Candido fala sobre os momentos decisivos da literatura brasileira. Para a sua poesia e para sua geração, esse momento decisivo foi o modernismo?
Para mim, foi. A partir dos modernistas, eu acho que a literatura sofre um processo de atualização, porque ela tem de ser atualizada. E ela é sempre, ela tem uma dinâmica de atualização muito forte na poesia também. Então, para nós foi o modernismo. Mas há grandes momentos na literatura brasileira também no romantismo e com os árcades. Tenho pouca memória, mas sou capaz de recitar pelo menos uma quadra de poema de Cláudio Manuel da Costa.
Destes penhascos fez a natureza
O berço, em que nasci! Oh quem cuidara,
Que entre penhas tão duras se criara
Uma alma terna, um peito sem dureza!
A parte mais bonita é a que ele fala das penhas de Minas. Esse poema é maravilhoso. E tem, no romantismo, Gonçalves Dias: “Leito de folhas verdes” é uma maravilha. Quem me chamou a atenção para ele foi a minha mulher (Clara Alvim). Sem ela, realmente, eu não teria chegado aonde cheguei. Eu não tô pondo nas alturas esse lugar, mas cheguei aqui. E ainda falta um bom pedaço que pode me por lá para baixo (risos). Vamos ver.
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Por que Minas rendeu tantas palavras, tanto na prosa quanto no verso?
Porque a gente não perde os laços. Os mineiros não perdem. Isso é bom e ruim. Em geral, o mineiro é tão ruim que, quando ele é ruim, sublima um pouco o lado bom para aguentar a parada de si próprio. Eu dividi a minha biografia em duas partes: a carioca e a mineira. Primeiro, eu não tenho nenhuma memória (inicial) de Minas. Eu nasço em Araxá, mas quando tinha dois anos saímos de lá. As minhas primeiras lembranças são do mar, do Leblon. No Rio, eu fico até os sete anos. O papai (Fausto Alvim, nomeado prefeito de Araxá por Getúlio Vagas em 1930, e posteriormente nomeado presidente do IAPC – Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários) teve uma vida política muito intensa e dramática. Ele veio de Araxá porque o Getúlio ia lá tirar férias, gostava de prosear com o velho (Fausto Alvim, pai do poeta), que empolgava todos que o ouviam… ele (o pai) tinha uma força extraordinária, uma vitalidade. Entrega total à vida pública. Uma pessoa de vida fantástica, mas muito dramática. E a família participava muito disso. Tenho poemas inteiros que pegam a fala de Minas. Muitos deles foram copiados do que papai dizia e eu escutava. Papai tinha uma alma poética. Ele falava poesia. Era um poeta sem saber que era, sem nenhum compromisso com a poesia. A fala dele eu simplesmente transcrevi.
Você está dizendo que a fala do mineiro tem poesia?
Já tem a poesia. É impressionante! Só saber escutar.
Você acha que o Drummond também soube escutar?
Drummond é uma outra história, uma coisa extraordinária. Tem três faixas que eu gosto da poesia dele que vão ficando. Quer dizer, toda a poesia dele é um assombro. Mas aí você tira o seu pedaço, que vai sendo coado pelo seu próprio tempo. Para mim, é o primeiro, “Alguma poesia”, e “Brejo das almas”. Depois eu salto para o “Boitempo” e “A falta que ama”, que é uma parte do “Boitempo”, mas como um livro quase que separado. São esses três (os favoritos): “Alguma poesia”, “Brejo das almas” e “Boitempo”. E tem poemas fora desses três livros que eu adoro. “Edifício São Borja” (de “A rosa do povo”) é um poema admirável que influenciou a sonoridade de um poema meu (“Quatro contrafações”, de “O metro nenhum”). “Edifício São Borja” quase chega ao nível de “Relógio do Rosário”, de “Claro enigma”, um poema que tem o que há de mais admirável, sobre a dor de viver. Eu gosto até mais do que de “A máquina do mundo”. Drummond realmente é um poeta descomunal.
