
Segundo Naomi Wolf (1991), a beleza � entendida como uma qualidade fundamental para a valoriza��o feminina. Para a autora, o mito da beleza � essa “verdade” cultural que conecta a imagem e o padr�o est�tico �s ideias de sucesso e de felicidade. Nesse texto, eu vou te mostrar como o mito da beleza aprisiona, levando a um sentimento constante de insufici�ncia e infelicidade.
Uma pergunta para as mulheres: voc� est� satisfeita com o seu corpo e a sua imagem?
Se voc� pensou “n�o”, fique tranquila, estamos todas no mesmo barco. De acordo com uma pesquisa divulgada por Alexandra Gurgel, fundadora do movimento Corpo Livre, 96% das mulheres do mundo est�o insatisfeitas com o seu corpo. O desgosto pela pr�pria imagem n�o est� associado apenas ao formato do corpo. A pesquisa realizada pelo Ibope Intelig�ncia chamada “O que a sua pele conta” revela que 94% das mulheres est�o insatisfeitas tamb�m com o seu rosto.
Pode ter passado pela sua cabe�a que esse dado deve ter um recorte de idade, pois � f�cil acreditar que a insatisfa��o com o corpo seja algo relacionado � maturidade. Infelizmente eu tenho outro dado que mostra o contr�rio. Um estudo desenvolvido pela Secretaria da Sa�de mostra que 67% das jovens e adolescentes com idade entre 10 e 20 anos est�o insatisfeitas com o seu corpo. A pesquisa mostra tamb�m que muitas garotas cometem atos extremos para ficar mais magras e serem aceitas.
O mito da beleza condiciona o pensamento e comportamento feminino, al�m de nos prende �s expectativas masculinas. Mas n�o se engane, as imposi��es da sociedade machista e patriarcal atravessam a todas as mulheres. N�o � raro ver depoimentos de celebridades, modelos e “musas fitness” relatando o auto �dio e as viol�ncias a que foram submetidas para alcan�ar um padr�o est�tico inating�vel, mesmo sendo consideradas exemplos de “perfei��o” pela maioria das pessoas. Gracyanne Barbosa, Luciana Gimenez e at� Gabriela Pugliesi j� assumiram publicamente a insatisfa��o com os seus corpos.
No dia 24 de janeiro, a modelo e influenciadora Liliane Amorim (que era uma mulher magra) morreu em consequ�ncia de complica��es de uma lipoaspira��o. No dia seguinte, a influenciadora e apresentadora Thaynara OG revelou que foi parar na UTI ap�s a realiza��o de uma lipo lad; um tipo de lipoaspira��o que que modela e destaca os m�sculos al�m de remover o excesso de gordura e que se tornou uma verdadeira febre entre as blogueiras. Em 2018, a atriz e influenciadora K�fera Buchmann falou sobre dist�rbios de imagem, anorexia e bulimia que sofreu e confessou: “me olhava no espelho, tomava banho e sentia nojo de mim”.
Sempre que pensamos nas opress�es femininas, � muito importante fazer um recorte de ra�a, g�nero e classe social. A viol�ncia estrutural tamb�m � interseccional. Isso quer dizer que mulheres negras est�o submetidas a mais opress�es do que as mulheres brancas, pela combina��o do racismo com as exig�ncias do padr�o est�tico. Isso tamb�m quer dizer que mulheres transexuais sofrem ainda mais por ver a transfobia atravessando a sua performance de g�nero, al�m do mito da beleza. Vivemos em uma sociedade composta por camadas e entender essa estrutura � muito importante para podermos lutar contra as viol�ncias.
