Por Nat�lia Sousa

A Organiza��o das Na��es Unidas (ONU) define a Justi�a Restaurativa como aquela que permite a participa��o segura das v�timas na resolu��o dos casos e oferece �s pessoas que assumam a responsabilidade pelos danos causados, em uma oportunidade de se reabilitarem perante quem prejudicaram e � sociedade. O sistema de puni��o que predomina atualmente no Brasil n�o leva em considera��o as expectativas e necessidades das v�timas perante o crime, ignorando o contexto social como facilitador da viol�ncia. E um dos reflexos disso � que, em 2023, 38% das mulheres que sofreram viol�ncia de g�nero resolveram a quest�o sozinhas e 21,3% n�o acreditavam que a pol�cia pudesse oferecer solu��o. Os dados s�o de uma pesquisa do F�rum de Seguran�a P�blica e AzMina escreveu sobre as falhas do punitivismo nesta reportagem.
Regulamentada em 2016 pelo Conselho Nacional de Justi�a (CNJ), a Justi�a Restaurativa n�o � obrigat�ria. Cabe aos ju�zes, Minist�rio P�blico, agente judicial ou � pr�pria v�tima escolherem o m�todo, assim como decidir quais ser�o os casos tratados por esse olhar, j� que n�o h� regulamenta��o que pr�-define as situa��es.
Um mapeamento do CNJ de 2019 mostra o avan�o da pr�tica nos Tribunais de Justi�a e Regionais Federais. Entre os que adotam a perspectiva, 88,6% consideram que a Justi�a Restaurativa contribui para o fortalecimento da rede de promo��o e garantia de direitos, e 9,1% entendem n�o haver nenhum tipo de contribui��o. A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, declarou 2023 como o Ano da Justi�a Restaurativa na Educa��o, num plano de difundir pr�ticas para prevenir a viol�ncia nas escolas, nas quais muitas meninas e mulheres s�o v�timas.
D�bora Eisele Barberis, mestre em direito e pesquisadora do tema, v� como uma potencial ferramenta para acolher mulheres v�timas de viol�ncia de g�nero, mas tamb�m que cometeram infra��es. No entanto, reduzir a Justi�a Restaurativa a resolu��es individuais n�o cumpre seu real objetivo, segundo ela, porque a pr�tica tem a ver com a transforma��o coletiva. Na entrevista abaixo, ela analisa as potencialidades e as limita��es da abordagem, e tamb�m pondera sobre as adapta��es necess�rias para evitar a revitimiza��o.
AZMINA: Como surge a justi�a restaurativa e como ela pode ser aplicada em casos de viol�ncia de g�nero?
Ela surge na d�cada de 1970, pautada em experi�ncias de constru��o de justi�a de comunidades ind�genas, entre elas a do Povo Yukon, no Canad�, e os Maoris, na Nova Zel�ndia. Mas tamb�m em perspectivas da criminologia cr�tica, tendo como uma das principais refer�ncias o artigo “Conflito como Propriedade”, do Nils Christie, de 1977.
Ela pode ser aplicada em casos de viol�ncia de g�nero de v�rias formas, seja para abordar o pr�prio crime praticado contra a mulher, seja para constru��o de rede de apoio para v�timas, e at� mesmo de forma preventiva, construindo espa�os de di�logo para abordar o tema da misoginia.
A ideia central � a escuta individual da mulher, para que ela seja acolhida e respeitada, e que seja constru�da a responsabiliza��o de quem cometeu a viol�ncia. E que possam ser pensados caminhos pr�ticos, planos de a��o, para o enfrentamento estrutural da viol�ncia. A possibilidade de aplica��o envolvendo esse tipo de viol�ncia � abordada na Carta da XI Jornada da Lei Maria da Penha.
AZ: Pensando nas mulheres, como a justi�a restaurativa pode ser eficiente na pr�tica?
Antes de compartilhar um exemplo, destaco que a Justi�a Restaurativa n�o se resume ao atendimento de casos de conflitos em espec�fico. Antes de tudo, � uma perspectiva de mudan�a na forma como nos relacionamos no cotidiano e como convivemos enquanto sociedade. Digo isso porque se o uso for isolado em atendimento de casos, � muito dif�cil que a mudan�a aconte�a, tendo em vista que todo conflito e viol�ncia guardam quest�es estruturais em sua base. � a perspectiva preventiva junto com a mudan�a estrutural que possibilitam atender casos de forma mais eficaz.