E Pedro Nava?
Nava foi uma coisa incrível. Ele era muito amigo do Dr. Rodrigo (Melo Franco de Andrade, fundador do órgão de proteção ao patrimônio histórico que se tornaria o Iphan, e pai de Clara Alvim, professora aposentada da Universidade de Brasília e esposa do poeta) e tinha um encanto pessoal enorme. Estive com ele poucas vezes, mas a gente estabeleceu logo um nível de convivência. Ele escreveu para mim um cartão bonito e carinhoso sobre “O sol dos cegos”. Me fez muito bem.
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O que o impressionava na escrita dele?
O que há de frescor de Minas. Aquela alma lírica e absorvida pela vida e as delícias do seu tempo. Você sente o Rio de Janeiro, você sente Minas. O início de “Baú de ossos” é um alumbramento: ele pega todo o frescor da origem nordestina da família... Você sente o Nordeste. O vento enchendo a casa de areia por debaixo da porta, o ar da praia, a coisa dos coqueiros. A paisagem nordestina vai se desenhando com a minudência de uma prosa mineira cerrada, bonita, com o vigor da inteligência. Uma secura metafísica no sentido em que a metafísica pode ser materializada. Tem o fulgor da inteligência, a claridade da grande Grécia. É uma coisa que vem de muito longe. Um sol permanente que brilha. Olhos abertos, mas frios, com um certo distanciamento. E um frescor, uma cor, que é o contrário da via dos baianos. É a via de Minas, aquela coisa serena, aquela coisa absurda que tem a escrita mineira.
Na entrevista ao podcast da revista 451, você fala que tem horror de escrever. É isso mesmo? Mas gosta de ter escrito?
Faltou situar um pouco mais esta frase. O aspecto do horror vem porque tive problemas muito graves de aprendizado. Sofri de um problema de atenção, que nas gerações posteriores, seria diagnosticado com dislexia. Tive que superar essa incapacidade de prestar atenção. Foi terrível. Era um mau aluno, fui reprovado várias vezes. Tinha um primo adorável, Marco Paulo, que morreu muito cedo e morava no Rio de Janeiro. Quando ele vinha, via que ele tinha uma amplitude de fala, uma inteligência... Eu me sentia diminuído intelectualmente, me intimidava. Com meus irmãos eu não sentia isso. Mas com ele, sim.
Mas o que você está dizendo é que escrever sempre foi sofrido?
Sempre foi e eu tive que superar. A carreira diplomática, feita de escrita o tempo todo, foi o que, de certa forma, me salvou. Escolhi uma carreira dificílima, que exige uma formação rígida. Em vez de fugir e de me apagar, eu fui resistindo. Mas com muito esforço.
Os poemas também nascem de muito esforço?
Sim. Eu me esforçava muito. Até o momento em que, de repente, entrei numa fase mais sossegada, suportável, não prestava tanta atenção. Aí consegui viver, estabelecer um vínculo qualquer, inclusive me surpreender com a quantidade de coisas de conhecimento que fui adquirindo por vias transversas e sofridas. Então, se esse processo foi ruim por um lado, por outro me deu uma certa integridade de caminho, um acesso a coisas que, no sentido da superação, se tornaram mais minhas.
Você escrevia mais à mão ou à máquina?
Sempre à mão. Os poemas inteiros repetidos. Sinto que meus poemas foram ganhando autonomia na medida em que se aproximaram da oralidade. Isso foi um componente de identificação com os marginais, essa linguagem solta, rebaixada, não obedecendo regras, que se faz na lembrança de frases. O ritmo do verso vem da questão rítmica, dentro de uma postura continuada de linguagem, com uma métrica própria. Antes dessa identificação, eu assumi uma quebra, porque eu tinha muita orelha de poeta, rimas internas, ainda um ritmo metrificado. Depois se soltou mais. O ritmo se tornou também visual, com os cortes dos versos. Foi um processo engraçado.
Você continua escrevendo à mão?
