O bordado como caligrafia da alma. Um saber ancestral que passa por um processo de transformação. De um desenho construído no silêncio, trabalhado como disciplina, numa delicada imposição pelos colégios e a sociedade, agora o que se compreende é esse fazer transmutar como linguagem de libertação. Em um segundo momento, uma arte que deixa o uso domiciliar e passa a ser ferramenta de expressão - não só para mulheres, mas por quem desejar adentrar esse universo. Hoje todo mundo faz curso de bordado e borda. É um verdadeiro boom.
Uma atividade que corre mesmo na veia, especialmente em Minas Gerais, berço do feito à mão. Quem não teve uma irmã ou prima que estudou num internato, onde a economia doméstica e bordado eram matérias curriculares? Quem não conhece alguém que pinta e borda e faz deste saber-fazer manual distração ou fonte de renda? Conhecer e enaltecer bordadeiras e bordadores é celebrar a comunhão de uma diversidade em particular. Um modo de ser que agora delineia novas ideias, inquietações, e conta histórias de vida, com protagonismo. Quando o assunto é saúde, estar entre linhas e agulhas influencia na própria qualidade de vida.
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Em Belo Horizonte, o Mãos que Bordam é um exemplo de como o bordado pode ser enriquecedor. O foco é a oferta de cursos de bordado, mas o ateliê no Gutierrez também promove aulas sobre outras artes manuais, como o crochê, conforme a demanda, como explica uma das coordenadoras, Lívia Coelho. Para o período de férias que se aproxima, estão na agenda dois cursos livres. Artista de Mato Grosso do Sul, Alan Vilar chega para ensinar bordado sobre folha seca, em 18 de julho. Gisele Vargas, de BH, ministra aula de aquarela, no próximo dia 26.
A origem do projeto leva ao ano de 2014. "O objetivo é unir as pessoas que amam o bordado, convidando quem quiser para bordar", conta Lívia. De uma família de bordadeiras, é a trajetória da mãe, Fátima Coelho, o embrião do trabalho. Fátima costumava dar aulas de bordado na capital mineira e fora do estado, e foi com o convite para participar de um encontro de bordado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que tudo ganhou uma nova dimensão.
Ela levou o trabalho de suas alunas para a palestra que iria ministrar - eram desenhos que partiam do molde das mãos das autoras, interpretados com figuras bordadas. Esperando a sua vez, Fátima uniu cada uma das mãos em uma peça maior, e o encanto foi absoluto. "Quando ela voltou de Campinas, criei uma página no Facebook. Foram chegando novas mãos - foram mais de 1 mil, de 17 estados brasileiros e sete países. Assim nascia o Mãos que Bordam", diz Lívia.
No princípio, o ateliê era na própria residência de Lívia e Fátima. Com a pandemia, a mudança para outro espaço foi um caminho natural. Hoje elas já estão na segunda casa - um lugar maior, que começou a funcionar há dois meses. Nesse ambiente, o projeto atende mulheres acima dos 40 anos (duas delas têm 89), em um total de 16 alunas, divididas entre seis a oito alunas por aula. No ateliê também há loja com oferta de produtos feitos ali, como almofadas, chaveiros, colares de macramê, tecidos e outros itens.
Existe ainda uma parceria com a Biblioteca Pública de Belo Horizonte, onde são oferecidos cursos de bordado básico e de aprimoramento, com 20 alunos por turma. As aulas no ateliê ocorrem três vezes por semana e o aluno escolhe o dia de sua preferência. Na biblioteca, são dois dias na semana, com a possibilidade de optar pelo dia ou a turma - se básico ou de aprimoramento.
Entre 22 e 26 de setembro, o convite é para o Encontro de Bordados - Educação e Sustentabilidade, que também vai incluir ensinamentos sobre aquarela e pintura bauer (estilo de artesanato rústico alemão que remonta ao século 17), uma semana inteira de imersão, com oficinas, palestras e mesas redondas.
"O bordado faz maravilhas. É um momento de relaxamento, de encontro. A pessoa se encontra consigo mesma, com o seu tempo, se reconecta com o que é e o que quer. Se conecta com outras pessoas, fazendo algo de que gosta", conta Lívia, que, aos 37 anos, tem formação como assistente social e arteterapeuta.
Para Fátima, de 67, a virada de chave foi em 2005, quando, por problemas de saúde, foi proibida de trabalhar - tinha um consultório onde atuava como pedagoga e terapeuta. A mãe e a tia sempre foram envolvidas com o bordado e, à época, moravam no segundo andar de sua casa. "Minha tia me chamou para ajudar em uma encomenda. Os primeiros 50 paninhos viraram 150 e o convite para dar aulas", lembra.