Desde a inf�ncia, fomos ensinadas a nos odiar. Na nossa sociedade, ser mulher � ter que atender a um padr�o est�tico e comportamental complexo que pode, entretanto, ser resumido em servir e ser perfeita. Nesse contexto, a pergunta que eu fa�o �: ser perfeita para quem? Ser boa ou perfeita para o outro �, necessariamente, se colocar no lugar de objeto. Al�m de nos subjugar a uma posi��o de subservi�ncia, o mito da beleza estimula a competi��o entre mulheres, al�m de um comportamento de vigil�ncia e controle m�tuo onde nos tornamos “guardi�s do machismo”.
Se o patriarcado j� n�o consegue mais controlar todas as mulheres pela maternidade compuls�ria, esse sistema foi atualizado e hoje n�s somos controladas pela necessidade de preencher os requisitos inalcan��veis da beleza. Os resultados dessas pr�ticas s�o avassaladores. Mais de 10 milh�es de pessoas sofrem de dist�rbios alimentares como bulimia e anorexia no Brasil. A dismorfia corporal, tamb�m como conhecida como s�ndrome da feiura, � caracterizada pela percep��o alterada de si mesmo diante do espelho e atinge 4 milh�es de pessoas no pa�s.
Nunca iremos esquecer que o patriarcado anda de m�os dadas com o capitalismo. De acordo com uma pesquisa divulgada pela Sociedade Internacional de Cirurgia Pl�stica Est�tica, o Brasil � o pa�s que mais realiza cirurgias pl�sticas no mundo. A insatisfa��o e a infelicidade feminina aquecem o mercado. Segundo o relat�rio da Pluri Consultoria, o setor de beleza, sa�de e fitness tem crescimento de R$ 8 bilh�es por ano no Brasil. O relat�rio da Associa��o Internacional de Sa�de, Raquete e Clube Esportivo mostrou que em �mbito mundial, o mercado fitness vale US$ 100 bilh�es e deve crescer mais.
Diariamente vemos na m�dia e nas redes sociais a divulga��o de dietas alimentares milagrosas (e muito restritivas) que nos levam a um estado de revezamento entre escassez e compuls�o. A manuten��o, o refor�o e a reprodu��o da exig�ncia para que as mulheres busquem incansavelmente alcan�ar os padr�es beleza � a forma mais eficiente de limita��o e domina��o feminina. Impor �s mulheres o auto �dio � um sedativo pol�tico potente. Citando Naomi Wolf (1991): “uma cultura focada na magreza feminina n�o revela uma obsess�o com a beleza feminina, � uma obsess�o sobre a obedi�ncia feminina”.
Atribuir valor �s mulheres de acordo com a apar�ncia serve a um projeto econ�mico e pol�tico espec�fico. O capitalismo lucra com a nossa insatisfa��o que temos em rela��o aos nossos corpos, ao mesmo tempo em que a nossa for�a pol�tica � fatalmente enfraquecida pela desmobiliza��o de um indiv�duo que se odeia. Para nos livrar dessa emboscada muito bem planejada, precisamos desenvolver uma “nova forma de ver” (WOLF, 1991).
Nesse sentido, � muito importante ampliar as nossas refer�ncias sobre os mais diversos tipos de corpos. Quem voc� segue nas redes sociais? Por quem voc� se deixa influenciar? Nos �ltimos anos, eu fiz um trabalho para ensinar ao algoritmo das minhas redes sociais qual era o tipo de conte�do que eu gostaria de receber. De maneira ativa, parei de seguir todas as “mulheres perfeitas” e “musas fitness” que enchiam a minha timeline e decididamente comecei a seguir mais mulheres pretas, gordas, travestis e com defici�ncia.
O processo de amplia��o da refer�ncia de beleza � cont�nuo. Hoje, sinto que consigo olhar no espelho e me acolher mais. Obviamente isso n�o acontece todos os dias, mas eu me proponho a desobedecer ao patriarcado e reconhecer que sou digna de amor e felicidade independentemente da minha apar�ncia. Como diz Alexandra Gurgel: “em uma sociedade que lucra com a insatisfa��o feminina, amar o pr�prio corpo � um ato revolucion�rio.”