Pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) lideraram um estudo inédito que identificou propriedades imunomoduladoras e anti-inflamatórias em uma proteína da saliva do carrapato Amblyomma sculptum, vetor da febre maculosa brasileira.

Nomeada Amblyostatin-1, a substância pode abrir novos caminhos para o enfrentamento da doença, marcada por altas taxas de mortalidade, ajudando a entender como o carrapato modula o sistema imune do hospedeiro e facilita a infecção pela bactéria causadora da febre maculosa. A molécula também apresenta potencial para o desenvolvimento de medicamentos contra processos inflamatórios.

Financiada pela FAPESP (19/03779-5, 20/16462-7, 22/02742-3, 24/22525-2, 22/07724-3 e 23/07831-7), a pesquisa é resultado de uma colaboração internacional entre grupos do ICB-USP, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), da Czech Academy of Sciences (República Tcheca) e do National Institutes of Health (NIH), dos Estados Unidos.

“A saliva do carrapato é um coquetel de moléculas bioativas. Identificar uma delas com forte ação imunomoduladora, como a Amblyostatin-1, é um avanço significativo para entender como o vetor interage com o organismo do hospedeiro e transmite a febre maculosa”, explicou à Assessoria de Imprensa do ICB-USP Anderson de Sá Nunes, um dos pesquisadores responsáveis pelo estudo.

No Brasil, a febre maculosa é causada pela Rickettsia rickettsii, uma bactéria intracelular transmitida principalmente por carrapatos do gênero Amblyomma, como o Amblyomma sculptum. A doença é considerada grave, letal e de notificação compulsória: entre 2013 e 2023, foram registrados 2.059 casos e 703 mortes, o que representa uma taxa de mortalidade de cerca de 34%, segundo dados da Agência Brasil. Por se manifestar inicialmente com sintomas semelhantes aos da dengue e de outras doenças comuns, a febre maculosa costuma ser diagnosticada tardiamente, o que compromete a eficácia do tratamento. O diagnóstico precoce é decisivo para aumentar as chances de sobrevivência dos pacientes.

“Quando o carrapato infectado se alimenta, ele injeta na pele do hospedeiro tanto a bactéria quanto moléculas da saliva capazes de suprimir a resposta imune. Isso permite que a infecção avance de forma silenciosa”, disse o professor. “Estudar essas moléculas, como a Amblyostatin-1, nos ajuda a compreender os mecanismos que favorecem a transmissão da febre maculosa e pode, no futuro, orientar estratégias para bloquear essa infecção.”

A pesquisa foi publicada no periódico científico internacional Frontiers in Immunology.

Como a Amblyostatin-1 atua

A Amblyostatin-1 pertence à família das cistatinas, proteínas que inibem enzimas do tipo cisteíno proteases chamadas catepsinas. Essas enzimas desempenham papéis importantes no sistema imune e em processos inflamatórios. No estudo, a molécula demonstrou seletividade na inibição de catepsinas específicas, como a catepsina S e a catepsina L, associadas a processos de ativação de células do sistema imunológico.

A catepsina S, por exemplo, é essencial para a ativação de células dendríticas, enquanto a catepsina L atua na resposta inflamatória dos neutrófilos. Ao inibir essas enzimas, a Amblyostatin-1 demonstrou ser capaz de reduzir significativamente a ativação das células dendríticas e a inflamação cutânea em modelos animais.

“Sabíamos que essas moléculas poderiam modular o sistema imune, mas um estudo anterior, que teve a participação do nosso grupo de pesquisa, mostrou que a Amblyostatin-1 se destacou por ser a cistatina expressa em maiores níveis durante a alimentação do carrapato, o que sugeria um papel relevante na interação com o hospedeiro”, detalha Sá Nunes.

Além disso, a Amblyostatin-1 apresentou baixíssima imunogenicidade, ou seja, não induziu a produção de anticorpos nos animais. Esse é um fator importante para o desenvolvimento de medicamentos de uso prolongado, já que o corpo tende a neutralizar substâncias reconhecidas como estranhas. “Essa característica faz da Amblyostatin-1 um antígeno silencioso, ou seja, uma molécula que o organismo não reconhece como uma ameaça. Isso permite seu uso contínuo sem perda de eficácia, algo desejável em tratamentos de longo prazo para doenças inflamatórias”, complementa o professor do ICB.

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