Clima afeta saúde e eleva risco de novas pandemias, alertam especialistas
Aquecimento global, eventos extremos e avanço urbano expõem população a doenças, estresse térmico e surtos virais cada vez mais frequentes
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Siga no“Antigamente, falávamos: ‘tal mês vai fazer frio’. Sabíamos o que esperar das estações. Agora, não. Chuva, por exemplo, a gente não sabe mais quando é a época”, destaca Mara Rute Lima de Souza, de 79 anos. A aposentada, que mora há 59 anos em Belo Horizonte, percebe que, a cada ano, as estações se tornam mais caóticas e menos definidas. O que parece um drama individual, na verdade, é vivenciado por milhões de pessoas.
A relação entre o corpo humano e o ambiente tem se tornado cada vez mais frágil diante de um planeta em transformação acelerada. O aumento das temperaturas, o desmatamento, a alteração dos ciclos naturais e a migração de animais silvestres para áreas urbanas compõem um cenário propício a incômodos físicos e psicológicos, além de surtos de doenças infecciosas, como dengue, gripe aviária e até novos vírus com potencial pandêmico. Antes vista como um problema distante, a crise climática é hoje uma realidade.
“O planeta passa por ciclos naturais de mudança, que variam entre 20 e 40 mil anos. Porém, temos observado, principalmente a partir dos anos 1980, uma mudança no padrão de comportamento do sistema climático, com uma característica importante: ela é curta e intensa”, explica o professor Alecir Moreira, do Programa de Pós-graduação em Geografia – Tratamento da Informação Espacial, da PUC Minas. “O planeta está se aquecendo com muito mais intensidade. O último relatório do IPCC destaca como isso tem relação direta com a ação humana”, complementa.
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O relatório citado é o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), de 2023. Segundo o documento, as emissões de gases de efeito estufa, o uso insustentável da terra e da energia - incluindo o desmatamento, aliados ao estilo de vida e aos padrões de consumo de países e indivíduos -, alimentam o aquecimento global.
De acordo com Alecir, alterar a concentração de gases como dióxido de carbono, metano e óxido nitroso - resultante da queima de combustíveis fósseis, da pecuária e do uso de fertilizantes sintéticos, muda a troca de energia entre a superfície da Terra e a atmosfera. “Com mais radiação infravermelha retida, o calor se intensifica. A ação humana, ao lançar mais carbono na atmosfera, está diretamente relacionada ao aquecimento observado nos últimos anos.”
Quando vira doença
Entendida essa dinâmica, é possível afirmar que as mudanças climáticas já afetam diretamente diversos aspectos da vida humana, incluindo a saúde. Ondas de calor, por exemplo, são cada vez mais frequentes, prolongadas e intensas, especialmente nas grandes cidades.
De acordo com o doutor em meteorologia Anderson Nedel, professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) e pesquisador em biometeorologia humana, diversas pesquisas já demonstram a relação entre temperaturas elevadas e o agravamento de doenças.
“Há uma associação com doenças cardiovasculares e respiratórias durante períodos de calor extremo. Segundo o IPCC, o aumento da temperatura global é evidente, e há limites fisiológicos para o corpo humano. Quando esses limites são ultrapassados, surgem sintomas como fadiga extrema e agravamento de quadros clínicos, especialmente entre as populações mais vulneráveis.”
Bairros com pouca vegetação e grande cobertura de asfalto registram sensações térmicas acima da média. São também os mesmos locais com maior densidade populacional. O resultado é a sobrecarga dos sistemas públicos e o aumento de casos de doenças relacionadas ao estresse térmico.
Vírus que se aproximam
Além dos eventos extremos, como as enchentes no Sul do Brasil ou o período de seca vivido pela capital federal que, em 2024, enfrentou 155 dias consecutivos sem chuvas, o aquecimento global e o desmatamento criam condições ideais para a proliferação de doenças transmitidas por vetores, como arboviroses, escorpiões, morcegos e macacos. Esses animais passam a ocupar áreas urbanas à medida que seu habitat é destruído.
“O aumento da temperatura e da irregularidade das chuvas favorecem a reprodução do Aedes aegypti, o que eleva os casos de dengue, zika e chikungunya”, explica Gláucio Diré, biólogo e professor da Estácio e da UERJ. Ele ressalta que o negacionismo científico dificulta a compreensão, por parte da população, de como tudo está interligado na biosfera.
Com a aproximação entre humanos e animais silvestres, cresce também o risco de zoonoses, doenças transmitidas de animais para pessoas. “É o caso da raiva, da febre amarela e de possíveis novas doenças, como a própria COVID-19”, afirma o professor. “Há especulações de que o ‘ponto zero’ da pandemia esteja relacionado a esse desequilíbrio ambiental. Independentemente da origem exata, o risco existe e cresce.”
Riscos de uma nova pandemia
Outro alerta vem do vírus influenza, responsável pelos recentes casos de gripe aviária (subtipo H5N1). “Esse vírus tem alto grau de contágio entre aves domésticas e selvagens, e pode atingir humanos que tenham contato com animais ou ambientes contaminados”, explica Gláucio. Ele destaca quatro dimensões do problema: a avicultura, a saúde pública, o impacto ambiental e o risco de pandemia.
“Em humanos, os casos ainda são raros, mas podem ser graves. A taxa de letalidade pode chegar a 50% dos casos conhecidos”, alerta. Em países com sistemas sanitários mais frágeis, como na Ásia e África, o risco de mutações do vírus é ainda maior. E, uma vez adaptado à transmissão entre humanos, o cenário pode se tornar crítico.
