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Estado de Minas

Pelos bares da vida

'N�o havia bebida mais inspiradora do que aquela que levava todos para longe dos generais e suas fardas estreladas'


postado em 24/05/2020 09:15 / atualizado em 24/05/2020 09:17

“Vamos beber porque o mundo est� acabando”, convocava um poeta mineiro no fim da d�cada de 1970. O convite era imediatamente aceito por quatro ou mais companheiros (as), que faziam uma via-sacra pelos bares da cidade madrugada adentro. Em plena ditadura militar da �poca, o bar era ponto de encontro, de conversa, de compl�.

N�o havia celular nem internet e as pessoas se encontravam nessa esp�cie de Bar Don Juan –, livro de Antonio Callado (1971) – para conspirar, trocar ideias e tramar revolu��es, sob a batuta do Saloom, na Rua Rio de Janeiro, no Centro de BH, sorvendo goles fartos de vodka com suco de tomate, e gim com Cura�au azul. N�o havia bebida mais inspiradora do que aquela que levava todos para longe dos generais e suas fardas estreladas. Ela n�o se esquece do Chorare, na Rua da Bahia, cujo s�cio-propriet�rio, o jornalista Benjamin Abaliac, era timoneiro dessa viagem sem repress�o ou tortura. Entre conversas e bebidas todos sonhavam com o fim da ditadura militar.

A frase “Vamos beber porque o mundo est� acabando” nunca foi t�o atual. S� que n�o tem mais bar aberto nesta quarentena. O isolamento social exigido pelo coronav�rus trancafiou entre quatro paredes os amantes dos bares e das bebidas. Ela, ent�o, resolveu pesquisar entre os amigos, se, por caso, eles estavam bebendo mais do que antes da pandemia. Observando o pr�prio consumo, ela constatou que estava bebendo mais, que as doses de vinho e de cerveja aumentaram.

Enviou WhatsApp para amigos de longa data. Mirtes Helena Scalioni, que faz parte da gera��o dela, respondeu prontamente: “Claro que estou bebendo mais na quarentena. A bebida, assim como a m�sica, ajuda a gente a seguir a vida. Faz esquecer um pouco a falta dos amigos, alivia a saudade dos netos, reativa lembran�as de inesquec�veis saideiras e abra�os, enobrece o cora��o nos transformando em poetas bobos, liberta palavras aprisionadas e confere leveza e esperan�a – mesmo que falsas. E entorpece do medo da morte”.
 
Mirtes e o marido, Silvio, d�o shows em bares. T�m quatro netos, que n�o abra�am h� tempos. A saudade aperta – e ela confessa: “Quem me dera um bar agora. Em tempos sombrios de isolamento e car�ncia, n�o h� quem n�o sinta uma honesta nostalgia dos bares. Afinal, para que servem os bares sen�o para desatar os n�s, enla�ar cora��es, dar voz aos her�is, encurralar a alegria, espremer as dores, fustigar os instintos, acender os rebeldes, aplacar os solit�rios? Para que servem os bares, sen�o para enlamear os nobres, sussurrar promessas, soprar esperan�as, calar vozes, gritar improp�rios, enterrar ilus�es, buscar amores? Para que servem os bares sen�o para o luto, o esc�rnio, a celebra��o, o canto, o grito, o desafogo, o cinismo, a lux�ria, a explos�o – mil e muitos tons de dor, cores e festa?”.

“Bares s�o tamb�m o lugar da sedu��o, dos pre�mbulos, da solenidade, da leveza, dos rompantes, dos finalmente. � pra l� que v�o os cultos, os incautos, os bravos, os silentes, os insones, os valentes, os salientes. E tamb�m as virgens, os artistas, cafet�es e prostitutas – todo tipo de santo e diabo...”

“Bares existem desde sempre. S�o part�culas da alma humana, ess�ncia dos mortais que j� nascem no abandono. De Cristo a Shakespeare, Garc�a M�rquez, Napole�o ou Hitler, quase todo ser vivente quis um bar para buscar poesia, convocar guerras, celebrar triunfos, amargar derrotas, enterrar amores. Dos tormentos existenciais de Sartre e Simone de Beauvoir no Caf� de Flore �s tormentas de cria��o de Picasso e Camus no Les Deux Magots, ambos em Paris, at� as inspira��es de Hemingway no La Bodeguita del Medio, em Havana, tudo come�a e finda no bar.”

Mirtes continua a dar o tom para orquestrar o texto: “� nos bares da vida que as gentes se embebedam de uns tais et�licos para sossegar a alma, acalentar o corpo, turvar as pernas, embriagar os olhos. E tamb�m se lambuzar de sabores nem sempre perfeitos, molhos suspeitos, carnes fartas, del�cias ex�ticas, petiscos raros, brindes impr�prios, excentricidades da casa. Ou buscar a saideira, onde tem homem que vira macaco e mulher que vira freira. Vale tudo para agasalhar o est�mago frio, saciar as bocas �vidas, preencher o vazio do n�o sei o qu� – matar outras fomes”.

A ang�stia de n�o saber se haver� futuro para o ser humano, de ter que viver cada dia como se n�o houvesse amanh� depois dessa pandemia que tomou conta do mundo, a levou para os versos do poeta franc�s Charles Baudelaire, Embriaguem-se, que diz: “� preciso estar sempre embriagado. A� est�: eis a �nica quest�o. Para n�o sentirem o fardo horr�vel do tempo que verga e inclina para a terra, � preciso que se embriaguem sem descanso. Com qu�? Com vinho, poesia ou virtude, a esco- lher. Mas embriaguem-se. E se, porventura, nos degraus de um pal�cio, sobre a relva verde de um fosso, na solid�o morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando voc� acordar, pergunte ao vento, � vaga, � estrela, ao p�ssaro, ao rel�gio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas s�o; e o vento, a vaga, a estrela, o p�ssaro e o rel�gio responder�o: '� hora de embriagar-se!', para que n�o sejam escravos martirizados do tempo, embriaguem-se, embriaguem-se sem descanso, com vinho, poesia ou virtude, a escolher.”

Os jovens daquela �poca j� passaram dos 60 anos e se aproximam perigosamente dos 70, num tempo em que ser velho pode significar uma senten�a de morte, em um arremedo de ditadura e de mentes diab�licas que querem derrubar as conquistas de gera��es passadas.

Para dizer tamb�m que ela pesquisou com v�rios amigos homens e todos disseram que est�o bebendo mais, na solid�o de cada um. Por falar em bar, bebida e m�sica, � preciso lembrar sempre que Benjamim Abaliac, ex-s�cio do Chorare, partiu em 2014 sem avisar, abrindo um buraco sem tamanho de saudade. Ainda bem que ele n�o est� mais entre n�s para assistir � agonia de um pa�s chamado Brasil. 

Nem Moraes Moreira, que foi embora h� pouco tempo, mas deixou de heran�a a m�sica Acabou chorare, que deu nome ao bar e embalou toda uma gera��o. Partiu tamb�m, este ano, Aldir Blanc, “num rabo de foguete”. � com um trecho da letra de O b�bado e a equilibrista, que � quase um hino nacional contra a ditadura, que fecho este texto: “Chora/ A nossa P�tria m�e gentil/ Choram Marias e Clarisses/ No solo do Brasil”.

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