
Quanto vale a palavra de Rodrigo Janot? O ent�o procurador-geral entrou armado no STF com a finalidade de matar Gilmar Mendes e, na sequ�ncia, tirar sua pr�pria vida. Verdade? Mentira? Del�rio de um mit�mano? No fundo, pouco importa. O conto deve ser lido alegoricamente, como par�bola de uma colis�o engendrada h� tr�s d�cadas, na hora em que os constituintes esculpiram o atual Minist�rio P�blico.
Nos artigos 127, 128 e 129, a Constitui��o criou um poder sem controle externo e sem limites jurisdicionais. O MP paira sobre o Estado, n�o respondendo a nenhum dos tr�s poderes. Nas suas pr�prias palavras, opera como "uma esp�cie de Ouvidoria da sociedade brasileira", exercendo a "tutela dos interesses p�blicos, coletivos, sociais e difusos". Dito de outro modo, o MP n�o seria uma Ouvidoria da aplica��o das leis, mas um tradutor do "interesse geral".
Ningu�m percebeu � �poca, mas dava-se � luz um Partido, com "P" mai�sculo – isto �, uma entidade pol�tica singular, que supostamente representa toda a sociedade e n�o precisa passar pelo filtro das urnas. O MP tornou-se um recipiente perfeito para gera��es de jovens promotores e procuradores engajados na reforma social por meio do sistema de Justi�a.
Pol�tica � a arte de explicitar e solucionar as diverg�ncias por vias pac�ficas. As diverg�ncias que atravessam as sociedades coagulam-se em partidos. Nos sistemas totalit�rios, elas n�o desaparecem, emergindo sob a forma pervertida de fac��es clandestinas no interior do partido �nico. O MP, concebido como Partido, fragmenta-se necessariamente em diferentes partidos, que refletem tradu��es conflitantes do "interesse geral".
O Minist�rio Pol�tico n�o � um, mas v�rios. Pela esquerda, em 1991, surgiu o chamado Minist�rio P�blico Democr�tico (MPD), hoje com mais de 300 associados. Pela direita, em 2018, nasceu o chamado Minist�rio P�blico Pr�-Sociedade, que organiza seu 2º Congresso Nacional. "N�s dois lemos a B�blia noite e dia, mas tu l�s preto onde eu leio branco" (William Blake). Os dois leem as mesmas leis, mas cada um as interpreta segundo seu programa pol�tico particular.
O Janot do conto, pistoleiro suicida, encontra seu lugar no Janot da hist�ria. O momento de seu propalado gesto de loucura inscreve-se numa sequ�ncia de atos pol�ticos: no 8 de maio de 2017, o procurador-geral pediu a suspei��o de Gilmar no caso Eike Batista; no dia 17, vazou o �udio do di�logo explosivo entre Joesley Batista e Michel Temer; no 23, publicou um artigo de den�ncia do "estado de putrefa��o de nosso sistema de representa��o pol�tica".
Numa "estranha alian�a do sublime com o obsceno" (Octavio Paz), o cavaleiro andante da limpeza p�blica faria a justi�a verdadeira com o proj�til de uma pistola, eliminando a justi�a monstruosa, corrompida, inventada pela Constitui��o.
A voca��o dos partidos � perseguir a conquista do poder. Naquele maio, Janot constru�a o trampolim de sua candidatura presidencial, fincando-o sobre um pacto profano com Joesley Batista. A politiza��o do MP atingia um cl�max, empurrando seu chefe � guerra aberta com o Executivo e a uma tentativa, no fim frustrada, de submeter a seus des�gnios o Congresso e o STF. Quatro meses depois do pedido de suspei��o de Gilmar, um desmoralizado Janot ergueu a bandeira branca e, em gesto de rendi��o, solicitou a revoga��o da imunidade de Joesley.
A colis�o do Minist�rio Pol�tico com as institui��es n�o desaparece com a desgra�a do ex-procurador-geral. Hoje, a candidatura presidencial de Sergio Moro concentra o projeto de poder do Partido dos Procuradores. A nossa Opera��o M�os Limpas, t�o necess�ria, dissolve-se numa lagoa viscosa de ilegalidades, um pesque-pague para as defesas de corruptos e corruptores.
O conto de Janot, mais que roteiro potencial de um filme, � uma li��o pol�tica. Vamos estud�-la?