Aniversários
Os dias brilham
A fala do oráculo
adunca e avara
escava a pedra
escava
O mundo mudo
O sino que não soa
ecoa
os três futuros,
do passado
do presente
do futuro
O paredão cego da serra
escura
escuta, enxerga
‘‘o coador da poesia
é o tempo’’
Leia: Francisco Alvim se aproxima dos 90 anos como voz singular da poesia
*
A pedra
Árvores me atropelam
folhas e galhos dentro de mim
vazio de tudo o que sou
verifico que os vegetais, como as pedras,
apodrecem
*
Autoridade
Onde a lei não cria obstáculos
coloco labirintos
*
Leia: Francisco Alvim: ‘O coador da poesia é o tempo’
Paixão
Se tivesse um remedinho contra
eu tomava
*
Morte
Lembra daqueles músicos
na ponte
entre a igreja e a ilha?
Hoje voltei à mesma ponte
numa futura lembrança de mim
*
Elefante
O ar de tua carne, ar escuro
anoitece pedra e vento.
Corre o enorme dentro do teu corpo
o ar externo de céus atropelados. O firmamento,
incêndio de pilastras, não está fora — rui por dentro.
Reverbera no escudo o brilho baço
do túrgido aríete
com que distância e tempo enfureces.
Teu pisar macio, dançarino,
enobrece os ventres frios,
femininos.
A tua volta tudo canta.
Tudo desconhece.
Leia: Para Francisco Alvim, livro de Maria Lúcia Alvim foi uma revelação
*
Disseram na Câmara
Quem não estiver seriamente preocupado
e perplexo
não está bem informado
*
Moça de bicicleta
O céu que é mais um mar sobre a cidade
os pés descolando-se do chão
mergulho de um corpo em cores que são ventos
relva relva verde verde
pneus rilhando o saibro úmido
amarelas margaridas brancas
sons que lavam o ar
(O corpo: um sino ouvindo e repetindo a paisagem)
*
Leia: As muitas vozes sobre Francisco Alvim, o poeta que ensinou a ouvir
Arrependimento
Nenhum
Acho que cumpri
com meu dever
*
Daqui a pouco
eu morro
e você
nem me aproveitou
Leia: Francisco Alvim: a paisagem política, pictórica e amorosa do poeta
*
Poemas selecionados pelo autor
Revolução
Antes da revolução eu era professor
com ela veio a demissão da Universidade
passei a cobrar posições, de mim e dos outros
(meus pais eram marxistas)
Melhorei nisso –
hoje já não me maltrato
nem a ninguém
Pato sonso
Levei a tal da mordida
que se não mata
aleija
Disseram: um pato manco
Só que não sabiam:
das duas patas
Salva de silvos
Este cascavel
dobrei-o contrito
Genuflexo
Carrego-o comigo
em meu bolso-
enrodilhado
Naquele em que jamais
meto a mão
Convidou?
Melhor convidar
pra depois não dizerem
que não convidou
Decurso
os riscos não são tantos
em relação ao conteúdo
destaca a cooperação
o ingresso
a sucessão
o que é correto
porém
a lógica que ele usa
é a do ideólogo
a conduta
que nos causou tantos transtornos
tinha em verdade
um fundamento racional muito frágil
violou o princípio
o prêmio
é não ser punido
*
Daiane
Levanta essa cabeça
Daiane!
Pra andar
assim murcha
não dá