O QUE É QUE A HUNGRIA TEM

O êxito de 'Sátántangó', único livro de László Krasznahorkai no Brasil

Obra do vencedor do Nobel de 2025 tem como um dos grandes êxitos a escolha formal que se encaixa com perfeição ao conteúdo

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Tadeu Sarmento

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Imaginem um assentamento sem nome, numa região rural da Hungria, onde se ouvem sinos tocados por ninguém (vindos de uma capela cuja torre foi destruída durante a guerra) e chove o tempo inteiro (razão pela qual tudo é coberto de lama e lentidão). Seus moradores? Não fazem outra coisa senão beber em tavernas (ou dentro de casas cheias de pratos sujos cobertos de moscas e aranhas) e dançar ao som de um acordeão enquanto sonham, chafurdam na miséria de suas próprias vidas e esperam uma dupla de salvadores com intenções duvidosas – cuja promessa é a de resgatá-los das ruínas de um passado onde foram exemplarmente esquecidos. Eis o cenário do magistral “Sátántangó”, primeiro romance de László Krasznahorkai, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2025 e único livro do autor publicado no Brasil – em 2022, pela Companhia das Letras, traduzido por Paulo Schiller (tradução vencedora na categoria Paulo Rónai do Prêmio Literário da Biblioteca Nacional em 2023). No início de dezembro, a mesma editora publica “O retorno do Barão de Wenckeim”, com tradução de Zsuzsanna Spiry.

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À primeira vista, um dos êxitos de Krasznahorkai é o de não indicar nada que vincule “Sátántangó” a um tempo histórico, de modo que tal vila burlesca pode se situar tanto à sombra do cadáver do comunismo estalinista quanto à mercê do fantasma de um feudalismo anacrônico, desgarrado da própria época, o que empresta ao romance uma aura distópica. Mas há outros grandes êxitos neste Tango de Satã: Irimiás e Petrina, a tão aguardada dupla de salvadores da pátria, marcham na direção da vila envoltos numa atmosfera suspeita, em especial Irimiás, que foi dado como morto e ninguém sabe ao certo se é um profeta, um informante do governo, um agente secreto, um falsário ou o próprio anticristo. É ele quem atiça de esperança e de decepção, de falta de sentido e de atitudes supersticiosas, o imaginário do assentamento, contribuindo com a sensação de ansiedade e mistério que se espalha sobre todos, como a chuva e a lama.

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É surpreendente o modo como Krasznahorkai imprime um lastro de embuste e pequenas mesquinharias nas relações humanas ao longo da história, o que torna os assentados tão pouco confiáveis quanto seus salvadores, além de estarem na iminência de confessar suas más intenções apenas pelo mérito de não conseguir escondê-las: casais adúlteros, ladrões, traidores, um médico alcoólatra que espia a todos acossado pela rotina repetitiva da chuva, suicidas, falidos, devassos – “não somos todos culpados?”, Irimiás perguntará no pronunciamento alucinado que abre a segunda parte do livro. Mas culpados de quê? Do colapso total de tudo?

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É esta discrepância óbvia entre a responsabilidade do indivíduo e uma ruína, ao que tudo indica, cosmológica, o que cola às ações dos personagens a marca d’água do humor; um humor à maneira de Gogol e Kafka – que surge perdido em algum lugar entre o cômico, o trágico e o absurdo que é depositar sua esperança em algo destinado a fracassar. Inclusive, Kafka é uma sombra opressiva presente em todo “Sátántangó”, a começar pela epígrafe que abre o livro, retirada d’O Castelo: “nesse caso eu o evito, esperando por ele”.

Mas o grande êxito do livro é, sem dúvida alguma, o estilo de László Krasznahorkai: a maneira como o autor conduz em ritmo obsessivo suas enormes e labirínticas frases, formando os longos períodos que cobrem várias páginas sem um único parágrafo, como cobre as ruas, os animais e as pessoas, a lama produzida pela chuva interminável. Uma escolha formal que se encaixa com perfeição ao conteúdo, a partir da própria aporia da epígrafe kafkiana, que sugere um movimento sem saída, com um passo que avança e outro que recua, de maneira que em “Sátántangó” não nos movemos em linha reta, mas em repetições variadas, que surgem de diversos pontos de vista – pois o que as longas frases trazem em sua elasticidade plástica é o mesmo tanto que elas encobrem: discursos, monólogos, pensamentos, múltiplas perspectivas engolidas por um narrador subjetivíssimo em terceira pessoa.

Não é à-toa que o livro se chama “O Tango de Satã”. A própria disposição dos capítulos é chamada de “sequência de danças”: seis capítulos para frente, na primeira parte, seis capítulos para trás, na segunda parte – enquanto o capítulo final é um círculo que se fecha e engole a própria cauda, em um ouroboros cujo intento é reforçar a ideia de um tempo apocalíptico que não cessa de acontecer nem nunca cessará, pois é a própria dança na qual o universo destrói tudo que cria, para criar novamente.

Em suma, uma escolha corajosa do Nobel este ano. Ao premiar László Krasznahorkai, a Academia Sueca laureia a máxima literatura, aquela que se opõe à barbárie ao servir de espelho para o melhor e o pior da humanidade. E escrita em húngaro: a única língua que, segundo um ditado popular, o Diabo respeita.

PS: Esta resenha é dedicada a Bruno Zattar, livreiro da Livraria Quixote e embaixador de “Sátántangó” no Brasil. Graças à sua paixão pelo livro, ninguém sai da livraria sem ouvir falar de László Krasznahorkai. Foi sua a indicação que me levou a comprar o livro, para devorá-lo em quatro dias.

Trechos de “Sátántangó”

(Tradução de Paulo Schiller)

“Numa manhã do final de outubro, não muito antes que as primeiras gotas das chuvas impiedosamente longas de outono se desprendessem sobre a terra rachada, ressequida, do lado ocidental do assentamento (para que depois o mar pútrido de lama tornasse intransitáveis os caminhos e também a cidade ficasse inacessível) Futaki despertou ao som de sinos”.

“Porém teve paciência para esperar e esperar, pois sabia que o caminho até a vitória final seria longo, como quando anos antes surpreendera pela primeira vez a Sra. Schimdt no moinho com um jovem tratorista e a mulher, em vez de dar um pulo e sair correndo envergonhada, permitiu que ele lá ficasse, com a garganta apertada até que ela nos braços do rapaz chegasse ao orgasmo”.

TADEU SARMENTO é escritor e leitor fervoroso.

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