Vou dar um exemplo de um caso que atendi. Era uma mulher super jovem, por volta dos seus 20 anos, foi pega com documentos falsos em uma caixa lot�rica para retirar o dinheiro dos benef�cios sociais das pessoas. Joana* tinha um filho bem novo, passava por quest�es familiares s�rias, ficando respons�vel desde muito cedo por dar conta financeiramente tamb�m dos irm�os mais novos. O caso chegou ao N�cleo de Justi�a Restaurativa do Tribunal e n�s n�o t�nhamos acesso �s v�timas diretas, que tiveram seus documentos falsificados.
Joana teve acesso a atendimento psicol�gico, curso profissionalizante e gravou um epis�dio de podcast (preservando sua identidade) para contar sua hist�ria, que depois foi compartilhada com outros jovens. Uma v�tima indireta (que teve seu documento falsificado, mas n�o por Joana) foi ao encontro dela, e ela p�de escutar as consequ�ncias daquilo que praticava. Todos esses acontecimentos partiram da iniciativa de Joana.
A utilidade aqui � proporcionar um espa�o seguro de responsabiliza��o e de constru��o de novos caminhos de apoio para uma mulher que recorreu � falsifica��o de documentos para lidar financeiramente com ela, seu filho e seus irm�os. Uma mulher que pode hoje estar com seu filho, vendo ele crescer. Evitando o encarceramento e possibilitando caminhos de constru��o de justi�a que n�o seja violento nem com ela e nem com as v�timas.
Em muitos pa�ses como Bol�via, Chile, Argentina, a Justi�a Restaurativa iniciou sua implementa��o em casos envolvendo crian�as e adolescentes. Porque geralmente s�o legisla��es mais flex�veis e culturalmente mais aceit�veis do que aplicar em casos criminais, por exemplo. J� na Col�mbia, al�m desses casos, a pr�tica foi utilizada para o enfrentamento do conflito armado e quest�es de territ�rio. Em mat�ria de viol�ncia de g�nero ainda h� diversos obst�culos e cautelas importantes para aplica��o.
*nome fict�cio
AZ: H� quem critique a justi�a restaurativa em casos de viol�ncia de g�nero sob o argumento de que nem sempre a v�tima tem no��o da viol�ncia que sofreu, ou est� psicologicamente doente para tomar decis�es racionais. Como escapar desse labirinto?
O Estado � constru�do sobre uma estrutura machista, patriarcal, e o que mais temos s�o not�cias de mulheres que ainda passam por diversas viol�ncias durante o processo [de busca por justi�a]. De fato, muitas v�timas de viol�ncia de g�nero n�o compreendem aquilo como viol�ncia, porque � socialmente aceita, praticada e inclusive ensinada. N�o me parece que seja um caminho de cuidado colocar uma mulher diante de um sistema estruturalmente machista.
Encarar esse aspecto delicado e desafiador da fragilidade de muitas mulheres v�timas de viol�ncia � justamente oferecer apoio, escuta, constru��o de comunidade de apoio (como grupos de mulheres), acolhimento, acompanhamento psicol�gico e o que for necess�rio para que ela se perceba nesse processo. E tudo isso s� � poss�vel com a constru��o de confian�a, de um espa�o seguro e de escuta.
Quando o Estado toma o protagonismo, se esquece que a v�tima � a mulher. Da� em diante, o que est� se desenrolando de fato cuida dessa mulher? N�o estou falando sobre a necessidade de interven��o em um momento de viol�ncia, mas sim sobre o que a mulher gostaria de fazer a partir dele, quais caminhos seguir. Ela � a protagonista, ainda que precise de apoio.
AZ: Uma das pr�ticas da justi�a restaurativa coloca agressor e v�tima frente a frente. Como voc� analisa isso?
Essa quest�o � bastante s�ria e delicada. De fato, uma das pr�ticas da Justi�a Restaurativa se chama “Media��o V�tima-Ofensor-Comunidade”, que prev� o encontro para abordar a viol�ncia ocorrida e construir justi�a. Mas antes de falar sobre a pr�tica, queria colocar que tudo que � realizado na Justi�a Restaurativa � pautado na voluntariedade. A condu��o do procedimento precisa respeitar primeiramente a vontade e disponibilidade da v�tima, em casos de viol�ncia de g�nero ou quaisquer outros.