O tema também foi abordado pelo imunologista Luiz Vicente Rizzo, em palestra realizada em 12 de maio, na sede da Bayer, em São Paulo, durante a primeira edição da Jornada Galápagos de Saúde, promovida pela Galápagos Newsmaking. Diretor-superintendente de Pesquisa e Desenvolvimento do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, Luiz relatou que desde a pandemia de COVID-19, a humanidade já esteve próxima de enfrentar novas pandemias.
“Desde a COVID, já passamos três vezes muito perto de novas pandemias, todas relacionadas à influenza”, afirmou. À reportagem, ele enfatiza que esses episódios não evoluíram porque o vírus ainda não conseguiu se adaptar totalmente à espécie humana. “Foi mais por sorte do que por juízo”, resume.
Assim como os outros pesquisadores, ele se diz preocupado com a destruição dos nichos ecológicos. “É essa aproximação que permite o salto do vírus de um animal para o ser humano. Se o hospedeiro original morre e o vírus se adapta ao novo, temos o surgimento de uma nova doença infecciosa.”
Segundo pesquisa da revista Nature, uma das primeiras a projetar como o aquecimento global aumenta o risco de transmissão viral entre espécies, até 2070 diversos mamíferos serão forçados a deixar seus habitats em busca de climas mais amenos. O Brasil aparece como um dos locais de risco por sua biodiversidade, junto com regiões da África, Índia e Indonésia.
Belo Horizonte, por exemplo, é uma capital cercada por áreas naturais. À medida que a cidade avança sobre essas regiões, que muitas vezes não são florestas, mas matas menores, aumenta a chance de contato direto com animais silvestres portadores de vírus. “Essa proximidade é o que oferece risco. E isso pode ser evitado com ações de preservação e planejamento”, destaca o imunologista.
Histórias que traduzem o impacto
A advogada Lilian Cristiane Goulart, de 41 anos, sentiu na pele os efeitos das arboviroses. Ela teve dengue, chikungunya e duas suspeitas de COVID-19. “A chikungunya foi muito pior. Dores insuportáveis por cerca de três meses. Dormir, caminhar, tudo era difícil. Precisei tirar sangue em pé, de tanta dor para me sentar”, relata. A dengue foi há 15 anos, mas Lilian se lembra bem do sofrimento. “Fiquei com manchas pelo corpo e coceira por mais de um mês. Precisei me afastar pelo INSS.”
Moradora de Santa Luzia (MG), ela aponta outro agravante: a falta de saneamento básico. “Moro há 14 anos aqui e sempre tivemos esse problema.” Ela também testemunhou enchentes e deslizamentos no bairro. “Quando o calor vem forte, a gente já fica com medo, pois sabe que vem chuva pesada em seguida.”
Já Mara Rute, além das três infecções por COVID-19, convive com sequelas. “A memória foi o que mais senti. Se eu não escrever tudo e colar na geladeira, esqueço.” A primeira infecção foi em 2021, quando já tinha tomado as primeiras doses da vacina. Para ela, o pior era o isolamento da família. “Meus filhos falavam que tinham medo de pegar. Tive que usar máscara dentro de casa, pois meu marido cuidava de mim e por sorte não pegou.”
Os relatos exemplificam o cenário: o clima já não é apenas pano de fundo. Tornou-se um agente ativo de desgaste físico, psicológico e imunológico. Os corpos, especialmente os mais vulneráveis, funcionam como termômetros do colapso ambiental.
O que está sendo feito?
Entre as iniciativas mais aguardadas está a COP-30, que será realizada no Brasil neste ano. A conferência deve cobrar metas mais ousadas de redução de emissões e adaptação à nova realidade climática. A Agenda de Paris 2030 segue como referência, mas exige ação prática. Seu objetivo é manter “o aumento da temperatura média global bem abaixo de 2°C em relação aos níveis pré-industriais” e buscar “limitar esse aumento a 1,5°C”.
Paralelamente, pesquisadores avançam em estudos que auxiliem políticas públicas. O professor Anderson Nedel coordena o projeto “Criação de um sistema de alerta à saúde do idoso baseado nas condições de tempo”, com apoio do CNPq e do Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde. A ideia é criar um sistema de alerta para mortalidade de idosos por doenças cardiovasculares relacionadas ao clima. “Vamos usar variáveis meteorológicas para identificar os períodos mais críticos. A ideia é antecipar riscos com antecedência”, explica.
O relatório "The 2023 report of the Lancet Countdown on health and climate change, publicado na revista Lancet", mostra que pessoas com mais de 65 anos e bebês com menos de 1 ano, os mais vulneráveis ao calor extremo, estão expostos hoje ao dobro de dias excessivamente quentes em comparação com o período de 1986 a 2005.
As mortes de pessoas com mais de 65 anos relacionadas ao calor aumentaram 85% em relação à década de 1990-2000, muito acima do crescimento de 38% que seria esperado se as temperaturas tivessem permanecido estáveis.
Se a temperatura média global continuar subindo para perto de 2°C acima da média histórica, as mortes anuais relacionadas ao calor poderão aumentar 370% até meados do século — isso, sem avanços substanciais na adaptação.
Nos EUA, já existem os cooling centers, espaços públicos climatizados onde pessoas vulneráveis podem se proteger nas horas mais quentes. “É uma ideia que poderia ser adaptada ao Brasil, com centros comunitários, escolas ou unidades de saúde servindo como refúgio térmico.”
“Queremos criar uma página, como os mapas da dengue, onde o cidadão e o gestor público possam consultar as previsões de risco à saúde nos próximos dias”, afirma o pesquisador.