O QUE É QUE A HUNGRIA TEM

O livro do Nobel Imre Kertész que desafia o senso comum sobre o Holocausto

Primeiro húngaro agraciado com o Nobel e sobrevivente de Auschwitz, escritor faz abordagem diferenciada na sua obra-prima 'Ausência de destino'

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O húngaro Imre Kertész ganhou o Nobel de Literatura de 2002. Boa parte de sua obra ficcional está disponível no Brasil, como "História policial", "Kadish para uma criança não nascida", "O fiasco", "A bandeira inglesa" e "Liquidação". Sua obra-prima, entretanto, é "Ausência de destino", na qual o Holocausto é visto pelo ponto de vista de uma criança, e que a Carambaia lança agora em velha tradução e novo título. 

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Como explica o tradutor Paulo Schiller, o título antigo, "Sem destino", tinha uma conotação quase positiva, de movimento, abertura, liberdade. Já o atual "Ausência de destino", de fato, é mais fiel à paralisia, à imobilidade, ao desespero, à falta de sentido que marcam a obra. 

A Hungria foi uma das grandes perdedoras da geopolítica do século 20: ela começa como parte fundamental da sólida e poderosa Monarquia Austro-húngara, perde a Grande Guerra e é desmembrada; transforma-se em um pequeno país que então se alia a Hitler e perde novamente outra Guerra Mundial; finalmente, some atrás da Cortina de Ferro stalinista, libertando-se somente em 1989. Hoje, no século 21, a situação também não está boa: seu primeiro-ministro é Viktor Orbán, expoente da extrema-direita, e o país já foi sancionado pela União Europeia por posturas antidemocráticas.

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Na virada do século 20 para o 21, entretanto, uma boa notícia: em 2002, um autor húngaro, Imre Kertész, venceu o Prêmio Nobel de Literatura. A notícia, porém, não poderia ser mais divisiva: Kertész era judeu, morava no exterior e escrevia sobre o Holocausto, um tema até hoje silenciado na cultura húngara, que evita reconhecer sua cumplicidade com os nazistas. Um dos líderes da extrema direita fez um comentário bem representativo sobre a premiação: "parabéns ao Senhor Kertész, mas ainda estamos no aguardo do primeiro Nobel de Literatura húngaro."

Kertész foi agraciado pelo Nobel "pela escrita que defende a frágil experiência do indivíduo contra a arbitrariedade bárbara da história". Muitos dizem, alguns como elogio, outros como crítica, que Kertész está sempre escrevendo sobre Auschwitz, mesmo quando parece que não está. Em resposta, ele adapta a famosa frase de Theodor Adorno, teórico da Escola de Frankfurt: não é que não se possa escrever poesia depois de Auschwitz, mas que talvez, depois de Auschwitz, só se possa escrever poesia sobre Auschwitz. 

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Em seu discurso de aceitação do prêmio, ele explicou: "O que descobri em Auschwitz é a natureza humana, o ponto final da grande aventura europeia de dois mil anos de história moral e cultural". Kertész faz questão de não singularizar a culpa pelo Holocausto na Alemanha, que segundo ele, e ao contrário da Hungria, já teria reconhecido sua responsabilidade - essa postura, aliás, é o que mais irrita a extrema-direita nacionalista húngara. Para Kertész, e também para Adorno, o Holocausto, muito mais do que um mero antagonismo entre dois povos, é o momento da história europeia onde todos os valores iluministas entraram em colapso.

Vida de Kertész

Em 1944, desconfiado que a Hungria estava se sentindo tentada a pular do barco perdedor, Hitler mandou ocupar o país. Os judeus húngaros, até então razoavelmente protegidos, começaram a ser enviados em massa aos campos de concentração. Em menos de um ano, mais judeus húngaros foram mortos do que judeus franceses durante todos os quatro anos de ocupação francesa. Kertész tinha quatorze anos, perdeu toda a sua família e somente sobreviveu por sorte: enquanto seu trem se aproximava de Auschwitz, pessoas ao longo dos trilhos gritavam "Dezesseis! Dezesseis!" Ao chegar, quando o médico lhe perguntou a idade, num estalo Kertész respondeu: "Dezesseis!" e não foi imediatamente enviado para o gás. Dezesseis era a idade de corte. (A história está em "Ausência de destino".)

Kertész passou menos de três dias em Auschwitz e foi enviado para Buchenwald, onde permaneceu pelo restante da guerra. Ele conta que sua família não seguia os preceitos judaicos, nem se considerava judia, mas que o campo de concentração lhe obrigou a ser judeu. "É algo que aceito, mas que me foi imposto."

Depois da guerra, Kertész tentou exercer o jornalismo na Hungria, mas logo se desiludiu com a ditadura comunista imposta pela União Soviética. Não emigrou por "razões ligadas à língua". Transferiu-se para a tradução, uma área com menos vigilância ideológica, e ganhou a vida vertendo literatura alemã ao húngaro. Nesse meio tempo, completamente livre por sua invisibilidade absoluta e por sua total impossibilidade de publicar, começou a escrever "Ausência de destino", publicado em 1975.