As pr�ticas da Justi�a Restaurativa foram importadas para o Brasil, e precisam de compreens�o cr�tica e contextualiza��o dos seus usos. Em um pa�s extremamente violento e mis�gino, � poss�vel que o procedimento inteiro ocorra de forma cuidadosa para as pessoas envolvidas sem que haja o encontro. Considerando a diferen�a de poder entre as rela��es de g�nero, o encontro pode significar uma revitimiza��o, outra camada de viol�ncia. Quando qualquer metodologia causa mais viol�ncia, n�o estamos falando de justi�a.
Foi por entender essa necessidade de adapta��o das pr�ticas e, mais do que isso, da reconstru��o de uma justi�a pautada em refer�ncias nacionais, a partir de nossas realidades, que eu acabei fazendo um Mestrado na �rea de Justi�a Restaurativa. Disso surgiu o livro “Hist�rias N�o Escutadas: os Mestres Gri�s e a Justi�a Restaurativa no Brasil” que, de forma in�dita, traz a preocupa��o com a mera aplica��o de mecanismos importados. Falta a constru��o de pensamento cr�tico para entendermos como a reconstru��o da justi�a passa antes por aprendermos e dialogarmos com experi�ncias outras, do nosso territ�rio.
AZ: Quais as situa��es boas e ruins de aplica��o da justi�a restaurativa j� temos em curso?
A aplica��o da Justi�a Restaurativa � considerada satisfat�ria dependendo da forma��o das facilitadoras, da qualidade do espa�o para o atendimento dos casos, da regulamenta��o da profiss�o, da articula��o com a rede comunit�ria. � algo continuado e aprofundado sobre viol�ncias estruturais. N�o h� como dizer que em casos de tal crime � bom e em tal caso n�o. O ponto central � que crimes envolvendo n�o s� viol�ncia de g�nero, mas mulheres, � preciso atuar a partir dos recortes sociais, principalmente de g�nero.
Ao mesmo tempo, existem duas quest�es importantes para refletir. A primeira � sobre a dificuldade de encaixar os procedimentos restaurativos num Sistema de Justi�a que atua a partir do oposto do que prega a Justi�a Restaurativa. Esse � um dos motivos de experi�ncias ruins no atendimento dos casos, principalmente por serem institui��es de estrutura violenta, constru�das para a puni��o.
Existe tamb�m o fato de as pr�ticas estarem, por exemplo, subordinadas a prazos legais, ao entendimento de ju�zes e promotores com pouca mobilidade de atua��o. Outro aspecto � que, em quase todos os casos que atendi at� hoje, as mulheres, ofensoras ou v�timas, chegavam at� n�s sem ter tido acesso a diversos direitos b�sicos.
Isso mostra que, no Brasil, construir justi�a, para al�m de um acordo ou desfecho de casos, � antes garantir direitos b�sicos. E muitas dessas mulheres conseguem esse acesso somente a partir do momento em que se envolvem com quest�es de viol�ncia/crime (seja praticando ou sofrendo viol�ncia).
AZ: Em quais casos o encarceramento � necess�rio quando se trata de viol�ncia de g�nero?
Pensando que vivemos ainda em uma sociedade violenta, na qual o n�mero de mulheres que sofrem viol�ncia e morrem por conta dela � gigantesco, n�o posso responder isso com uma vis�o ideal de pres�dios sendo desnecess�rios. Depende de cada caso e, principalmente, de cada v�tima. Tendo em vista tamb�m que, em casos nos quais o homem n�o aceita participar, o processo criminal acontece normalmente. Atendi uma mulher uma vez que, conhecendo a Justi�a Restaurativa, quis propor um procedimento restaurativo, mas n�o houve aceite por parte do homem e o processo criminal seguiu.
Hoje, minha percep��o � de que o encarceramento � necess�rio para interromper uma viol�ncia, preservando a vida e a integridade f�sica de uma mulher, seja se ela est� sendo amea�ada em sua casa, sua fam�lia, sendo perseguida ou se est� em risco, para que aquela viol�ncia pare.
N�o se pode esquecer que isso n�o evita que, assim que o homem sair do encarceramento, o risco volte a existir, ou que outros homens fa�am algo contra ela. Questionar o sistema prisional faz parte de um desenvolvimento s�rio da Justi�a Restaurativa, que se preocupa com mudan�as estruturais e culturais. A mulher v�tima de viol�ncia de g�nero, junto com seus apoios, ainda � a primeira a ser escutada para entender se o encarceramento (que significa aguardar o desfecho do processo criminal) � o que vai cuidar dela naquele momento.
A reportagem original pode ser acessada no site d'AzMina.