De lá para cá, são 20 anos de uma relação profunda e frutífera com essa arte, ensinando e aprendendo. Para Fátima, o bordado ajuda as pessoas a se libertarem de medos e tensões. "É uma terapia. Uma alegria revisar cada trabalho. O bordado significa liberdade de ser e fazer. Muitas alunas chegam tristes, deprimidas, e se vêem capazes de bordar. É gratificante ver os trabalhos expostos, sendo reconhecidos e admirados".
Aprendizado para a vida
A perito criminal aposentada Geralda Fonseca, de 57 anos, a Di, faz aulas de bordado com Fátima e Lívia há dois anos. Depois que uma amiga divulgou em redes sociais um post sobre o espaço, aconteceu seu primeiro contato com a técnica, em um momento difícil de sua vida, de tomada de decisões quanto a aposentadoria, relacionamento, mudança de casa e menopausa. "Foi tudo de uma vez só, um tempo de reflexão. Quando comecei a bordar, melhorou e não piorou mais. Aqui tudo é desafiador. É muito bom terminar uma peça, ajuda mesmo na sanidade, o que já diz o fato de ser um trabalho manual", conta.
Mãe e filha, Fátima e Lívia Coelho coordenam o projeto que transforma vidas
Para a administradora aposentada Telma Lorenzato, de 66 anos, bordar é seguir com a vida depois que parou de trabalhar em uma empresa com comércio exterior - o projeto aposentadoria, como brinca. Ela participa dos Mãos que Bordam há dez anos. No início, quando já fazia o bordado em ponto cruz, a intenção era se aprimorar na técnica para repassar para os alunos em uma igreja em BH, iniciativa da qual ela participa como voluntária.
Ficou sabendo através de uma amiga sobre o curso com Fátima na Biblioteca Pública. Hoje também já faz parte do ateliê. Para ela, bordar tem muitos significados. "Posso repassar meu aprendizado, socializar com os colegas, dar continuidade à minha aposentadoria", diz Telma, que também mantêm uma marca de bolsas de chita bordadas ao lado de uma prima. "Sempre gostei de trabalhos manuais, artesanato... Sempre que posso, divulgo".
Um saber para todos
Adir da Rocha Lelis Santos, de 62 anos, integra o grupo do Mãos que Bordam desde 2017. Já tinha contato com esse fazer em um grupo do Sesc Floresta, na capital. Foi onde conheceu Fátima, que logo convidou para uma oficina na biblioteca. Era o princípio de uma bonita amizade - conta que participa de todos os projetos de Fátima e Lívia.
"Elas se tornaram minha família. Para mim, o bordado acalma, faz conhecer boas pessoas, é um meio sadio, onde encontro novos amigos", conta Adir que, depois do falecimento da mãe, também tem no bordado um conforto em especial. "Minha mãe era bordadeira, fazia tricô, crochê, gostava de trabalhos manuais. Depois que morreu, eu me sentava, bordava, pensando nela. Preencheu não todo o vazio, mas me ajudou a lidar com sua partida".
Foi na vivência com uma namorada que o médico Antônio Penido, de 69 anos, começou a bordar. Ele conta que ia para a casa da companheira, que costumava ficar em seu ateliê costurando (fazia trabalho voluntário com costura), enquanto ele ia assistir alguma série na televisão. "Aí falei para ela que uma boa opção era que me ensinasse a costurar. Eu aprendi. Depois de um tempo, a vi com um bastidor na mão e pedi o meu. Ela já tinha comprado vários, e assim comecei a bordar", conta Antônio, sobre o encanto imediato.
Começou no Mãos que Bordam em 2024, primeiro na biblioteca, depois no ateliê, e hoje tem muitas peças expostas. Já montou um ateliê no seu escritório em casa e declara que, para ele, o bordado é uma libertação total. "Para mim a possibilidade de criação é a melhor parte. Você observar uma árvore, uma porta ou janela, fotografar e saber que dali sairá um bordado", diz, sobre o fazer que hoje é a lembrança viva dessa namorada, falecida em decorrência de um câncer.
A dona de casa Maria Alice Cabral Gonçalves, de 70 anos, encontra no bordado sua distração, seu relaxamento, sua cabeça fresca, em suas palavras. Como a profissão do marido fazia com que viajasse muito, ela nunca pôde trabalhar fora - sempre envolta nos cuidados com os quatro filhos. A família já viveu em 20 cidades diferentes - Belo Horizonte é o endereço atual.
Maria Alice conta que sempre apreciou o artesanato e uma atividade de que gosta, e pratica, é a pintura. "Quando cheguei do Rio de Janeiro para BH, queria fazer alguma coisa diferente, e descobri o bordado", diz, ela que faz aula no ateliê de Fátima e Lívia, perto de onde mora, uma vez por semana. Conheceu o projeto há dois anos, o que a faz aproveitar o tempo depois que as filhas casaram e formaram suas próprias famílias."É o meu primeiro contato com o bordado".
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