Pelas bordas

Algumas das melhores narrativas literárias do Holocausto tratam a questão pelas bordas. Por exemplo, os contos do polonês Tadeusz Borowski - um dos poucos escritores sobre o Holocausto que Kertész admirava e publicados no Brasil pela mesma Carambaia em "Adeus, Maria" - são impactantes pois são narrados do ponto de vista de um prisioneiro político relativamente privilegiado em relação aos judeus sendo exterminados ao lado. Em um dos trechos mais chocantes, o narrador está jogando futebol e, no curto espaço de um jogo, percebe que toda uma multidão de judeus que havia chegado de trem já tinha sido assassinada. 

Já "Ausência de destino" pode ser descrito como "O estrangeiro" no campo de concentração": o jovem narrador, apático como Mersault, naturaliza o mundo que encontra nos campos de concentração, chega a elogiar a eficiência alemã e encontra a felicidade onde pode, nos pequenos gestos, como se deitar por alguns minutos no meio do pátio. 

Ainda não preparado para o Mal com "m" maiúsculo, o menino sempre presume que todos os adultos são razoáveis e estão agindo de boa-fé. E, por ser uma criança, nós, as pessoas leitoras, consistentemente sabemos mais que ele. Ao ver a fumaça saindo das chaminés do crematório, ele comenta: "Seria tão grande a epidemia a ponto de existirem tantos mortos?" Essa ironia narrativa é dos principais atrativos da literatura vista pelos olhos de crianças: as pessoas leitoras adultas se sentem inteligentes sem fazer muito esforço.

Uma crítica à literatura do Holocausto

"Ausência de destino", escrito em pleno silenciamento do autor sob a ditadura comunista, não é apenas sobre o nazismo, mas sobre o totalitarismo de modo geral. A rejeição da obra na Hungria, a rejeição de sua mesma possibilidade de existir, moldou sua escrita, sua eventual publicação e sua posterior recepção.

Kertész começou a escrever "Ausência de destino" em 1960 e o romance só foi finalmente publicado em 1975, exatos trinta anos depois do final da guerra. Ao contrário de tantas obras escritas no calor do momento, quando os autores contavam apenas com suas próprias experiências - como os contos do polonês Borowski - "Ausência de destino" foi escrito em grande parte em reação à literatura sobre o Holocausto, como uma crítica consciente a ela. Ao contrário de Borowski, que se suicidou em 1951, Kertész teve trinta anos para ler e refletir sobre a literatura escrita pelos sobreviventes. Por isso, "Ausência de destino" não é somente mais um romance sobre o Holocausto: ele também é uma crítica violenta às limitações de toda a literatura sobre o Holocausto que o precedeu.

Não por acaso Kertész gostava tanto do filme "A vida é bela" (1997), do italiano Roberto Benigni. Para Kertész, uma vez que os testemunhos reais levam a descrição da realidade ao seu limite máximo, cabia à ficção descrever o indescritível. Para tanto, era preciso criar novas estruturas ficcionais que iriam além das limitações do testemunho, seja a criança como recipiente da narrativa ilusória do pai, no filme italiano, ou a criança como narradora, naturalizando o mundo que encontrou. De certo modo, "A vida é bela" e "Ausência de destino" são narrativas irmãs. (Kertész, por outro lado, detestava "A lista de Schindler", dirigido por Steven Spielberg em 1993, por considerá-lo um filme kitsch que não tinha a coragem de encarar a cumplicidade de toda a elite europeia no Holocausto.)

É nesse sentido que podemos entender o tom irônico, até ácido, do diálogo entre o menino-narrador e o jornalista, no último capítulo. O menino, livre do campo de concentração e de volta a sua cidade, encontra um jornalista que se oferece para contar ao mundo sua história, mas, apático e sem nem entender que viveu acontecimentos históricos, mal entende a proposta. Talvez o jornalista fosse bem intencionado e até acreditasse em suas próprias palavras. Mas Kertész, escrevendo na década de 1970 em uma ditadura comunista que negava sua cumplicidade com o Holocausto, sabia que esse tipo de testemunho que o jornalista se propunha escrever não daria em nada. "Ausência de destino", o romance, é uma tentativa de fazer, na ficção, o que esses relatos não conseguiram realizar enquanto testemunho. Considerar a obra de Kertész como mero testemunho é desrespeitar toda a sutileza do seu artesanato estético, ficcional, artístico, literário.

A felicidade no campo de concentração

A maior de todas as provocações ele deixa para o final de "Ausência de destino":

"Lá, entre durezas, havia, na pausa das torturas, alguma coisa que se assemelhava à felicidade. Todos perguntam apenas das condições, dos "horrores", ao passo que, para mim, a experiência mais memorável é esta. Sim, da próxima vez, se me perguntarem, eu deveria falar disso, falar da felicidade nos campos de concentração."

Como contraponto a todos os testemunhos reais de horrores sem fim e já se antecipando a obras maniqueístas e simplistas como "A lista de Schindler", Imre Kertész nos oferece uma narrativa infantil onde um jovem Mersault consegue cavar um espaço de felicidade em pleno Auschwitz. 

“Ausência de destino”

De Imre Kertész

Tradução de Paulo Schiller

Carambaia Editora

232 páginas

ALEX CASTRO é escritor, autor de livros como "Outrofobia" (2015), "Atenção" (2019) e "Mentiras reunidas" (2023).

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