A primeira versão sempre nasce à mão. Mesmo trêmula, nasce à mão. Faço de novo, de novo, repito. Essa repetição diminuiu nos anos mais recentes. No “Elefante”, eu já estava diminuído. Os versos ficaram mais curtos e o poema saía menor. Não sei se isso resultou em poesia. Até hoje eu tenho dúvidas.
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Por isso, um de seus poemas em “O metro nenhum” diz “não é desconfiança/ é falta de certeza”?
É exatamente isso. Até hoje. E em todos os planos. Isso vale para tudo. Para a poesia também. Mexe com a desconfiança mineira.
João Cabral de Melo Neto dizia que sabia quando a poesia estava pronta porque ‘escutava’ um clique, como se tivesse fechado um estojo. Você também escuta?
Esse clique existe. Mesmo quando o poema é ruim, ele precisa fazer clique. Às vezes você melhora. Mas não pode ir além naquele momento. É um poema no qual não se pode confiar: vale, está querendo sair, mas não saiu. Tem uns que você consegue consertar. No meu caso, às vezes é uma palavrinha que falta. É a questão da precisão.
E você percebe isso?
O desafio é ouvir o lirismo. O poeta tem de ter ouvido absoluto. Os que têm são mais felizes do que os outros, que gramam por não ter (risos).
Você já afirmou que a verdadeira linguagem da arte é quando somem o tempo e o espaço. Assim também é o poema?
Cada poema é adâmico. Revela um mundo único, um universo que se organiza como uma fala única e não vai ser repetida. Ou você chega lá ou não chega. E nem todos os poemas têm essa grandeza. Mas, quando você se defronta com esse problema da originalidade, do clarão absoluto da poesia... A poesia é uma linguagem de absolutos. Os grandes, Dante, Drummond, essa turma toda chegou (no clarão absoluto).
Talvez por isso Drummond tenha sido tão feliz com o título “Claro enigma”. Não deixa de ser também uma definição para poesia. Você concorda?
Inteiramente. É o que há de claridade. É luz! Uma luz absoluta. A luz de um Goethe. Eu tinha uma tradução excelente de Goethe. É um erro essa história de que não temos grandes tradutores. Felizmente o Brasil tomou um caminho e tem tradutores absolutamente fantásticos. Saiu agora uma tradução belíssima do (Paul) Celan, feita por esse rapaz, Guilherme Gontijo Flores (lançada em edição bilíngue pela editora 34). Os (irmãos Augusto e Haroldo) Campos abriram essa floresta de tradutores.
Mas a sua poesia nunca flertou com o concreto...
Não. Porque eu acho, inclusive - e não quero pegar essa cisão que sempre houve - que essas lutas são inevitáveis na poesia. O poeta tem sempre uma rejeição de princípio. É um ser eletivo: escolhe seu grupo, sua igrejinha. Trabalha num campo que não é como o da prosa. Mexe com a essência da língua. Então a divergência ali é feroz. Nasce em todos os tempos. A entrada da poesia nos tempos modernos se dá com a grande poesia de Baudelaire, Rimbaud... Faziam parte de grupos ferozes, era uma briga só. Claro, você pode brigar com boas maneiras ou de forma escrachada. Mas há rivalidade, uma coisa muito sensível nessas tribos poéticas. Evidentemente, eu tenho as minhas. Meu partido foi tomado, tenho restrições aos poetas concretos. Mas não deixo de aproveitar. É provável até que tenha uma fase que escapa desses conflitos. Eu vivi isso como tantas outras coisas.
O mais curioso na sua trajetória é que, quando você “começa” nos anos 70, já é o mais velho daquela turma de poetas jovens (os “marginais”). Só que, ao mesmo tempo, você é o mais moço de uma tradição da poesia mineira...
Sem dúvida. A começar pelas minhas irmãs. Lucinha (Maria Lúcia Alvim) é sete anos mais velha e Ângela, que foi minha mentora tanto quanto foi de Lucinha, era onze anos mais velha.
