
Por Tain� G�is
Est� em pauta na Comiss�o da Mulher da Assembleia Legislativa de S�o Paulo uma infeliz heran�a deixada pela ex-deputada Jana�na Paschoal: o Projeto de Lei (PL) 582/2020. O texto pretende impor aos agentes de sa�de a obrigatoriedade de informar as autoridades policiais em caso de atendimento de pessoas que procurem o protocolo de aborto decorrente de estupro.
O PL vai ainda mais longe, propondo tamb�m que seja obrigat�ria coleta e guarda de tecidos fetais ou embrion�rios, ou seja, de material biol�gico da paciente, de forma a possibilitar per�cia gen�tica para identifica��o do autor do crime.
A ex-deputada e professora de Direito Penal, Jana�na tenta se precaver de cr�ticas, alegando que n�o pretende criar restri��es ao acesso � servi�os de abortamento em casos autorizados por lei. Apesar disso, faz constar da justificativa do projeto que a “liberdade excessiva” de realiza��o de procedimentos de interrup��o de gravidez sem ordem judicial tende a “banalizar a pr�tica e facilitar o aborto em situa��es n�o autorizadas por lei”.
Repetindo a mesma vis�o carente de dados e avessa � ci�ncia que informa muitos argumentos a favor dos direitos reprodutivos, a proposta do PL parte de um diagn�stico fantasioso sobre a realidade da vida das pessoas que procuram servi�os de abortamento.
NINGU�M QUER BURLAR A LEI
H� uma caracteriza��o preconceituosa que acredita que quem busca o protocolo de interrup��o de gravidez s�o mulheres adultas que querem burlar a lei. Mas a realidade do Brasil � que as principais v�timas de gravidez decorrente do crime de estupro s�o crian�as.
No ano de 2020, segundo o Anu�rio Brasileiro de Seguran�a P�blica, a cada hora, 4 meninas de at� 13 anos foram estupradas no pa�s. Entre 2015 e 2019, no Brasil, 67% dos estupros tiveram como v�timas meninas com idade entre 10 e 14 anos. Entre estas, prevalecem as meninas pretas e pardas (64,18%).
A ideia de que existe uma excessiva facilidade de acesso ao atendimento pelo protocolo de interrup��o de gravidez legal tamb�m n�o resiste aos dados. Segundo o Minist�rio da Sa�de, no primeiro semestre de 2020, o n�mero de mulheres atendidas em todo o pa�s pelo SUS em raz�o de abortos malsucedidos foi 79 vezes maior que o de interrup��es de gravidez previstas pela lei. A maior parte das pessoas, portanto, opta por abortar sozinha e s� depois procuram o sistema de sa�de.
Antes de acusar essas pessoas de praticar aborto criminoso, � bom lembrar da recorr�ncia de casos como a crueldade cometida no ano passado contra a crian�a de 11 anos que, gr�vida em decorr�ncia de estupro, teve o direito ao aborto legal negado pelo sistema de sa�de e pela Justi�a de Santa Catarina. Para que n�o haja d�vidas da persegui��o ideol�gica, at� mesmo as advogadas da crian�a foram indiciadas pela pol�cia.
SIGILO M�DICO
Recentemente, a Revista AzMina publicou uma reportagem que aponta como, desde 2022, tem crescido o n�mero de processos judiciais contra mulheres brasileiras acusadas de realizar um aborto ilegal. Um estudo realizado no Paran�, revelou que em 44% dos casos a investiga��o criminal decorre de den�ncias realizadas pelos pr�prios profissionais da sa�de – que violam o sigilo profissional e agem de forma ideol�gica, anti�tica, e ilegal.
N�o bastasse a incoer�ncia com a realidade, o PL 582/2020 ainda est� na contram�o da legisla��o nacional e dos entendimentos judiciais que organizam o direito ao aborto legal no Brasil.
A Constitui��o Federal e a Lei de Contraven��es Penais vedam a obrigatoriedade de comunica��o de crime por profissional da sa�de nos casos em que a notifica��o possa expor o paciente a procedimento criminal. Ainda, a Lei Federal nº 13.931/2019 determina que a comunica��o de crime de viol�ncia contra a mulher por profissional da sa�de ou assist�ncia social deve preservar e impedir a identifica��o da v�tima. N�o menos importante, em 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional lei que gera obrigatoriedade de coleta e armazenamento de material biol�gico decorrente de gestantes e parturientes.
PRECISAMOS CUMPRIR A LEI
Ao contr�rio do PL que a deputada Janaina prop�s, a situa��o no Brasil demanda a��es para garantir o direito ao aborto nos casos previstos pela lei h� d�cadas, mas constantemente negado por nosso sistema de sa�de.
Com o pretexto de investigar o crime de estupro, o projeto na verdade � mais uma tentativa de coagir meninas e mulheres a n�o buscar ajuda por medo de novas viol�ncias de profissionais de sa�de, pol�cia e sistema judici�rio.
Tomo emprestadas a argumenta��o da D�bora Diniz na audi�ncia p�blica sobre o aborto no STF em 2018: a discuss�o de pol�ticas p�blicas sobre aborto n�o deve partir da quest�o de sermos contra ou a favor, mas do entendimento concreto de quais s�o as pr�ticas das brasileiras. “As pessoas n�o v�o deixar de abortar por conta de uma lei estadual, mas podem deixar de procurar atendimento m�dico especializado por medo de enfrentar a Justi�a.”
MECANISMO PERVERSO
Somamos �ndices assustadores de estupros de menores de idade e altas taxas de mortalidade decorrentes de abortos desassistidos. Diante disso, sobrecarregar o j� limitado direito de acesso ao servi�o de sa�de – com o dever de responder �s autoridades policiais – � um mecanismo perverso que s� pode ter como resultado aprofundar desigualdades.
Barrar o PL 582/2020 � importante n�o s� pela vida das mulheres paulistanas, mas tamb�m para combater a onda conservadora que tenta transformar em “mat�ria de pris�o” um problema social que demanda “cuidado, prote��o e preven��o”.
Acesso o site https://www.servitimanaoecrime.org/. Saiba mais e ajude a impedir mais esse retrocesso.
Tain� G�is, advogada e doutoranda em Direito pela USP, assessora jur�dica da Deputada Estadual Ediane Maria.
Para ler a reportagem original, acesse o portal d'AzMina.