Uma das irmãs de Chico, Maria Lúcia Alvim (1932-2021) teve a sua poesia redescoberta nos últimos anos a partir do lançamento de “Batendo pasto”, publicado pela editora mineira Relicário em 2020. Escrito em 1982 na Fazenda do Pontal, da família Alvim, “Batendo pasto” teve os originais guardados pelo poeta e tradutor Paulo Henriques Britto por quarenta anos. “O livro vem marcado por um vocabulário do campo, da vida específica que lá se desenrola (...). Mas não celebra qualquer utilitarismo comercial: tudo é digno, tudo vive e compartilha espaço e seu oxigênio, os morcegos, as galinhas e os pavões, os gatos e as moscas, ou, no Reino Vegetal, tanto o arroz como o capim”, aponta Ricardo Domeneck, na apresentação do livro, ganhador do Prêmio Jabuti de Poesia de 2021.
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“Batendo pasto’ é tudo que já havia de versatilidade, rigor e experimento (na obra da autora)”, afirma, na edição, o poeta e tradutor Guilherme Gontijo Flores, um dos responsáveis pela publicação. “É um olho arregalado nos experimentos formais das vanguardas urbanas do século 20 e uma imersão de vida no mundo rural, no gosto de suas palavras, nos contornos e contorcionismos desta língua em muitas línguas”, complementa Gontijo Flores. Ele cita publicações anteriores da escritora como “Romanceiro de Dona Beja” (1979) e “Vivenda” (Coleção Claro Enigma, 1989) e qualifica Maria Lúcia, “talvez a mais vigorosa dessa família de poetas absurdos”, como “impressionante, versátil, tesa, pontilhista, de virtuoso domínio técnico”.
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Com formação autodidata, Maria Lúcia viveu os últimos anos de vida em Juiz de Fora. Chico Alvim conta que estava distante da irmã à época da publicação de “Batendo pasto” e conheceu o livro com os leitores. “Foi uma revelação, uma beleza”, afirma ao Pensar. “De certa maneira, é uma junção perfeita da experiência de vida dela nesse retiro no mundo rural, que é o mundo da minha família, na fazenda dos meus avós, com uma elaboração resultante da formação cultural dela.”
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Para Chico, a poesia de Maria Lúcia Alvim tem laços com os versos de Rimbaud e Baudelaire. “Ela leu esses autores como ninguém leu no Brasil. Ninguém pegou essa forma: ela bateu o olho e pegou no ar.” Em “Batendo pasto”, o mundo rural não é apresentado de forma ingênua. “É uma natureza extremamente forte, altamente elaborada. Não passa pela sensibilidade direta, mas por uma mediação intelectual, como a de Drummond”, aponta. Ele também enxerga nos versos uma relação “profundamente amorosa” com o ambiente que a cerca. “Por um certo parentesco, me lembra a potência do sentimento de Emily Dickinson”, afirma o irmão, sete anos mais novo. Entre os poemas que mais gosta de “Batendo pasto”, Chico Alvim destaca “Litania da lua e do pavão” (“uma obra-prima”) e o soneto publicado nesta página. (Carlos Marcelo)
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“Soneto I: do usufruto”
(De “Cinco sonetos encapuchados”)
Este soneto é em usufruto
das palavras que aqui vou perpetrar.
O fruto se retalha, dissoluto.
Palavras criam corpo no lugar.
Corre os olhos num rasgo de Absoluto.
Repare nesta folha, circular.
Nesse gomo roliço, diminuto.
Na pedra corriqueira, a ressudar.
Assim o Coração, pão de minuto.
Aquilo que na moita irá grassar.
Amor pardinho, virá o dia curto.
O Bem virá depois, para ficar.
Ao contrair o Sol, zarpo de bruto:
Meeira, me aboleto, sabiar.