É por isso que, em “Elefante”, há um verso que diz “órfão de muitos pais e muitas mães”? O poeta está sozinho no mundo?
É verdade. O que diz esse verso é que, de alguma forma, por mais que você tenha muitos pais, muitas mães, resulta em nada e em ninguém. Você continua órfão de todos os lados. Está com sua folha de papel e sua orfandade é maior até do que a orfandade verdadeira. Porque o poeta está realmente sozinho no mundo. É dono do seu nascimento (e nem tanto porque é doado, com a companhia da mãe no ventre). Mas a morte é solitária. Todos os poetas são absolutamente solitários, a não ser os que não se liberam de seus progenitores.
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Então é necessário ser órfão para ser poeta?
Sim. Em algum momento (o poeta) tem que deixar o pai. Mas a poesia é tão misteriosa e encanta por tantos lados... Eu não quero tomar partido. A poesia é ampla, geral, chega a ser desesperadora. Como dizia o (Manuel) Bandeira: nós vivemos dentro do líquido amniótico. É pura poesia a vida vir dessa forma. Você pode não ser poeta, mas está embebido dessa graça. Talvez seja este o enigma do Drummond: o enigma amniótico (risos).
Mas você acabou não respondendo se gosta de ter escrito...
Tem horas (que sim). Pode ser uma ilusão, mas tem horas que sinto que estou chegando com a mão que deve ter alguém, uma força qualquer, que pode vir de mim ou de outras coisas. Aí é realmente sublime.
E, quando publica, gosta de ter publicado?
Gosto muito, mas com mixed feelings. Tem momentos em que me acho um poeta. Mas, mais frequentemente, sofro de me saber não poeta. Com a poesia você sente os dois lados: ou você segura a mão dela (e ela te segura pela mão) ou tem horas que você acha que não chegou lá e o que você faz é uma merda. Não tem outra palavra.
Você não acha que é muito rigoroso consigo mesmo?
Não! Isso é um sentimento profundo. Tenho impressão de que o Drummond também deve ter sentido isso porque ele dizia: “Não sou o tempo todo poeta”. O Guimarães (Rosa) também disse: “Eu me sinto tão vazio”. É uma força negativa que te corrói. Não é um encantamento. É uma merda ser poeta. Minha irmã Ângela ficou muito doente no fim da vida. No auge da doença, ela me disse: “Não faça isso (poesia). Saia dessa. Você sofre muito.” É porque você se sente o último dos mortais. É mais uma deficiência das muitas que a vida me fez sentir.
O poema precisa ser coado?
Sim. E o coador da poesia é o tempo. O tempo precisa passar. Por isso, nunca sei direito o momento (de publicar) e sinto que tem poemas que estão em aberto. Eu tenho ideia de que, se publicar um novo livro, um dos poemas será em aberto. E, se publicar mais de um, este poema será repetido e acrescido com alguma palavra certa. Porque a poesia se faz com palavras de ultraprecisão. Parece um relógio suíço. E o que foi escrito eu vejo com palavras. Porque palavras são importantíssimas. E fazem cliques. Exatamente o clique do João Cabral. Tem que ter aquela palavra, não pode ser outra.
Você acabou de dizer: “Eu vejo com palavras”. Então, você precisa ver aquele poema, não é só escutar e escrever?
É escrita, escuta e visão. Os três e o tempo. Porque a poesia é uma rede que pega o “em volta”. Por isso a palavra ressoa tanto. Ela é um sino. Um sino sem badalo. Pega todo reboliço que está em volta, o tempo que você está vivendo, as suas dores mais profundas, e ressoa de uma forma silenciosa. Aliás, essa imagem me ocorre frequentemente.
A do sino? Olha Minas aí...
Minas e os sinos... Minas está no coração, na alma. Vivi cinco anos em Belo Horizonte e foi, nesse período, que me senti formado. Cheguei criança, com oito anos, e, cinco anos depois, saí com oitenta e seis (risos).