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Estado de Minas UM VELHO AMIGO

O cheiro de Deus

'Meu conv�vio com o autor de Hilda Furac�o foi mais intenso durante as pesquisas de seu livro, quando o ajudei na constru��o do enredo sobre a cidade sanat�rio'


21/08/2021 06:00 - atualizado 21/08/2021 07:51

(foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)
(foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)

Sempre que o Galo est� em alta, Roberto Drummond ressuscita nos �udios e v�deos em redes sociais. A c�lebre frase "numa tempestade, se houver uma camisa do atl�tico no varal, atleticano torce contra o vento."

Mato a saudade deste velho amigo que nos deixou h� 19 anos, em 21 de junho de 2002, na v�spera de um jogo hist�rico, Brasil X Inglaterra. Aquele, que Ronaldinho Ga�cho colocou uma bola improv�vel na gaveta do goleiro ingl�s. Fomos pentacampe�es naquele ano. Ele n�o viu, mas previa.

Confesso que, quando passo pela Savassi, pr�ximo � sua est�tua, converso com ele e o convido para um caf�. Assento numa livraria e tenho certeza de t�-lo ao meu lado tomando um caf�. Afinal, fizemos isso in�meras vezes.

Mas, o meu conv�vio com o autor de Hilda Furac�o foi mais intenso durante as pesquisas de seu livro O cheiro de Deus, quando o ajudei na constru��o do enredo baseado em Belo Horizonte, a cidade sanat�rio.

A ideia era mostrar o impacto da tuberculose, uma epidemia secular, na vida de Belo Horizonte. A cren�a de que nossa altitude e clima ameno durante quase todo ano propiciava condi��es perfeitas para o tratamento da doen�a, fez com que v�rios sanat�rios fossem abertos na Regi�o Metropolitana de BH.

Assim, surgiram o sanat�rio Santa Isabel, o Hugo Werneck, Julia Kubistchek, Eduardo de Menezes, Baleia e tantos outros, que se tornaram com o tempo, grandes hospitais gerais. Um legado da tuberculose para a cidade.

Para c� vieram m�dicos de todo o pa�s, os quais ajudaram a construir as bases da medicina mineira. Alguns colegas dizem que a tuberculose � a m�e da medicina mineira, outro legado daquela epidemia.

Vieram tamb�m artistas, escritores e profissionais de todas as �reas, que nos ajudaram a construir o nosso jeito p�o de queijo de ser.

Resgatar essa hist�ria romanceada foi o motivo pelo qual o Roberto me ligou para ajud�-lo. Fiquei fascinado com a ideia e partimos logo para a pesquisa de campo.

Fomos a v�rios hospitais, mas foi no Hospital da Baleia onde ele mais explorou os prontu�rios antigos, conversou com os funcion�rios mais velhos sobre suas vidas e os fatos que mais lhes marcaram a carreira. Uma verdadeira arqueologia po�tica.

Faz�amos essas incurs�es no labirinto das hist�rias registradas em velhos prontu�rios, os quais eram manuseados com luva e m�scara pelo cuidadoso pesquisador. O seu temor era de que algum bacilo anci�o, adormecido nos papeis e entre as letras das hist�rias cl�nicas, pudesse querer voltar � ativa e o infectasse.

Roberto n�o gostava de andar nas enfermarias. Certa feita, ao chegarmos ao final de um longo corredor o qual era percorrido por ele com a rapidez de um atleta de cem metros rasos, o percebi ofegante e perguntei se ele estava se sentindo bem. Ele me confessou que evitava respirar nos corredores. Quando n�o conseguia segurar o folego e respirava, j� se sentia um tuberculoso.

O romance foi um mergulho po�tico em seus pr�prios temores e de v�rias gera��es que lidaram com uma doen�a que desde o Egito antigo impacta a vida da humanidade. Epidemia que vai e volta e n�o nos larga h� mil�nios, assim como o estigma que a permeia.

Mas, no momento daquela pesquisa, o que mais o emocionou foi quando descobriu que as fam�lias eram separadas � for�a pela tuberculose. Pais iam para o Eduardo de Menezes, m�es para o J�lia Kubistchek e filhos para o Baleia. O mesmo acontecia com os pacientes com hansen�ase.

Tudo isso acontecendo h� menos de 50 anos. L�grimas rolaram pela sua face branca e cobriram as sardas. Nesse dia, paramos no Botequim, um bar ao lado do pr�dio onde ele morava e conversamos demoradamente sobre o radicalismo, a intoler�ncia, a ignor�ncia e o impacto das ditaduras sobre nossas vidas.

Assim surgiu O cheiro de Deus.

A atual pandemia, particularmente os �ltimos acontecimentos no planeta, t�m me feito recordar desses dias de pesquisa e das boas conversas que tivemos. Certamente, o radicalismo pol�tico religioso (quase talib�nico) e a amea�a � nossa fr�gil democracia, mereceriam dele textos agudos e carregados de sentimento, viv�ncia e arte.

O desespero do jovem atleta, Zaki Anwari, pertencente � sele��o afeg� de futebol, que caiu do avi�o decolando de Cabul, com certeza mereceria uma cr�nica do colega colunista deste mesmo jornal.

Zaki tinha apenas 19 anos. Quando nasceu, o Talib� j� n�o estava mais no poder no Afeganist�o. Sem conhecer a ditadura pol�tico religiosa do Talib�, preferiu arriscar-se em busca do seu sonho, agarrando-se � fuselagem de um avi�o em decolagem.

Voc�s j� pensaram na garra desse menino em campo?! Certamente, Roberto iria querer v�-lo jogando com a camisa do Galo. Afinal, desafiou o vento, a altura e a intoler�ncia, com sua pr�pria vida. Roberto cairia junto com Zaki, assim como eu ca�. Eu veria, mais uma vez, as l�grimas cobrindo as sardas.

N�o abrir m�o de princ�pios democr�ticos e da liberdade de ir e vir. Repugnar todo e qualquer radicalismo � nossa obriga��o para com n�s mesmos, nossos filhos e netos.

Para evitar que eles um dia n�o precisem se agarrar na fuselagem de um avi�o em decolagem � que temos a responsabilidade de evitar que radicais tentem usurpar o poder e nos impor, novamente, uma ditadura. Hitler manda lembran�as... A democracia pode ter mil defeitos e imperfei��es, mas ainda n�o inventaram nada melhor.

Apesar de sua paix�o pelo time do cora��o, Roberto n�o deixaria de dar um pux�o de orelha na torcida pelo comportamento dessa semana na �pica vit�ria contra o River. Dentro de campo um espet�culo. Nas arquibancadas e fora do est�dio, uma lamban�a. Ignoraram a epidemia e o v�rus, que coincidentemente � transmitido pelo ar, o mesmo que digladia com a camisa no varal.

Como uma pessoa que sentia o cheiro de Deus, certamente deve, de vez em quando, receber uma indulg�ncia divina e voltar para assistir a um jogo do Galo. H� quem jura ter visto um vulto dando um tran�a-p� no atacante do Ol�mpia, evitando o gol que fatalmente tiraria o t�tulo da Libertadores do Atl�tico em 2013.

Alguns t�m a certeza que foi um vulto com sardas.

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