
A longevidade, por enquanto, � um privil�gio de poucos afortunados. Ao longo da vida, quase nunca pensamos na morte, digo, nossa morte.
Geralmente, miramos nos 100 e, como diz o Zeca, deixamos a vida nos levar...o que vier depois disso � lucro.

Eu ainda n�o entendia bem aquele novo sentimento. Eu deveria chorar, mas ainda n�o sabia porqu�. Eu a adorava, mas a minha liga��o com meu av� era t�o forte, que as vezes ela nos incomodava com suas rabugices.
De certa forma, estar�amos livres para ca�ar, ir para a fazenda e nos divertirmos. Isto, ele fazia como ningu�m.
Esta foi a metaboliza��o da morte da minha av�. Entre o grupo escolar Dom Jos� Gaspar de Ibi� e a minha casa, na Rua 20, n�mero 67, eram apenas 600 metros.
Ao chegar em casa e ver o sofrimento da minha m�e, em prantos, arrumando o corpo da pr�pria m�e, foi que comecei a entender o que significava a dor de uma perda. A dor da minha m�e era t�o grande, que eu chorava pelo desespero dela.
Talvez, neste momento, eu tenha, de fato nascido...
Minha m�e a vestiu com a roupa de sempre. Uma saia cinza que ia at� o meio da canela, as mesmas pelas quais o meu av� havia se apaixonado.
A blusa era estampada de azul, usada apenas em dias de festa. Era de abotoar pela frente. Ficou abotoada at� o �ltimo bot�o. Naquele momento, um len�o amarrava o seu queixo � cabe�a. Minha m�e era uma ex�mia arrumadeira de defuntos, n�o deixaria jamais a vov� ficar de boca aberta.
Esta fun��o social da minha m�e, me rendeu muitos traumas, dos quais demorei para me livrar.
Meu pai cuidava dos vivos e minha m�e dos mortos. Ela chorava pelo defunto alheio. Todos, sem exce��o. Aprendi com ambos o conceito de solidariedade.
Um dos traumas que me assombrou durante muitos anos foi a morte da Tia Mariquinha. Ela n�o era de fato minha tia, mas eu a chamava assim, ela gostava.
Tia Mariquinha era uma senhora gorda, muito gorda. Risada f�cil, sacudida e gostosa. Uma risada, da qual se ri, da pr�pria risada.
Na sua casa sempre tinha guloseimas mil. Ela adorava assentar na varanda de casa com um balaio de manga espada e ir descascando, para ela e para quem estivesse do lado.
Meu pai a visitava sempre num s�tio pr�ximo � cadeia p�blica, �s margens do Rio Miseric�rdia. Ele a tratava de uma ferida na perna que n�o sarava nunca. Mas, isso n�o parecia incomod�-la, nem a mim...
Certa madrugada minha m�e foi chamada �s pressas na casa dela. Eu fui junto. Tia Mariquinha havia morrido. Suas duas filhas choravam e se trancaram num quarto.
Minha m�e estava sozinha para arrumar a Tia Mariquinha, cujo peso estaria na casa de muitas arrobas, segundo meu av�.
Puxa de c�, ajeita de l�, prende o queixo, enfaixa a perna e segura uma m�o contra a outra e amarra. Foi a� que ela me pediu:
- Carlos Ernesto, segura a m�o da Tia Mariquinha para a mam�e.
Lembro-me que que aquelas m�os quentinhas e que descascaram tantas mangas e laranjas para mim, agora estavam frias e azuis. Eu at� que tentei segur�-las, mas era muito peso. A m�o soltou e me deu um belo de um tapa na cara.
Tia Mariquinha estava me acordando para a vida...
Eu nunca mais ouviria aquela risada sacudida, n�o teria o carinho dos bolos e biscoitos. Aquelas m�os caprichosas e amigas n�o mais descascariam laranjas...
E assim, uma a uma, estas pessoas maravilhosas foram indo embora. Meu pai, meu av�, meu irm�o e, por fim, minha m�e.
Na vez dela, eu, seu companheiro de tantos defuntos, a peguei em casa com uma forte dor abdominal. Boa coisa n�o seria.
Acompanhei a tomografia e n�o restava d�vida que se tratava de grave isquemia mesent�rica. Doen�a que aos 93 anos � praticamente fatal. Eu a deixei no hospital para ir em casa trocar de roupa e me arrumar para a longa noite que viria.
Ao me despedir, ela arrumou o meu jaleco, abotoou at� o �ltimo bot�o, da mesma maneira que fazia quando eu sa� para o meu primeiro dia de escola. Foi assim...
O que estas pessoas longevas nos d�o e deram de t�o precioso? Elas nos deram as suas vidas e nos ensinaram a cuidar uns dos outros com carinho e respeito, at� mesmo depois da morte.
Que privil�gio as ter tido por tanto tempo. Queria que n�o acabasse nunca, mas acaba...
Acaba, mas continua em nosso jeito de olhar e abra�ar o mundo.
O lado mais cruel desta epidemia n�o � o fato do v�rus levar com maior probabilidade os mais velhos, mas � o desprezo do Estado por estas figuras que nos s�o t�o caras.
Me rejuvenes�o ao conviver com o espet�culo de Maria Helena Andr�s, que na vibra��o dos seus anivers�rios, que se aproximam dos 100, inventa m�sicas e presenteia a todos com fino humor, arte e sensibilidade.
Me emociono ao assistir a eleg�ncia e serenidade da Rainha Elizabeth, aos 94 anos, condecorando o capit�o Tom Moore, de 100 anos, pela sua a��o filantr�pica de caminhar em torno de casa para arrecadar fundos para os profissionais de sa�de em plena epidemia. Arrecadou 33 milh�es de libras, quase 300 milh�es de reais. Ele afirmou ser aquele o dia mais feliz de quase um s�culo de sua exist�ncia.
Mas, impressionante mesmo � o otimismo e vivacidade da av� do Br�ulio, cujo nome verdadeiro, at� seus filhos costumam esquecer. Dona F�, aos 103 anos, est� preocupada com a insanidade e falta de sensibilidade dos nossos governantes:
- Que mundo este povo vai deixar para mim...