Por que intoxicação com metanol causa cegueira?
Rapidez no atendimento médico é crucial para que danos à visão por contaminação de metanol sejam minimizados, dizem oftalmologistas.
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Entre os 22 casos de possível contaminação por metanol no Estado de São Paulo, dos quais cinco foram confirmados e 17 estão em investigação, ao menos três pessoas relataram terem perdido a visão — mesmo que parcial ou temporariamente — ou foram diagnosticadas assim.
Foi o que relataram à imprensa familiares de Radharani Domingos, que ainda está hospitalizada; e Diogo Marques, que também chegou a ficar internado e relatou perda de visão, a qual ele diz ter sido depois recuperada.
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Como a ingestão dessa substância tóxica pode causar tamanho mal para a visão, trazendo o risco de cegueira permanente?
Segundo a médica oftalmologista Ana Luísa Quintella Aleixo, o nervo óptico costuma ser uma das primeiras partes do organismo a ser afetada gravemente por conta da intoxicação com metanol.
Ela explica que este nervo é composto por fibras nervosas que levam sinais luminosos processados pela retina do olho até o cérebro.
O nervo óptico é "extremamente sensível", a médica acrescenta.
"A visão não é um processo somente do globo ocular, é um processo da interação do olho com o cérebro. E quem faz a ponte do olho com o cérebro é essa estrutura chamada nervo óptico", esclarece Aleixo, médica do Instituto Nacional de Infectologia da Fiocruz.
Quando o metanol, um produto que não deveria estar disponível para consumo humano, entra no corpo, é processado pelo fígado.
De acordo com Aleixo, ele então se transforma em formaldeído — conhecido também como formol, usado em colas industriais e para embalsamar cadáveres — e, depois, em ácido fórmico.
Esse ácido é o "verdadeiro veneno" para o corpo, afirma o médico oftalmologista Hallim Féres Neto.
"O ácido fórmico se acumula no corpo e atrapalha o funcionamento das mitocôndrias, estruturas celulares responsáveis pela produção de energia. Células do sistema nervoso dependem muito de energia para funcionar, incluindo o as células do nervo óptico e da retina", diz o médico, membro do Conselho Brasileiro de Oftalmologia e diretor da clínica Prisma Visão.
"Ao atacar o nervo óptico, e em menor impacto também a retina, perdemos a capacidade de transmitir a imagem do olho para o cérebro, e isso leva à cegueira."
Corrida contra o tempo
Os dois médicos entrevistados pela BBC News Brasil são unânimes: o atendimento médico rápido é fundamental para minimizar os danos à visão, outros problemas de saúde e o próprio risco de morte.
Segundo Ana Luísa Quintella Aleixo, "rápido" significa que o atendimento médico deve acontecer em até 12 horas após a ingestão do metanol. Nesse momento, não se deve recorrer a antídotos caseiros.
Hallim Féres Neto aponta que o tempo pode até ser mais importante que a própria dose.
"Doses menores sem atendimento rápido podem ser piores que doses maiores mas com suporte rápido e adequado", diz o médico.
"O tratamento inicial é sempre uma emergência: antídotos, hemodiálise e medidas para eliminar o veneno do corpo."
Mas a quantidade de metanol, claro, importa, lembra Aleixo.
"Quanto maior a dose, maior a quantidade de ácido fórmico produzida e maior a gravidade das lesões", explica a oftalmologista.
Há fatores de risco que podem piorar a situação, dizem os médicos, como doenças do fígado, deficiência de folato e de algumas vitaminas do complexo B, desnutrição e alcoolismo crônico.
Aleixo cita um estudo publicado em 2022 por pesquisadores poloneses segundo o qual entre 30% e 40% dos sobreviventes de intoxicações graves por metanol desenvolvem algum grau de perda de visão.
Se o atendimento for rápido, parte da visão pode ser preservada. Mas os médicos entrevistados dizem que, quando já existe perda, é muito difícil recuperar o que já foi perdido.
"Depois que o nervo óptico é lesado, a recuperação é muito limitada, porque não há uma terapia capaz de regenerar o nervo", explica a médica.
A partir daí, a assistência às vítimas envolve tratamentos com recursos ópticos de auxílio, apoio psicológico e outras terapias de reabilitação.
"É uma situação muito grave, muito triste. É uma tragédia essa intoxicação", resume a oftalmologista.
A Polícia Federal e a Polícia Civil de São Paulo estão investigando os casos no Estado, que ocorreram após a ingestão de destilados comprados em bares e adegas.
Dos 22 casos possíveis de contaminação, cinco envolvem mortes. Entretanto, até o momento, em apenas um desses casos há confirmação de que a morte se deu após a ingestão de bebida adulterada.
Ainda não se sabe se o metanol foi adicionado a bebidas falsificadas, ou se é um caso de contaminação durante a produção normal de um destilado — apesar das declarações dadas pelas autoridades até o momento apontarem para a primeira opção.
O metanol tem a aparência e o sabor do álcool, e os primeiros efeitos são semelhantes — pode haver náuseas, vômito, sensação de embriaguez e confusão mental.